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PELA descripção da festa realisada este anno[1] na «Escola 31 de janeiro» deveis saber que alguns homens dos mais notaveis pelos seus talentos e caracteres se referiram a nós, mulheres, em varias passagens das suas orações eloquentes. E para frisar essas passagens vos escrevo, porque é do vosso interesse, do interesse de nós todas que se trata, — e todas deveis saber o que valeis e quanto a sociedade espera e tem direito a esperar da vossa cultura e ação inteligente.
Foi-me grato encontrar nas palavras da luminosa e bondosa alma que é o dr. Manuel de Arriaga, um apêlo á mulher portuguêsa — que tem sido até hoje, no seu proprio dizer, o maior auxiliar da tirania.
Mas um auxiliar inconsciente, dizemos por desculpa, se a inconsciencia a póde ser, não o sendo a ignorancia das leis perante o delicto a punir.
Apraz-me conhecer a opinião do infatigavel batalhador sr. Heliodoro Salgado, porque essa opinião coincide com a minha, expressa em muitas paginas destas mesmas cartas, espalhada por artigos e correspondencia particular que sobre o assumpto ha muito tenho escripto.
Comoveu-me o pedido do sr. dr. Teixeira de Carvalho, o energico e brilhante espirito, feito ás Mães Portuguêsas.
Não fômos esquecidas, nessa manifestação de quanto póde a inteligencia e a vontade aliadas no bem — exercicio de força que não tem por campo de manobras os montes e as encostas duma região, mas o espaço infinito do pensamento. Não tem horizontes que se fechem em recorte de montanhas agrestes, é campo aberto a todas as energias e vontades, esplendente de luz que não queima em fantasmagorias dolorosas de febre, mas que ilumina as almas e aclara os espiritos, fazendo-os ascender ás regiões superiores da verdadeira e pura Consciencia.
Se pudessemos ter assistido a essa reunião em que festejou a criança — a pobre criança portuguêsa, tão tristemente educada, tão despresada mesmo! —o amoravel apostolo da educação dr. Bernardino Machado, mortificar-nos-ia o sentimento da propria inferioridade, que não nos deixaria responder com a confissão das nossas culpas, mas tambem com o nosso libello acusatorio aos homens livres, que têm consentido em que as mulheres sejam as mais ardentes adversarias dos seus ideais, o auxiliar passivo e inconsciente da tirania e do retrocesso.
É justa, se bem que implicada de censura amarga aos homens, a frase do sr. Heliodoro Salgado: — resgatêmos a mulher da ignorancia a que a temos condenado e ella será a nossa cooperadora na revolução.
Educar a mulher; torná-la util a si e aos seus, pelo trabalho remunerado; escolher cada homem livre esposa que o seja, não só do corpo mas tambem do espirito, não só humilde e paciente dôna de casa, mas nobre e inteligente educadora, fóco de luz e de bondade superior, irradiando na familia, como sol por onde se norteia a alma caminhando para o futuro.
Se assim fosse, a revolução deixaria de ser um facto brutal e rude para ser tão sómente uma evolução triumfante para a humanidade que marcha e se resgata...
Não ha homem que se possa dizer livre, e que afoitamente possa responder pela sua propria consciencia, em todas as horas de desfalecimento e de dôr, quando a seu lado tenha — ignorante, mas teimosa na crença; sem bri- lho na palavra, mas cheia de convicção no olhar; sem convencer pela razão, mas abalando pelo comentario de cada hora — a mulher que é a sua companheira, que foi talvez a sua paixão, que é a mãe dos seus proprios filhos.
A mulher, sempre atrazada, por mingua de educação, no evolucionar das aspirações e das novas crenças sociaes é o agente mais importante do retrocesso e da rotina.
É ella que em politica, como em sciencia, como em tudo mais, é sempre pelos velhos preconceitos, pelo estatuído, pelo comodismo egoistico e enervante do seguro, pelo que ouviu tradicionalmente e não discute nem quer ouvir julgar nem discutir...
Ora a tradição e o respeito pelo passado, se é uma virtude e um estudo indispensavel para o conhecimento perfeito dos costumes e reconstituição historica de uma época, como norma de vida e como crédo intangivel é a negação de todo o progresso e de toda a civilisação.
