O seu crescer foi então igual e são, como o de uma flor, que, em terra bem regada e sob a fiel carícia do sol, desabrocha com esplendor. Nenhum dos males que Mestre Porcalho receava, carregando o sobrolho agoirento, veio interromper a sua florescência – e todos os dentes lhe nasceram, sem uma dor ou uma lágrima. A sua fala era tão doce, e graciosa, que a todos fazia sorrir de ternura, como o cantar de um pássaro, nas ramarias. A brancura ebúrnea da sua pele nem parecia pertencer a um corpo mortal: e, em todo ele, a inteligência resplandecia mais visivelmente do que uma luz por trás de um vidro. Uma curiosidade inquieta, insaciável, constantemente o levava, correndo, e espalhando o brilho dos seus olhos negros, através da velha morada senhorial. Não havia já na torre de Ermigues, nos pátios, nos escuros sótãos, recanto que ele não tivesse rebuscado, no impulso irresistível de tudo saber. As aias constantemente o encontravam, procurando, com os seus pequeninos braços, frágeis como hastes de flor, erguer as pesadas tampas das arcas: e se encontrava uma aberta, eram gritos impacientes até que lhe deixassem desdobrar as peças de linho, desenrolar os rolos de fitas, destapar os cofres, remexer as rendas, amontoar em torno de si, sobre o soalho, um vasto bragal devastado.
Já mais crescido, brincando pela quinta, mergulhava em todas as espessuras de folhagens, de rastos, como um bicho, emaranhando o cabelo nas silvas, para conhecer o que se ocultava nas sombras húmidas: escavava em torno das plantas para conhecer a forma das raízes: e espreitando o voar dos pássaros, trepava às árvores, para saber o segredo dos ninhos. Nada o assustava. Quando o pai, para o adestrar na grande arte de cavalgar, o montou uma manhã num potro, ele, empurrando o cavalariço que segurava o freio, largou a galopar, em torno do silvado da quinta, bem colado à sela, com os cabelos ao vento, gritando de pura glória. Se sentia ao fim da tarde os chocalhos, e a fila da boiada recolhendo, nada o detinha, e corria a bater as palmas, provocando os novilhos, ou os bois de mais largas pontas: – e constantemente o aio, aterrado, tinha de o agarrar, para que ele não descesse dentro do balde à cisterna, ou não percorresse o topo da velha muralha, saltando de ameia em ameia. Depois, à noite, à ceia, ouvindo, absorto, com a face entre os punhos, o olhar deslumbrado, as histórias de batalhas, que lia Frei Múnio no seu grande infólio – soltava brados de alegria, quando vinha um desses golpes de espada que partem o elmo, racham o cavaleiro e matam ainda o cavalo; ou quando, nos assaltos das vilas, a força de um só braço quebrava uma porta de bronze. De noite, no seu catre, gritava, sonhando com recontros de lanças. E a mãe que corria, pondo a mão diante da lâmpada, quase se aterrava, vendo na linda testa do seu anjo adormecido uma ruga de cólera heróica.
Mas D. Rui sorria, deslumbrado, certo que seu filho seria um dia um grande conquistador. Era todavia admiravelmente sensível e bom: – e Frei Múnio antes via nele os prenúncios de uma caridade que ilustraria a Igreja. Amava todos os animais, sobretudo os pequeninos: e o seu cuidado era que as pombas não sofressem sede, e não faltasse a ração farta aos galgos, no seu canil. Protegia os sapos por os saber despre-zados; e se encontrava um, na erva húmida, rente da nora, com as suas mãos, e sem nojo, o levava para longe, para que a vaca atrelada à roda dos alcatruzes o não pisasse, no seu giro dormente. Aos domingos, descendo, com os pais, a avenida de castanheiros para a igreja, a cada passo se detinha, a procurar na escarcela uma moedinha para os pobres: – e na igreja, de joelhos sobre a almofada, no altar-mor, com as mãos postas, e o seu gorro de plumas pousado no chão, tanto se penetrava da pobreza e dor por que Jesus passara, vendo o seu corpo nu e pequenino nas palhas do curral, a sua túnica rasgada pelos açoites, as suas mãos, tão doces aos tristes, varadas pelos pregos, que os olhos se lhe enchiam de lágrimas. À porta da igreja todo o povo de Gonfalim se juntava para o ver passar, com os seus cabelos louros, em anéis sobre os ombros, coberto com os veludos de um príncipe, fino e direito como uma espada toledana – mas tão simples e familiar que reconhecia os criados, gritava rindo os seus nomes – ou atirava às crianças, no colo das mães, beijos que cantavam no ar.
