Mas em pouco o Senhor D. Gil começou a andar pensativo. Já não gastava então o dia todo nos campos: – mas só a certa hora, a mais quente, quando todos repousam, ele mesmo arreava o seu ginete, e partia, sem ruído, como se receasse ser apercebido, mesmo dos cavalariços. Depois, quando voltava, um brilho de singular felicidade aureolava o seu rosto, tão lindo: – mas, todo o serão permanecia calado, como num doce e ditoso cansaço, que por vezes cerrava as suas longas pestanas negras, enquanto D. Rui, grave na sua cadeira de espaldar, afagava a barba grisalha, e D. Tareja, já mais pesada, retardava os fios lentos da sua tapeçaria.
Às vezes mesmo, como se a sala, alumiada por duas tochas, o abafasse, abria as portadas da janela, e, sentado no peitoril de pedra, olhava as estrelas, pensativamente, ou a Lua.
Certas noites, mesmo, saía para o pátio, onde a lentidão pensativa dos seus passos traia algum cuidado muito fundo da sua alma: – e a mãe, que, deixando escorregar a tapeçaria, o ia espreitar, entre os vidros, sentia-o por vezes suspirar e com suspiros que não eram tristes. Os seus livros jaziam na torre fechados e cobertos de pó. E a sua ocupação, era antes percorrer o jardim, onde por vezes apanhava um botão de rosa que guardava no seio do gibão.
Quis então aprender a viola e o canto, como se as coisas vagas e sem nome, que lhe tumultuavam na alma, só pudessem ser traduzidas pela doçura do tanger, e do trovar. E agora, muitas noites, quando todo o solar dormia, e dormia o rio e o vale, e na terra se não via luz, além da lâmpada que ardia no cruzeiro da velha ponte romana, Gil, à janela do seu quarto, soltava, no silêncio e na escuridão suave, uma doce vibração de cordas, e um murmúrio de endecha, em que vagamente cantava de uma selva, de uma fonte clara, e da alma que lá lhe ficara.
Era com eleito para uma selva frondosa, a uma nascente de água viva, que todos os dias, à hora da sesta, ele voltava o galope do seu alazão aragonês. Ficava esse doce sítio no fundo de um vale, de onde nada se via, de entre o arvoredo que o cercava, senão o grande azul do céu benéfico. Uma água fria saía de entre rochas, e, caindo de pedra em pedra, formava um riacho claro, que ia cantando e fugindo, sob a ramagem de grande arvoredo. Mas, num sítio onde as árvores clareavam, a água mais lisa e larga fazia um remanso, como um lago pequenino – e, daí, subia desde a margem húmida e florida de margaridas, até ao cimo de um doce outeiro, uma relva igual e tenra, onde os gados podiam pastar.
Ali desmontava D. Gil, prendia o seu cavalo a um tronco de árvore: – e se tudo estava deserto, tocava na sua buzina. Bem depressa um rafeiro ladrava: – e pelo alto do outeiro, redondo e verde, aparecia uma pastora, com a roca à cinta, e com ela, um rebanhozinho de ovelhas. Ambos sorriam, corando, a pastora, e o Senhor D. Gil. E enquanto o gado bebia na água clara, ambos se sentavam na relva, à sombra da mesma faia que os tinha abrigado, na tarde em que D. Gil, vindo ali descansar de uma longa correria nas serras, lá encontrara a pastora, no momento em que uma nuvem grossa passava, e dela caía um grosso chuveiro.