Conversando ha dias com um pobre barqueiro, de rio acima, ouvimos-lhe, no limitado e pitoresco vocabulario do seu chão estilo, esta observação que é curiosa, pelo que nos revela mais do que pelo que nos diz: — « agora — dizia — está tudo mais esperto. O que antigamente só podia fazer um homem velho no oficio e cheio de experiencia, fa-lo hôje, quasi sem custo, um rapaz de dezeseis annos. Os senhores haviam de vêr como rapazinhos governam ahi barcos, rio acima, conhecendo todos os esteiros e manobrando dentro dos canaes das marinhas, como os velhos só o faziam dantes ao cabo de muitos annos lidarem por aquelles sitios. É que está agora tudo mais esperto!» — Repetia, concluindo, a frase que era o seu bordão.
Não é porque esteja tudo mais esperto, como queria o homensinho, comprehendem muito bem, mas é porque está tudo um pouco mais instruido. Um rapaz de dezeseis annos que sabe lêr o seu roteiro é incomparavelmente superior ao velho ignorante que só na memoria póde armazenar conhecimentos e esses mesmos com lentidão e insuficiencia adquiridos pela prática.
A mulher portuguêsa tem vivacidade de espirito e assimilação facil; não lhe falta o enthusiasmo nem a paixão; bastaria pois que a educassem e a orientassem.
Mas de quem póde esperar esse forte impulso libertador, unico capaz ainda de levantar a alma portuguêsa a toda a altura da exigente vida moderna? Dos pais que não educam as filhas como criaturas humanas e sim como bonecas de corda, de que é preciso vigiar o maquinismo, e que em vez de lhes fornecerem educação que lhes garanta o futuro pensam com afinco em lhes amoedar o dóte, que mais facil lhes torne o casamento? Das mães, que não comprehendem o que hoje se chama educação feminina e ainda se surprehendem e assustam com inovações de que ouvem falar vagamente? Do homem, já amezendado na vida, comodista, defendendo por egoismo o que lhe satisfaz as aspirações de senhor; querendo a esposa muito sua humilde companheira, hôje prompta a servi-lo, ámanhã a ser a criada dos seus filhos ?...
De nenhum desses póde receber o salutar influxo que a torne a companheira condigna do homem civilisado, que a sociedade prepara no seio revoltoso das luctas e desesperos de hoje para um ámanhã mais justo.
É dos rapazes novos não daquelles que entraram na vida tarados para o ramerrão comodista dos empenhos e empregos públicos, numa covardia mórbida para a revolta e para a lucta — mas duma pleiade de moços a sair das escolas, cuja alma sentimos palpitar numa aspiração perfeita das suas responsabilidades, como disseo Snr. Teixeira de Carvalho. São esses os que as podem encaminhar para a emancipação intelectual, esses os que devem colocar-se ao lado das suas irmãs e, tornando-as as suas verdadeiras companheiras, prepararem o seu proprio futuro de serenidade e confiança no lar.
Então o homem póde entrar com segurança na vida e ferir as batalhas mais sangrentas sem o receio de ver atraiçoada a sua obra na propria casa, na sua familia, pela companheira da sua vida, e pelos filhos educados no despreso e no odio ás suas ideias.
O que em Portugal se tem feito pela mulher é pouco e máu, mas o que se tem feito pela criança é ainda menos e peor, se é possivel.
Por isso nos consola uma festa como a da Escola 31 de Janeiro, iniciativa de rapases das escolas, sustentadas em annos consecutivos de lucta pela esforçada coragem de dois ou três que não debandaram nem desanimaram, passado o primeiro momento do arrebatado enthusiasmo da alma meridional.
Era isto, que fizeram alguns rapases das escolas , isto que fazem hôje e sempre os snrs. Luiz Derouet, Santos Franco e outros, não afrouxando nunca na propaganda, não esmorecendo na campanha contra a indiferença do público; era isto o que eu desejava que as mulheres fizessem. Não as casadas, que têm a sua vida, os seus filhos, os seus encargos, mas as raparigas que estudam e pensam; senhoras novas e inteligentes que do pouco fizessem muito á força de energia e amôr pelas crianças, raparigas modestas que desejassem fazer obra de honestidade e proveito e não especulação caridosa para arranjar noivo mais depresa.
Seriam essas, as futuras mães e educadoras, quem desejariamos á frente de escolas e institutos infantis, criados pela sua iniciativa, vivendo do seu benefico influxo.
Ahi, no convivio da alma da infancia, tão obscura e complexa, aprenderiam o seu papel de mulheres na familia.
Na créche, ellas aprenderiam a enfachar um pequenino corpo leitoso e mole, que mais tarde a natureza lhe porá ao seio e que as suas mãos inhabeis mal poderão tocar com mêdo de que se despedace. Aprenderiam quais as doenças que mais adquire a primeira infancia; qual a maneira de as evitar e combater, o que se chama a hygiene propriamente infantil.