Aos oito anos, tendo Frei Múnio preparado num quarto da torre de Ermigues, por ser mais silenciosa, livros, folhas de velino, e grossas penas, Gil começou a aprender as letras, a escrita, a História Santa, e os cálculos dos Árabes. Por mais lenta e longa que fosse a lição, ele permanecia atento e grave. A sua alegria foi ruidosa quando soube escrever o seu nome e os seus apelidos, com letras ornadas e floridas. Mas quanto mais viva e funda a dos pais, quando o ouviram ler, sem gaguejar, no grande livro de Frei Múnio, as batalhas de Alexandre, e de Roldão, par de França!
Tão orgulhoso andava o bom Senhor do saber do seu filho, que o quis mostrar aos santos padres beneditinos, seus vizinhos e aliados. Montado na sua mula branca, com Gil ao lado sobre o seu alazão, passaram a velha ponte romana, uma tarde, subiram a calçada nova, que por entre álamos levava à grossa porta chapeada de ferro, como a de uma cidadela. E logo no pátio, bem plantado de ciprestes, encontraram, entre dois fortes carros de bois, o D. Abade, dirigindo o carregamento de seis pipas de vinho branco, dos vinhedos do convento, que ia mandar de presente ao Papa.
Com grande contentamento, acariciando os lindos cabelos de D. Gil, o prelado muito sapiente conduziu os seus vizinhos para os lados do claustro, mandando a um leigo que trouxesse um açafate de fruta, e um pichel daquele vinho branco que era a glória da sua herdade. Mas, no claustro, como era sábado, toda a sábia comunidade, numa longa fila, só com a túnica, e sem capa, estava sendo barbeada: – e o D. Abade caminhou para a entrada da cerca, onde se sentou, entre os seus hóspedes, num banco de pedra, junto de uma fonte, que de entre rochas cantava num tanque de mármore.
Aí o bom Senhor contou ao prelado o grande amor do seu Gil aos estudos, e como já traçava a letra grande e miúda, e quanto lhe eram familiares todas as sagradas histórias: – e andava ele pensando se seu filho, bem ensinado por outro mais lido em livros que Frei Múnio, não se tornaria um bom escolar em leis, ou fino sabedor das Artes de Curar. Então o bom prelado, tomando a mão de Gil, e indicando a pedra polida e branca que encimava a fonte, convidou risonhamente Gil a ler a inscrição que lá gravara, havia anos, um douto monge daquele mosteiro. Sem esforço, o moço gentil decifrou as rudes letras entalhadas, que diziam: – «Clara e perene, como sai esta água desta rocha, brota a bondade dos nossos corações...». E o bom abade admirou este precoce saber. Mas quanto mais o seu grande conhecimento das Histórias Sagradas! Direito, com um brilho nos lindos olhos, e como se conversasse de coisas familiares e íntimas, o moço gentil, interrogado pelo D. Abade, contava a grande cólera de Jeová, Caim fugindo através dos montes, a chuva durante quarenta dias, José governando o Egipto, o Povo errando no deserto, Jericó caindo ao estridor das trompas...
Todos os pássaros se tinham calado, em redor, na ramaria da cerca. A água caía da rocha, com um murmúrio abafado. Uma doçura maior amaciara o ar: – e os raios do Sol que descia ficaram parados, dourando com tons de ara o banco de pedra, onde Gil dizia as divinas histórias. Então o bom abade, pousando a sua gorda mão sobre a cabeça de Gil, afirmou que havia ali um agudo entendimento, e que bem devia D. Rui, pois tinha cabedal, mandar aquele moço estudar a França, terra de grande sapiência... O pai murmurou: «Tão longe!