Desde então, todas as sestas ali se encontravam, na mesma relva se sentavam, e mesmo sem que falassem, só por se sentirem junto um do outro, naquela solidão, sob as sombras que na véspera os tinham coberto, os seus olhos, brilhando e rindo, se humedeciam de felicidade. Um pobre surrão de estamenha, cingido à cinta por uma corda, era todo o vestuário da pastora: através dos rasgões que nele tinham feito os silvados, a pele do seu peito, do seu joelho, brilhava, como a brancura macia de um mármore fino: e sob os cabelos despenteados, na face linda que o sol e o ar da serra crestara, o largo azul dos seus olhos grandes, que pareciam sempre maravilhados, tinham o brilho divino do azul do céu, e a graça tímida do azul dos miosótis. Gil só sabia que ela se chamava Solena, e que servia de pastora, desde pequena, a um velho que tinha a sua granja para além das colinas. Sentados na relva fresca, tinham grandes silêncios: ele tomava a mão da sua amiga, e fazia girar, sorrindo, um pobre anel de chumbo, que lhe enfeitava o dedo: ela erguia da relva o gorro de Gil, e acariciava as plumas brancas que o ornavam. Brincando, ela lavava, no riacho claro, os seus pobres pés que a serra endurecera: e ele apanhava flores silvestres, que lhe metia, rindo, no cabelo. O cuidado de ambos era saber se tinham pensado um no outro: e baixo, com os dedos enlaçados, contavam os sonhos que lhes tinham encantado a noite.
Nunca Gil falava do rico e nobre solar que habitava, mas ela decerto o considerava como filho de um rei, igual ao de uma história de fadas que sabia, porque às vezes lhe dizia: «Um dia vais, e não voltas mais». Ele jurava, muito grave, que passariam a vida juntos, sentados naquela relva, vendo correr a água clara.
As ovelhas brancas pastavam pela encosta. O rafeiro dormia ao lado de Solena, E ela então, prendendo um joelho entre as mãos, os seus claros olhos erguidos para as ramagens quietas, começava a cantar. E era tão doce o cantar, e tão linda a cantiga, que Gil se punha a pensar em cantos que ouvira às aias, quando era pequeno, e em que fadas adoráveis tomam a forma de pastoras, e cantando como Solena cantava, atraem para o alto das serras os cavaleiros que passam. Como ele iria contente, mesmo para a morte, levado por ela! De tão perto, então, mergulhava os seus olhos nos dela, respirava o seu respirar, que o seio pequenino de Solena arfava, sob a dura estamenha. Um enleio, que era cheio de doçura e tristeza, invadia os seus dois corações. Ambos sentiam como vontade de chorar. E por vezes, ambos bruscamente se afastavam, como envergonhados – ele indo bater no pescoço do seu ginete, que escarvava a relva impaciente, ela dando alguns passos, ao longo do riacho, com a sua roca, e fiando, com os dedos tão trémulos, que o fuso lhe caía na relva. Mas bem depressa ele gritava: «Solena!», corria atrás dela, passava o braço em torno da sua cinta, que ele sentia quente e como nua, através do surrão: e assim, iam calados, ao comprido da água murmurosa, para se sentarem mais longe, noutra relva, à sombra de outro arvoredo.
Mas pouco a pouco a tarde caía. Ela de novo apanhava a sua roca, chamava o rafeiro. Gil murmurava: «Ainda não!» E quando por fim, tendo infinitamente repetido «Adeus, Deus te leve», Solena subia o outeiro, com as suas ovelhas atrás, ele ficava ainda revendo os lugares onde tinham pisado a relva, a água em que ela mergulhara os pés, todo aquele arvoredo, por onde se evolara o seu canto. Depois, montando com um grande suspiro, recolhia sob a doçura da tarde, sentindo também na sua alma a tristeza de um escurecer.
Um dia, chegando junto do ribeiro, e tendo tocado a sua buzina, não ouviu ladrar o rafeiro nem Solena apareceu, com as suas ovelhas atrás. Impaciente, correu ao cimo do outeiro – e, até onde os seus olhos inquietos podiam abranger, não avistou rebanho, nem pastora. Ainda esperou, errando, tristemente, junto à água, e sob as árvores. E só quando escureceu, tornou a cavalgar, recolhendo a passo, as rédeas caídas, tão triste, que um bando de ceifeiras, que passavam cantando, cessaram o seu canto, e o ficaram a olhar, compadecidas. À ceia, os seus lábios nada tocaram – e apenas Frei Múnio dera as graças, ele, beijando a mãe com uma ternura mais viva, correu para o seu aposento, caiu sobre um escabelo, diante de um retábulo da Virgem, e ali ficou toda a noite, perdido numa saudade, que não tinha nome nem fim.
