Ás Mulheres Portuguêsas/A proposito duma grève

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A proposito duma gréve[1]
 

 


Não obstante a quasi geral indiferença da mulher do nosso paiz pelas questões sociaes e de intelectualidade, tenho ainda confiança na alma feminina, tenho ainda esperança de que em breve, envergonhadas de tantosannos gastos em futilidades, voltarão a ser as dignas descendentes dessas mulheres portuguêsas, que fôram, entre as mais damas das côrtes brilhantes da Renascença, das mais cultas e espirituosas, aliando ás graças de espiritos educados a nobrêsa e a energia de verdadeiras patriotas.

Escrevo hôje para denunciar, aos seus corações de mulheres e de mães, uma dôr que não roça pela epopeia, mas que na sua humildade é talvez mais aguda, que na rasteira obscuridade em que se gerou e cresce é talvez mais amarga para as almas criadas, como as nossas, para a alegria e para o amôr.

É adentro das nossas fronteiras, como quem diz em nossas casas, neste lindo paiz que nos viu nascer, debaixo da caricia dulcida deste sol que nos agasalha e alegra, que essa miseria subsiste: — mulheres e crianças que se extenuam trabalhando, e não ganham, com o seu trabalho, o quanto lhe baste para matarem a fome.

Sabemos nós todas, as mulheres: — que não pertencemos á galeria das privilegiadas, que dispensam, por abundancia de meios, conhecer e discutir o orçamento das suas casas — quanto se gasta em nossos lares modestos, comendo sem intemperança, vestindo sem luxo.

Pensemos, pois, o que seja trabalhar uma semana inteira e chegado o sabado encontrar entre os dedos, que o trabalho violento deformou , meia duzia de vintens que mal chegam para um dia de fome.

É costume dizer-se para acalmar sensibilidades em sobresalto, que os pobres, habituados a comer mal, não fazem com isso sacrificio.

Certamente que uma mulher rude dos campos, de pequenina acostumada ao seu caldo de couves e ao feijão, com pão grosseiro por conducto, um bocado de porco pelas festas do anno e galinha quando ha doença, passará admiravelmente sem fois-gras, ragouts, mayonaise, vol-au-vent e toda a algaravía saborosa e complicada da comida francêsa, indispensavel a paladares aguçados por estimulantes, a estomagos gastos e que jámais se encheram com verdadeira fome.

Concordo em que uma dessas solidas camponezas felizes, que do amânho das suas terras tira o pão caseiro que seus rijos braços fabricaram numa nuvem de poeira e por suas mãos foi na pá atirado ao forno aquecido; que do leite das suas cabras tira o queijo salgado, que é um mimo para os seus paladares deseducados; que das suas oliveiras tira a azeitona, que sabe curtir para a fartura do anno; concordo em que esta mulher se riria desrespeitosamente se á sua merenda chamassem lanche e em vez destas simples iguarias comidas á mão, lhe apresentassem um prato de porcelana fina com brioches e um bule de perfumoso chá.

Talvez deitasse o liquido fóra cuidando que devia comer as folhas, e levasse os bolos para o folar das crianças.

Mas o que é cérto é que bem poucos têm essa abundancia, e que a maioria, principalmente aquellas que a industria apanhou na sua febril engrenagem e na oscilação das suas altas e baixas de trabalho; não têm esse bocado de pão grosseiro, nem esse saboroso queijo salgado...

Não comer manjares poderá ser justo, mas passar sem comer é intoleravel.

Ninguem se habitúa á desgraça e á dôr; ha no organismo humano uma revolta ináta ao sofrimento, que nos faz chorar e estrebuchar a cada nóva vergastada do destino.

Existem criaturas resignadas e passivas, seres embrutecidos pela miseria ou fracos por temperamento e nos quais a revolta não explúe; mas condensada em lagrimas ella hade surgir um dia, quando os famintos, os miseraveis, os despresados de todos os tempos, vierem reclamar o seu quinhão de felicidade e de far- tura.

Ninguem se habitúa á dôr, ninguem!, dígo-vo-lo eu, que tenho olhado com mais curiosa piedade para os que em baixo sofrem e maldizem a vida, do que tenho invejado e admirado os que em cima cantam a sua gloria e triunfo.

Pois bem, para debelar ou minorar o mal de que sofremos todos, os filhos duma sociedade que vive num perpetuo desequilibrio de elementos economicos e moraes, a missão da mulher, irmanada ao homem, libertada pela inteligencia, pelo trabalho e pela educação, é bem clara! O dever impõe-se-lhe de maneira indiscutivel e manda-a entrar resolutamente em acção.