Não. Não havia longes terras para ir buscar o Saber. Mais longe se ia a Jerusalém, para alcançar a Graça! E a sapiência, tanto como a Graça, conservava a alma limpa do mal... – Desejou então que D. Rui provasse o seu vinho branco. E tendo dado a ambos a bênção de Deus, e ordenado a um hortelão, que ali regava as plantas, que metesse num açafate cerejas e rosas para a Senhora D. Tareja, tomou o braço do noviço, porque tocara a vésperas – e ele devia dispor uma remessa de relíquias destinadas a uma herdade do convento, visitada, recentemente pelos repetidos flagelos do fogo, lobos e sezões. Os dois senhores beijaram a sua mão reverenda – e recolheram contentes ao solar, pelo caminho da Ermida.
Gil começou então a estudar com tanto fervor – pensando sempre nos louvores do D. Abade – que bem depressa soube tudo quanto sabia o doce Frei Múnio. Mesmo muitas vezes perturbava este discreto Mestre, com a sua curiosidade temerária, que tudo queria compreender, até a Ordem da Natureza. Era sobretudo à tarde, quando para repousar das práticas estudiosas, ambos subiam ao eirado da torre de Ermigues, e lentamente passeavam em volta das ameias todas verdes de hera. O céu arqueava por cima a sua abóbada de azul-claro, imutável e sempiterna. O Sol, como uma roda de metal candente, roçava a espinha dos montes, dardejando longos raios. E a terra, escura e maciça, estendia a sua ondulação de vales e serras, até onde o olhar se perdia.
Então D. Gil queria saber qual era, na verdade, a forma da Terra: para onde ia o Sol, quando se sumia tão serenamente por trás dos montes: e quem sustentava assim, tão firme, a abóbada do céu. Para satisfazer o seu discípulo, Frei Múnio folheava os in-fólios, que pedia emprestados à livraria do convento, sobre os Ensinamentos da Prudência, obra mirífica que, nas suas laudas fortes, encerrava a suma do saber beneditino. E pondo o dedo na lauda, explicava a Gil que a Terra é quadrada, tendo por centro, na face voltada para o Céu, a santa cidade de Jerusalém: que o Sol, de noite, vai alumiar o mar, e por vezes, em dias de festa, alumiar o Purgatório: e que, quem ampara esta abóbada, cheia de luz, de estrelas, de nuvens, de ventos, são os quatro evangelistas, aos quatro cantos do mundo, com as suas mãos que tudo podem, por terem tocado as mãos do Senhor.
Mas nem sempre D. Gil parecia persuadido. E puxando para si o in-fólio, relia a boa doutrina, mais detidamente, como quem, para um recanto mal alumiado, chega uma luz mais forte. Tanto amor ganhou então a estes livros, e ao saber que deles tirava, que não houve mais para ele outro interesse ou cuidado. Logo desde a alvorada se encerrava na torre de estudo, diante da vasta mesa que os fólios majestosos cobriam: – e muitas vezes às horas de comer, tendo já o varlete da mesa tocado três vezes a buzina, tinha D. Rui de subir a escadaria da torre, e sacudir-lhe o braço, para o arrancar ao estudo, onde a alma se lhe afundava, como num mar de deleite. Passeando na quinta, a cada passo tirava da escarcela um pedaço de velino, e, encostado a um tronco de árvore, com o olhar ora esparso pelo chão, ora alçado lentamente ao céu, traçava linhas vagarosas. Tão alheado vivia no seu pensar, que D. Tareja tinha de lhe pentear os cabelos que ele deixava emaranhados, e de lhe laçar os atilhos dos seus borzeguins de couro mole. De noite, com o candil pendurado junto do leito, e um fólio no travesseiro, lia ainda, lia tanto, que já as andorinhas cantavam no beiral da sua janela quando ele, com um suspiro, e a custo, cerrava os fechos do fólio.
Começou a emagrecer, a sua pele tomou a palidez de uma cera de altar – e Mestre Porcalho declarou, sinistramente, que já nos olhos do senhor D. Gil se sentiam os prenúncios do tresler.
Então, para o afastar dos livros, D. Rui organizou para ele uma matilha de caça. O canil foi alargado, coberto de colmo novo: e o latir dos mastins, dos perdigueiros, dos lebréus barbarescos, atroava o solar. Ao lado havia um alpendre para os falcões: – e um homem hábil, que viera de Viseu, estava instalado na abegoaria, fazendo redes, armadilhas laçarotes, e capuzes de couro para os açores.