Com que ansiedade, logo de madrugada, correu de novo à fresca fonte, onde «a alma lhe ficara!» Mas o Sol ia alto, três vezes ele tocara a sua buzina – e nem o rafeiro latiu, nem apareceu a pastora! Então, desesperado, largou a galopar por vales e outeiros, sondando todas as espessuras de bosques, parando a olhar o fundo dos barrancos, subindo aos cimos, gritando, pelas quebradas, o nome de Solena. Mas, em torno dele, só havia solidão e mudez.
Pela tarde, avistou uma velha, que subia uma encosta, apoiada ao seu bordão, carregando um molho de lenha.
Correu, interrogou a velha – mas ela, tonta e vaga, não compreendia, e Gil outra vez abalou, sem esperança, não vendo os caminhos por onde corria, com as lágrimas que lhe bailavam nos olhos. Já o Sol descia, quando junto de uma cruz que se erguia entre três carreiros, encontrou dois homens, que descansavam, um segurando pela mão um burro carregado de vasilhas, outro com duas lebres mortas às costas, penduradas numa lança: ao ver Gil que colhera as rédeas, o caçador tirou a gorra de pele de raposa e dobrou o joelho como um servo: – mas quando Gil lhe perguntou pela pastora e pelo rebanho, nem ele, nem o homem do burro, o souberam informar. Gil, com um grande suspiro, meteu pelo caminho de Gonfalim.
Toda a noite velou numa ansiedade mortal. Ora a supunha inconstante, esquecida dele, tendo levado para outro sítio, para a beira de algum pastor como ela, o seu rebanho, e o seu lindo cantar; ora a imaginava na granja do amo, doente, ou morta talvez, devorada pelos lobos, levada pelas águas de uma torrente.
E o seu desespero era não saber qual o amo, a granja, que ela servia, onde ele pudesse correr, e saber a verdade. A tocha de cera, que ardia a um canto, estava derretida. Já a manhã clareava. Abriu a porta, desceu ao pátio, à quinta, a espalhar a sua dor na frescura das ramagens. Um homem, que apagava uma lanterna no muro da cavalariça, correu para ele, tirando o seu gorro de pele de raposa. Gil reconheceu um Pêro Malho, falcoeiro, que desde o Natal tomara serviço no solar.
– Meu senhor! – disse o homem – a pastora porque ontem perguntáveis, no Cruzeiro, quando eu lá estava, com duas lebres às costas, guardava umas dez ovelhas e tinha um podengo amarelo?...
Gil agarrou o braço do homem:
– Diz!
Então Pêro contou que o podengo fora encontrado morto; um almocreve achara adiante as ovelhas perdidas; de madrugada passara nesse sítio um bando de homens de armas, que vinha das bandas de Aguiar. A pastora fora decerto roubada.
Gil ficou mais branco que a cal do muro que lhe ficava por trás. E com um tom de comando e de força, como se aquela dor por que vinha penando do Donzel houvesse feito surgir o Homem, ordenou a Pêro que desse o alarme aos moços de armas, se armasse ele de ascuma e loriga, e estivessem todos, com cavalos, ao pé do Portelo da Faia. Depois, subiu as escadarias de pedra, e na velha sala de armas, onde há tanto tempo só entrava o serviçal para sacudir a poeira, vestiu a cota de malha, e o capelo, que seu pai lhe dera, escolheu uma lança de monte, e armado, tendo feito o sinal-da-cruz, desceu devagar para que nem as aias se apercebessem, e foi ter ao Portelo, onde, um a um, espantados, ainda com os olhos inchados do sono, vinham chegando os homens de armas.
Eram os sete que havia no solar – e já velhos, tendo perdido nas tarefas da lavoura os hábitos do capelo e da cota, que se tinham enferrujado, e com as lorigas de couro mal juntas, os coxotes mal afivelados, montando velhos ginetes, a que quietos anos de sono e ração farta tinham tirado a ligeireza e o garbo, formavam um troço de homens toscos e moles, de que se riria qualquer bom cavaleiro, voltando da Fronteira e dos Mouros.