Passaram, de todo, os tempos cavalheirescos. Presentemente ninguem se lembraria de nos exigir que arrancassemos das panoplias as espadas dos antepassados para armarmos os nossos filhos e mandá-los vencer qualquer sóba indisciplinado e bravío....

O perigo não será menor nas luctas que hôje sustentam os nossos soldados; a porção de coragem necessaria para tais campanhas, nos longinquos sertões ultramarinos, será a mesma ou mais talvez; mas a guerra deixou de ter para nós o mesmo sentido moral porque deixou de ter o imprevisto de duelo, em que era factor importante o valor e a força individual, para ser uma carnificina de que são executores certos os que melhores e mais numerosas armas apresentarem, os que disposerem de mais conhecimentos e de mais dinheiro, tal como no comercio.

Quando as nações se degladiam hôje, escusâmos de esperar milagres e prodigios dos homens; os mais fracos serão fatalmente esmagados, embora com elles esteja a simpathia das almas enthusiastas, como aconteceu á desgraçada Polonia, á França enfraquecida pelo Imperio, á Grecia atolada na ultima decadencia, e ao Transvaal apesar do epopaico heroismo dos seus filhos. Embora como a Hespanha espere muito do orgulho e valentia dos seus soldados; como a China confie na incontavel multidão dos seus habitantes, ou como a Russia se iluda com a força ficticia do seu colossal territorio, povoado de analfabetos e de revoltados.

Tudo mudou com o tempo — ideias, costumes, maneiras de vêr e de proceder. O que aos nossos olhos parece hôje rasoavel e justo, seria aos olhos de nossos avós o mais absurdo dos atentados ao senso comum, o mais completo despreso pelas leis e convenções sociaes.

E, como tudo mais, a missão da mulher mudou tambem. Já não é de passividades e resignações como dantes! Da espectadora indiferente passou a ser figurante; entrou definitivamente na lucta — no trabalho de preparar a alegria e o socego do dia de ámanhã.

Não admira que assim seja porque, quando os campos de batalha são a propria sociedade em que vivemos e as armas são as ideias, a mulher tem o direito, mais, tem o dever de entrar na lide, e, ao lado do oprimido, do fraco, pugnar pela felicidade ou pela menor desgraça dos que sofrem.

No caso especialissimo que me impulsiona agora, ainda mais justa é a nossa intervenção, por isso que são mulheres as que sofrem e reclamam uma migalha para a sua fome.

No direito de solidariedade que nos assiste temos o dever de pensar em que ha centenas de familias sem trabalho e que para essa terra socegada e pitoresca nas abas da Estrella se mandam soldados quando se pede pão, se responde com ameaças quando se desespera com fome.

Sem lume, sem fato, sem dinheiro, como se anuncia prenhe de desesperos e luctas para esses miseraveis que não pedem esmola e sim maior paga ao seu trabalho, o inverno que se aproxima cantando a tragedia das suas dôres, nas ventanias que destelham casebres e arrancam arvores, nas chuvas que se despenham em torrentes engrossando os rios que regorgitam em cheias devastadoras, levando as sementeiras e trazendo a agonia nas dobras da sua mortalha de neve...

Não nos importa saber se é exequivel a pretensão desses operarios que usam do seu direito da gréve para discutir com os patrões como combatentes legais, sofrendo heroicamente dias e semanas de fome, para obter um pequeno augmento, que já lhes parece fortunoso.

Não nos importa tambem saber se é atendivel a defesa dos fabricantes de panos baratos, que dizem pagar miseravelmente aos operarios porque miseraveis são os seus ganhos.

Não discutimos nem julgâmos — que não nos compete fazê-lo — mas ainda menos duvidar da convicção e da justiça dum povo que se resigna a luctar tendo por armas a fome e o proprio sacrificio, unicas que lhes deixamos nas mãos.

O que simplesmente nos interessa é a questão feminina, que este incidente põe a descoberto. Foi pelo pequeno salario da operaria que a gréve se originou, é para obter uns miseros reais para ellas que todos os proletarios de Gouveia sustentam uma lucta heroica, porque é heroismo, e até loucura, entrar numa gréve sem bolsas de trabalho, sem caixas de reserva, sem meio algum de lucta e de resistencia.

Não terão razão, essas pobres criaturas ás quais se exige umas poucas de horas de trabalho, e ás quais se dá em troca sessenta reis por dia?!... Talvez, mas pensemos em que são como nós mulheres, que pertencem, como nós, a um sexo que os homens chamam fraco e ao qual cercearam todos os meios de ganhar a vida — desde a falta de trabalho até á miseria da paga — excepto um que as inferiorisa e torna despresiveis aos seus proprios olhos!...

