40 anos no interior do Brasil/Nosso amigo Thaty

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Nosso amigo Thaty


Ele não era exatamente nosso “amigo”, mas quando voltava a fazer das suas dizia-se imediatamente: “O amigo Thaty aprontou uma boa de novo!”. Ele era um pequeno empreiteiro na construção da ferrovia, um italiano, napolitano, desaforado, ignorante, simpático e atrevido, mas ainda tinha uma ótima qualidade: fazia uma sopa excelente, e eu tenho quase certeza que ele nunca na vida foi engenheiro ou algo parecido, mas somente o cozinheiro de um deles.

Os trabalhos que ele fazia eram muito ruins. Eu me lembro que ele construiu uma ponte provisória e eu fui mandado para vistoriá-la. Lá o amigo queria me levar para tomar o café da manhã com ele de qualquer jeito. Provavelmente tinha imaginado me dar tanto vinho que eu não teria conseguido ver nada. Mas ele fracassou; eu fui primeiro até a ponte. Meu Deus, que coisa era aquela! As vigas eram tão fracas que nem uma carroça poderia passar, muito menos uma locomotiva. Quando nós voltamos, ele tinha esquecido completamente que havia me convidado para o café da manhã!

Ele tinha um trem a sua disposição, para aumentar os aterros. Pois lá estava ele, no primeiro vagão e dava sinal de partida com um tiro para cima e o sinal de parada com dois. Isso parecia muito exagerado, mas devia servir também para conter seu pessoal; pois tinha brigas constantes com eles e tentava enganá-los de todas as maneiras.

Mas uma vez ele sofreu uma injustiça. Foi um sueco, um gigante, o qual exigiu seu ajuste de contas.

“Agora, meu caro, vamos ver o que você me deve!”

“Eu devo ao senhor? Estás sonhando!”

“Calma, amigo! Você trabalhou um pouco, deve mais um pouco na cantina, foi meio atrevido e por isso eu descontei mais um pouco, portanto você fica me devendo ainda um pouco. Concorda?”

O sueco sorriu.

“Por favor, o senhor poderia verificar minhas contas mais uma vez?”, e nisso ele larga um pedaço de papel e uma faca sueca, conhecida como knölleknif, sobre a mesa.

“O que significa essa faca?”

“Veja bem, seu Thaty, talvez eu conheça o mundo um pouco mais que o senhor! Já estive na Índia, em Java e ainda fui policial em Nova Iorque. E eu sei bem como lidar com pessoas do seu tipo! Se eu não tiver meu dinheiro na minha mão até amanhã ao meio-dia, então o senhor terá esta faca em seu bucho!”

Thaty olhou-o e viu os olhos duros como vidro, então também riu.

“Quer saber, aqui está o seu dinheiro! Mas agora faça o favor de ir embora imediatamente; de pessoas como o senhor eu não preciso!”

“Eu bem sabia que nós íamos nos entender, meu caro Thaty”, e rindo amigavelmente o sueco desapareceu.

O presidente da companhia veio do Rio de Janeiro. Quando nós chegamos com o trem extra na secção de Thaty, encontravam-se bandeiras e guirlandas por toda parte. Thaty nos recebeu em seu rancho e pediu ao presidente, que tomasse um modesto café da manhã junto com todos os demais convidados. Este aceitou, mas ao invés de um modesto café recebermos um opulento banquete, que certamente teria custado uns mil marcos ao vigarista. No entanto ele sabia por que tinha gastado o dinheiro; pois conhecia sua gente. Quando nos foi oferecido champanhe, ele começou um brilhante discurso, elevou o presidente às alturas e disse que ele teria somente o desejo, que a estação, que passaria muito perto dali, levasse o nome do nobre presidente e que lhe fosse permitido poder saudar desde já as terras que levariam seu nome. Para isso seria necessária somente uma pequena mudança, isto é, que a estação deveria passar aqui pelo lugar, onde eles agora se encontravam; e finalmente, seria indiferente se a estação fosse posta um ou dois quilômetros mais adiante ou atrás. O presidente perguntou ao engenheiro-chefe e este não teve coragem de dizer-lhe que infelizmente o lugar escolhido seria ruim, pois uma parte do trajeto teria de ser posto no nível na subida, para isso as subidas que existem antes e depois da estação teriam de ser elevadas consideravelmente. Ele disse então, que mandaria fazer e uma troca de cortesias geral começou, e Thaty foi o herói do dia. Então mais tarde ficamos sabendo que toda aquela terra ali pertencia ao Thaty e que agora ele podia revendê-la a um preço exorbitante. O negócio já valeu o café da manhã.