Mas, quando o senhor D. Gil, no seu grande fouveiro, sacudiu a lança e partiu, lá galoparam, mal acostumados à sela, enrolando por vezes na cima as mãos calejadas do arado e do malho.
Bem depressa, porém, a carreira parou, no encontro de dois caminhos, porque D. Gil mal sabia o que o levava, assim armado, com a sua ronceira mesnada de sete homens de lavoura, através dos campos quietos. E os seus belos olhos de novo se enevoaram de lágrimas de donzel, sentindo que a sua grande cólera era vã, e sem alvo, como uma lança arremessada contra o vento! Para onde ir? Contra quem correr? Se a pobre Solena fora roubada, para onde a tinham levado os seus roubadores? A que solar pertenciam? Como tomar a desforra com esses sete homens mal armados?
– Que fazer, Pêro?
Ao seu lado Pêro Malho, montando um ginete pequeno de longas clinas, com uma loriga de tiras de couro negro, tomara o lugar de escudeiro. E com a sua ascuma atravessada na sela, coçando o queixo rapado, pensativamente, terminou por aconselhar que se fossem pelos caminhos, e pelas herdades, indagando da passagem desses homens armados, que tinham vindo de Aguiar.
– Assim seja, Pêro.
E todo o dia, por vales e outeiros daquela terra pouco habitada, a cavalgada trotou, sob o sol de Agosto.
Mas nem um almocreve, que conduzia, cantando, os seus machos, nem um bando de jograis que iam para a feira de Vouzela, nem duas moças que cavavam à beira de uma herdade solitária, lhes souberam dizer dos homens que procuravam. Pela tarde, quando o Sol descia, indo por um carreiro entre cerros, avistaram no alto a torre negra, as ameias de um paço acastelado. A levadiça estava erguida, e tudo parecia deserto, na tristeza do poente. D. Gil fez soar a sua buzina: – nenhuma atalaia apareceu entre as ameias. Mas, tendo costeado o cerro, e entrado num campo, que um valado cercava, dois homens correram, com chuços, gritando:
– Cá por aqui é honra! A que vindes?
Pêro, alçado nos estribos, gritou:
– De quem a torre?
– De Lanhoso, e não há cá ninguém.
A cavalgada seguiu – enquanto outros homens, besteiros e moços do monte, se acercavam também do silvado, gritando também, com tom de ofensa e de briga:
– Cá por aqui é honra!
D. Gil, cujos olhos faiscavam, colhera as rédeas, apertava a lança – mas já Pêro Malho o retinha, com bom conselho. De que servia brigar? Com sete homens não se assaltava um castelo.
Os beiços de D. Gil tremiam. Talvez, dentro daqueles muros, estivesse agora a pobre Solena, perdida sem remissão. De que servia andar na vã empresa? Os homens violentos que a tinham levado estavam decerto metidos com ela dentro de muralhas e torres. Só o poder de el-rei a poderia libertar. Não ele, com os seus sete criados... E mesmo que corresse sobre aqueles, ou homens de outro castelo, como saber se eram esses na verdade os culpados, e se não estaria inocente o sangue que então corresse? Só lhe restava chorar aquela flor, que ele descobrira, e que outros tinham colhido.
Nesses pensamentos o colheu a noite, e foram pernoitar a uma herdade, onde o pobre fazendeiro, um velho, ficou aterrado ao ver aquele Senhor, com os seus homens de armas, que decerto esvaziariam a sua capoeira, e levariam a palha do seu palheiro, sem lhe dar um maravedi. Mas quando Gil declarou que tudo pagaria pelo preço de Vouzela, foi uma festa na herdade, ate desoras, em torno de uma grande fogueira, e os homens de armas esvaziavam os pichéis de vinho, rindo das histórias que contava o facundo Pêro Malho.
D. Gil, embrulhado no seu mantel, pensava em Solena, nas tardes junto à ribeira, e naquela fraqueza dos seus braços, que a não podiam salvar. Mas, mesmo que a arrancasse de entre os homens brutais que a tinham levado, seria ela a mesma Solena, que embalava nos braços o anho branco? Não, Virgem Santa! A lama sujara a água clara. A pata do boi pisara a flor silvestre. Ai dele! Da Solena, que conhecera, nada restava, e era como se ela morresse, e o seu lindo corpo, que alvejava entre os rasgões do surrão, estivesse apodrecendo na vala escura. As lágrimas, ao pensar assim, caíam nas suas faces: – mas a violenta angústia cessara, como um temporal, e agora uma saudade se estabelecia na sua alma, calma e doce como o luar triste que se espalha pelos campos, depois que passou a tormenta.