É pois dever nosso, daquellas a quem a educação deu um criterio mais elevado, pensar nessa multidão de desgraçadas que a miseria e a ignorancia predispõem para o crime e que, não tendo familia nem homem que as sustente legalmente, por força hãode procurar no erro o que o trabalho e a honestidade lhes não garante.

Emquanto individuos da nossa especie se rebaixarem tanto, inferiorisâmo-nos tambem reflexivamente, porque a mulher não será completamente liberta emquanto houver desgraçadas que se prostituam por miseria.

Outras, as que têm marido, e serão por certo a maior parte dessas operarias, precisam de auxiliar a familia com o seu trabalho, porque é pequeno o ganho do homem para as necessidades da familia.

Pensemos nesta desgraça a remediar e se houver alguma dentre nós que encolha os hombros com indiferença, por superior e de diferenciação de sangue que se julgue; se houver coração de mãe, que se não confranja pensando em suas filhas; espirito tão privilegiadamente temperado que ouse escarnecer de tamanha desgraça; essas que me não leiam nem atendam, porque não é a ellas que me dirijo, mas tão sómente áquelas cujo espirito e cujo coração as superiorisa e faz elementos civilisadores na sociedade.

É urgente que essas entrem na lucta gigantesca contra a fome, a miseria e a ignorancia das suas irmãs, mas não na lucta de guerrilhas e surprêsas que por ahi vamos vendo, ora obedecendo á bondade individual de uns, ora ao capricho da móda, ora ao desejo de ter o seu nome reclamado.

O que primeiro ha a fazer é a junção de todas as vontades e de todos os esforços para um fim unico e comum.

É urgente, sobre tudo, reclamar uma ou mais créches para cada terra onde a mulher tenha que trabalhar fóra de casa, deixando os filhos pela rua, ou fechados e sujeitos a mil eventualidades, entregues a quem dessa maneira explora a miseria das mães.

Créches que não sejam filhas da caridade, nem entregues a ignorantes, sujeitas a vaidades e caprichos, ás altas e baixas do fluctuante coração humano, mas créches ordenadas por lei, obrigatorias a todas as terras industriaes, sujeitas a inspecção rigorosa, com rendimento tirado da propria industria que emprega a mulher. Em França ha uma lei que obriga todas as industrias que empregam mais de vinte mulheres a ter uma créche para as suas operarias entregarem os filhos durante as horas de trabalho; em Portugal nada temos que se compare com isso; os governos não fizeram ainda as leis e os governados não lhes comprehenderiam o alcance.

Depois da créche, que é a mais necessaria das instituições numa população operaria, deve seguir-se a escola maternal, onde a criancita, que já não é admitida na primeira, se conserva até aos seis annos, em que entrará para a escóla gratuita, com livros de graça, oficinas e professores que saibam ensinar pobres seres que nas familias não têm quem os norteie no caminho do estudo e do dever.

A criança apanhada nesta verdadeira engrenagem social, deixará de ser o vadio, o atrevido garoto que povôa as ruas das cidades operarias, para se tornar uma pequena criatura que se prepara com serenidade para a travessia dolorosá da existencia, com as suas lagrimas e as suas alegrias compensadoras.

Que a mulher possa contar com a maternidade, a casa onde passe descançada o ultimo e custoso periodo da gravidez, para dali seguir para o hospital onde a esperam os cuidados prescriptos pela higiene e o conforto que em casa lhe não seria facil obter.

Emfim, ha tudo a fazer neste sentido, desde a escola de criadas e dônas de casa, até á caixa economica, obrigatorias para as mulheres, que assim teriam, em caso de gréve, doença, ou falta de trabalho, com que resistir algum tempo á fome.

Ha pessôas que imaginam tudo resolver pelo estardalhaço festivo da chamada caridade, e o que é certo é que a caridade é muitas vezes uma exploração e quasi sempre um meio impotente para defrontar a desgraça, sempre maior do que a generosidade individual.

Seja pois o esforço colectivo, cumprido como um dever, a base da nossa lucta contra a miseria, e alguma coisa bôa e profícua, estou certa, se conseguirá.

Ás mulheres compete conjurar o perigo que ameaça a sociedade de hôje, remediando quanto possivel as suas injustiças. Á mulher culta e sciente da sua nobre missão cabe o primeiro logar na empresa de cuidar um pouco no futuro do paiz e na melhoría social, acumulando para o porvir a maior soma de alegrias na maior soma de deveres cumpridos.

E o nosso dever é — parece-me bem — ouvir as queixas de todos os infelizes, principalmente das mulheres e das crianças, que são ainda hoje as maiores victimas da sociedade.

 

 
  1. Em Gouveia, no inverno de 1903.