Eu não gostava dele, pois ele fazia um trabalho muito ruim e então finalmente consegui que o resto do trabalho fosse terminado pela própria empresa. Evidentemente ele não gostava de mim também, mas oficialmente nós tínhamos que nos entender e por isso éramos duplamente corteses um com o outro. Como ele era benquisto por aqui, o engenheiro-chefe deu-lhe o monopólio do fornecimento dos alimentos, especialmente carnes, toicinhos e biscoitos, e tudo a preços exorbitantes. Eu ficava muito irritado, porque os pobres trabalhadores tinham que suportar isso. Tudo bem se pelo menos ele fornecesse boa mercadoria; mas nem isso: a qualidade dos produtos era tão ruim que havia reclamações a todo instante.

Então um dia veio até mim uma comissão dos trabalhadores e trouxeram um pacote de roscas. Elas estavam emboloradas, duras e eram feitas de farinha de milho mofada ao invés de farinha de trigo. Recebi a encomenda e pensei em dar uma lição no amigo Thaty. Como eu sabia que ele iria à cidade com o trem e precisaria voltar hoje, convidei-o para o café. Ele aceitou, pois lhe interessava se dar razoavelmente bem comigo. Botei, então, as tais roscas em uma travessa coberta, e comeu-se e bebeu-se. Thaty, que era um grande gourmet, já estava cobiçando a travessa; finalmente não pode mais suportar sua curiosidade e pediu licença para poder destampá-la. Eu concordei, e ele abriu-a, mas fechou tão rápido como se tivesse sido picado por uma cobra.

“Pelo amor de Deus, o que é isso?”.

“Estas são as roscas que o senhor vende aos pobres trabalhadores, senhor Thaty!”.

Por um momento ele perdeu a calma, erguendo-se então cheio de gravidade.

“Senhor Roberto, eu não sei como posso agradecê-lo. Já há muito tempo tenho suspeitado do malandro do meu padeiro, mas agora botarei o rapaz na rua imediatamente!”. Falou e deixou minha casa, cheio de empáfia. O patife não era de se assustar.

Thaty fez todos os negócios possíveis e se fosse somente um pouco mais honesto, faria também uma boa fortuna; mas a honestidade era contra a sua natureza. Tanto fez, que logo não tinha mais crédito e seus credores o caçavam. No estado do Paraná há um grande negócio com erva-mate para fazer; os atacadistas adiantaram algum dinheiro ao comprador. Naturalmente nosso amigo também recebeu uma boa parte do pagamento adiantado, mas não forneceu o mate. Então o representante dos investidores veio e exigiu energicamente o fornecimento.

“O que você quer?” Disse Thaty. “Venha comigo à estação, lá você verá!”

Os dois saíram. Aqui por acaso estava sendo carregado um vagão com a erva do Thaty.

Ele parou diante do diretor da estação e perguntou-o: “Diga-me, meu caro, de quem é este mate?”.

“Isso está sendo carregado para o senhor!”

Agora Thaty foi até o representante:

“Veja meu caro, este é o mate que o senhor receberá!”

Satisfeito, o homem voltou ao seu hotel.

Mas houve nesses dias uma grande falta de erva, então negociantes e compradores apareceram por ali como moscas. Um deles chamou nosso amigo e perguntou se ele não faria negócios. Thaty concordou, mas só vendería a vista e por acaso tinha um vagão carregado na estação. Então foram juntos; mas o comprador chamou-o para um canto e deu-lhe o dinheiro somente quando viu a nota da mercadoria preenchida na mão do diretor da estação. Um terceiro comprador, que era um “homem de negócios” como Thaty, tinha visto tudo e se aproximou de dele.