Na escola maternal, aprenderiam, ensinando, como é facil educar e instruir crianças de menos de seis annos, conservando-as sempre na atmosfera alta da curiosidade e da aprendisagem.
Na escola primaria comprehenderiam quanto é agradavel e facil ensinar crianças, quando a familia ou a primeira escola as enviarem já com o raciocinio desabrochado e com certas noções da vida e da natureza que as rodeia.
Nos hospitaes adiquiririam aquella prática de tratar os pequeninos doentes, que tão custosamente obtêm as mães quando a alma lhes sangra pelo soffrimento dos seus filhitos.
Nas escolas-oficinas, nas escolas práticas de cosinha, de costura e de governo de casa, em toda a parte onde se trabalhasse pela criança, a mulher solteira poderia formar o seu caracter, conhecer e fortalecer as suas aptidões, fazer a si mesmo a educação que a tornasse util a todos e lhe desse para o futuro a certeza de poder contar comsigo para provêr á propria subsistencia.
A menina solteira no nosso paiz tem uma vida sem responsabilidades sociaes e a maior parte das vezes sem utilidade nenhuma.
Anda na escola ou no collegio — as que não vão para os internatos — até a saia lhe descer do joelho e roçar no cimo da bóta. Aos primeiros signaes da puberdade, os pais atarantam-se, num pánico de grandes perigos a recear, e a pequena recolhe a casa.
Depois, se a fortuna o comporta, vem o professor particular ensinar o que póde a quem não estuda nem deseja saber, desde a pintura sem desenho até á musica sem rudimentos. As que não pódem ter professores ficam em casa com o pouco que aprenderam, a esperar que os annos, na sua fugitiva carreira, lhes traga o noivo correspondente.
Vestem com elegancia, mas não sabem fazer os seus vestidos; sabem pôr sobre os seus cabellos frisados o mais disforme e complicado chapéo, mas não o sabem enfeitar por suas proprias mãos; não costuram nem bordam a roupa da casa; não talham as suas camisas; não cosinham ou sabem dirigir o jantar da familia; não tomam a si o encargo de criar e educar os irmãosinhos mais novos. As mães poupam-nas o mais possivel. É o seu bom tempo — dizem. Deixá-las, lá virá época em que tudo aprendem á sua custa!...
Pobres dellas! Não viram, no seu exemplo, quantas amarguras representa essa aprendizagem á propria custa, desde o mau humor do marido que vê tudo feito por mãos inexperientes até ao desrespeito das criadas por quem não as sabe mandar nem ensinar.
A rapariga portuguêsa não é um ser util e respeitavel, de que os rapazes sejam fraternaes companheiros, lendo os mesmos livros, interessando-se pelos mesmos assumptos, conversando naturalmente em qualquer ocasião e com qualquer pessoa que se encontrem.
Não, ella é uma criatura no papel passivo de pretendente, esperando vagamente o numero da loteria que lhe dê o premio.
Depois, conforme este seja, grande ou pequeno , isto é, marido rico ou pobre, terá então que adaptar a trouxe-mouxe as suas qualidades assimiladoras e resignar-se ao trabalho ou pavonear-se soberbamente no luxo e na inactividade.
Para tudo está preparada, não estando habilitada para coisa alguma.
A rapariga portuguêsa é, em resumo, uma criatura encantadora, que veste com garridice, que passeia nas horas de musica, que vai ás praias, aos theatros e ás reuniões, que ás vezes lê os folhetins dos jornaes e tem ataques de nervos, de quem os rapazes desdenham e troçam — mas que, por fim, virão a ser as suas mulheres.
Quantas não têm o desejo de se tornar uteis, de ganhar para os seus alfinetes, de terem uma ocupação que as enobreça aos seus proprios olhos e as habilite a serem mais tarde livres pelo seu trabalho?!
Mas, entorpecidas pela educação, deprimidas pelos estreitos habitos da vida portuguêsa, resignam-se a não serem mais do que as outras — umas eternas aspirantes ao casamento.
Inteligente e dedicada como é, em geral, a mulher portuguêsa, que grande e bella obra social não faria, quem a pudesse interessar pelas duas questões capitaes de que depende o resurgimento da nossa patria e o futuro da nossa raça: — o trabalho livre e remunerado para a mulher, a educação, fisica e intelectual, da mísera criança portuguêsa.
- ↑ 1904