De manhã, tendo os seus homens já montado, não quis recolher ao solar. Era como uma esperança de poder ainda talvez socorrer a mísera pastora, e uma vergonha de voltar a depor na sala de armas, entre a poeira, a sua lança que não servira.
Todo o dia ao acaso trilhou os caminhos. Ao passar pelas granjas, fazia ressoar a sua buzina. Se avistava algum cavaleiro, montado na mula de jornada, estacava, com a lança a prumo sobre o coxote; o cavaleiro passava tirando o gorro; e D. Gil retomava a marcha. Por vezes, enervado, impaciente, despedia numa longa carreira – até que homens e cavalos estacavam arquejando.
E no despeito fundo que sentia, com aquelas correrias sem destino, e sem glória, desejava ao menos encontrar um lobo, um touro bravo a derrubar. Os homens, cobertos de poeira e suor, praguejavam já surdamente.
Ao descer do Sol, à vista de um pinheiral que cobria um outeiro, sentiram de repente um grito, depois outro. «Louvado seja S. Tiago!» exclamou logo Pêro. D. Gil, largando a rédea, correu para o bosque escuro – e num barranco, avistaram, entre fardos e caixas caídos da mula que os carregava, três homens de armas que amarravam a um tronco um velho, enquanto atavam com uma corda os pés de um rapazito, cheio de sangue na boca. Os três cavalos dos homens esperavam à orla do pinheiral: e antes que D. Gil pudesse usar a lança, já os três homens, saltando sobre os ginetes, fugiam furiosamente.
O bom cavaleiro largou sobre eles com dois dos seus solarengos – mas, conhecendo decerto os caminhos que se cruzavam entre o arvoredo, os três homens tinham desaparecido na espessura. Então, voltou para o velho, que Pêro desamarrara, e que, tremendo todo, e gaguejando, contou que ia com o neto levar duas jardas de pano de almafega ao paço dos Senhores de Solores, quando fora assaltado e espancado. O rapazito tinha dois dentes partidos, um ombro com a carne rasgada de uma lasca de pedra, e D. Gil lamentou não saber, como todo o cavaleiro deve, a arte de curar as feridas. Fez montar a criança, que desmaiava, à garupa de Gundes, o seu homem de armas que trazia o cavalo mais forte; a carga foi arrumada sobre a mula; e três dos seus solarengos, com Gundes, acompanharam o recoveiro ao solar de Sobres. Depois, quando viu o velho partir, assim bem escoltado, largou a galope para Gonfalim, tão alegre agora, e satisfeito com a vida, que rompeu a cantar.
A noite cerrara, quando a cavalgada chegou à levadiça do solar.
Serviçais esperavam com tochas – e Gil, desmontado, caiu nos braços de D. Rui e de D. Tareja, que, sem saber para onde partira o filho do seu coração, com cavalos e armas, tinham passado dois dias no alto da torre de atalaia, olhando sofregamente os caminhos, tremendo a cada rolo de poeira que ao longe se enovelava, e fazendo ricas promessas a todos os santos do Céu. Mas, quando o viram tão airoso e forte, na sua armadura, nem o repreenderam do terror que lhes dera, embevecidos com o seu belo cavaleiro, que lhes parecia tão belo como S. Miguel armado. D. Tareia passava as mãos com amor na cota brunida. Foi D. Rui que o desembaraçou da rodela e da lança. E quando à ceia o bom Senhor soube de como ele libertara o recoveiro, e o neto, e os três bandidos tinham fugido – não se conteve, no seu entusiasmo, e gritou com uma punhada na mesa que fez tremer os pichéis de estanho:
– Vida de Cristo! Que nunca ouvi, nem sei que se conte nos livros, de mais justa façanha!