D. Tareja, abraçada no filho, conseguiu dele a promessa que todas as manhãs sairia a montear, para que, nos fortes ares da serra, lhe voltassem as cores da saúde. Mas ele quis primeiro aprender a Arte de Caçar – e foi ainda um motivo de se enterrar entre velhos cadernos, de letra miúda, em que se ensina a adestrar os lebréus, a afoitar os falcões, a conhecer as pegadas do lobo, o cheiro dos veados, e ainda os ventos mais propícios à caça, as orações que se devem a Santo Huberto e o modo de impedir que os espíritos malignos transviem na serra a caçada. Depois desejou ainda aprender nos livros os hábitos dos animais – a que horas bebe o veado, onde faz ninho a perdiz, que manha tem o javardo, e o rumo do voar das águias.
Em tantas leituras, mais se definhou – e, perante as lágrimas da mãe, decidiu enfim começar as grandes manhãs de caça.
Com que alegria D. Rui e D. Tareja, do alto das escadas do solar, o viram, montado no seu alazão, airoso na sua cota de couro branco, com o falcão emplumado sobre o guante – e em volta os lebréus, puxando as trelas e latindo. O monteiro soou a trompa – e, bom caçador, voltando-se ainda na sela para atirar um beijo à mãe, passou a ponte levadiça, num grande brilho de sol, que então saía de entre as nuvens.
Voltou por noite cerrada, com uma cor forte nas faces, um cheiro de mato nas roupas, tendo morto um veado, lebres, todo um bando de codornizes – mas descontente das suas proezas. Não iam ao seu coração doce as violências da caça; e os lebréus partindo a espinha dos coelhos, entre as urzes; o falcão, despedaçando nos ares uma pobre ave, e voltando a pousar-se no guante, todo enrufado; as setas espetadas no pescoço dos veados, que ficavam bramando, com grandes olhos agoniados; todas estas ferocidades, findo o impulso que as inspirara, entre os gritos dos monteiros, e o ressoar das buzinas, lhe davam como a tristeza de um arrependimento. E, de noite, no seu catre, só, chorou pelos animais mortos.
Voltou ainda uma manhã à serra com falcões e lebréus. Mas nenhuma seta saiu da sua aljava de couro suspensa do arção da sela; todo o caminho os monteiros, retesando as trelas, contiveram os cães, que latiam desesperadamente: e debalde os falcões, retidos pelos laços de couro, batiam as asas impacientes sobre o braço dos falcoeiros. Nem animal nos cerrados, nem ave no ar foi molestada. Gil galopava contente, respirando os ares ásperos e fortes da serra. Pela tarde, cansado, dormiu à sombra de um roble. E quando recolheu, na doçura da tarde, de todos os lados do caminho, dos cerrados e das tocas saíam animais, que o espreitavam, e seguiam mesmo algum tempo, confiados e alegres: dois pavões, de repente, quando ele passava, desdobraram as suas caudas como para o festejar; uma cobra enorme, que atrancava o caminho, desenroscou-se para ele passar; muito tempo, um bando de rolas brancas, voou a seu lado serenamente. E, quando ele entrou no pátio do solar, todos os galos cantaram.
Desde esse dia não voltou a sair com falcões e lebréus. Mas ganhara o amor das longas galopadas nas serras – e, todas as manhãs, no seu ginete aragonês, levando apenas uma espada, transpunha a ponte levadiça, penetrava nas terras. Sob o sol, sob a chuva, todo o dia caminhava, ora galopando nas planícies, ora a passo, gozando a frescura das ramagens, bebendo no fio dos regatos, comendo amoras silvestres; ou por vezes, no alto de um cerro, desmontado, com o seu ginete à rédea, contemplava pensativamente os vales, os caminhos coleando nas encostas remotas, os horizontes remotos, pensando no mundo tão vário, que ficava para além. À noite recolhia, enlameado, com silvas no fato, um grande cheiro de mato e de serra, o olhar todo brilhante – e era ele quem entretinha o serão, conversando, e com tanta verdade e saber, e tão belas histórias, e uma tão perfeita graça no dizer, que o pai, a mãe, embevecidos, ora lhes parecia ouvir a sapiência de um missal, ora a doçura de um canto.