“Venda para mim o seu mate!”

“Já está vendido!”

“Não faz mal, o homem não tem o recibo de transporte preenchido e assinado pelo funcionário na mão. Nós vamos até a estação, e o senhor diz que se enganou!”

Thaty olhou admirado para o homem, concordou, e então avançaram até a estação onde descobriram que a nota da mercadoria ainda não estava registrada nos livros. Assim ela foi destruída, pois Thaty declarou ter se enganado, e isto foi confirmado com uma nota de 20 mil réis na mão do funcionário. O terceiro comprador recebeu a nota certa assinada e Thaty recebeu pela terceira vez o dinheiro pelo mesmo mate. Os enganados praguejavam, e todos os outros riram. Thaty foi novamente o herói do dia.

Mas uma vez ele se deixou apanhar, apesar de toda sua esperteza. E mesmo que não precisasse sangrar de forma pecuniária, sangue verdadeiro correu. Isso começou da seguinte maneira: Thaty tinha um contador, italiano também, mas não napolitano e sim calabrês e estes são conhecidos por não deixarem fazer brincadeiras com eles. Os negócios de Thaty não iam tão bem, e nada mais certo do que começar a economizar, e principalmente em casa! Conforme esse louvável princípio, nosso amigo ficou devendo a parte do seu empregado por um, dois, três meses, e por isso havia frequentes brigas. Tudo mais que acontecia entre ele e o contador, só os próprios envolvidos sabiam. Mas um dia a bomba estourou e vimos o contador correr porta afora, sem chapéu, Thaty atrás dele com o revólver na mão, atirando pra cima e fazendo o calabrês correr cada vez mais rápido. Então nosso amigo ficou satisfeito com sua demonstração de coragem, retornou ao seu escritório e sentou-se exausto em sua cadeira. “Porém, com os poderes do destino não se pode tecer uma união duradoura!” Já disse Schiller;[1] e nesse caso foi o calabrês que, com passos de gato, entrou no escritório. Thaty estava sentado, de costas para ele, bem à vontade em sua cadeira e se sacudia todo com uma risada, o destino se aproximava. Com um pulo de tigre o contador estava junto dele, enrolou um emaranhado de cabelos na mão, puxou a cabeça dele para trás e enterrou seus dentes no grande nariz do seu adversário. Um terrível grito, um pulo de costas, uma cuspida do calabrês, um salto de Thaty até o revólver, um estalo do gatilho, mas as balas já tinham sido disparadas e, rindo de alegria, o calabrês tomou seu caminho. Thaty jogou o revólver fora e correu para a bacia d’água para lavar seu nariz; mas a dentada foi bem profunda; o calabrês contou depois que ele queria arrancar todo o nariz, mas a coisa era muito grande. Thaty precisou chamar o médico e ficou em casa gemendo de raiva e dor. Nós ouvimos falar do ocorrido no mesmo dia, e não havia ninguém que tivesse pena do rapaz. Eu arranjei no dia seguinte um trem de serviço que teria de passar pelo campo de batalha. Descemos diante da casa. Thaty, que ouvira o barulho do trem, veio ao nosso encontro, mas já acenando de longe com a mão gritou nervoso: “Não riam, só não riam, senão vou ter que rir também e ele vai arrebentar de novo!” Mas quando vimos o homem com o nariz muito inchado e com o esparadrapo branco colado, desatamos a rir sem parar. Ele parecia um palhaço, com aquele nariz enorme. Thaty fez só um som na garganta, envolvendo seu generoso nariz, e virou-se de costas para nós, tentando reprimir sua risada incomoda. Então fomos até a casa onde o consolamos com muita zombaria. Enquanto nos dirigíamos à casa o engenheiro chefe disse: “Está é a primeira vez que poderemos rir por último; até agora sempre o Thaty que ria por último!”

 

  1. Citação da clássica balada "Das Lied von der Glocke", a Canção do Sino, escrita por Schiller em 1799. (NdT)

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