Em uma quadra das que serviam de aposentos reaes no mosteiro da Batalha, á roda de um bufete de carvalho de lavor antigo, cujos pés, torneados em linha espiral, eram travados por uma especie de escabéllo, que pelos topos se embebia nelles, estavam assentadas varias personagens daquellas com quem o leitor já tractou nos antecedentes capitulos. Eram estas D. João I, Fr. Lourenço Lamprêa, e o procurador Fr. Joanne. Elrei estava á cabeceira da mesa, e no topo fronteiro o prior, tendo á sua esquerda Fr. Joanne. Além destes, outros individuos ahi estavam, que as pessoas lidas nas chronicas deste reino tambem conhecerão: taes eram os doutores João das Regras e Martim d’Ocem do conselho d’elrei, cavalleiros mui graves e auctorisados, e afóra elles mais alguns fidalgos, que D. João I particularmente estimava. Atraz da cadeira d’elrei um pagem esperava, em pé, as ordens de seu real senhor. O quadrante do terrado contiguo apontava meio-dia.

Em cima do bufete estava estendido um grande rolo de pergaminho, no qual todos os olhos dos circumstantes se fitavam: era a traça ou desenho do mosteiro, que delineára mestre Affonso Domingues, onde, além dos prospectos geraes do edificio, illuminados primorosamente, se viam todos os córtes e alçados de cada uma das partes dessa complicada e maravilhosa fabrica. Elrei tinha a mão estendida, e os dedos sobre o risco da casa capitular, ao passo que falava com o prior:

“Parece impossivel isso; porque natural desejo é de todos os homens alcançarem repouso e pão na velhice, e não vejo razão para mestre Affonso se doer da mercê que lhe fiz.”

“Pois a conversação que vos relatei, tive-a com elle ainda hontem, pouco antes de vossa mercê chegar.”

“E como vae David Ouguet?—­perguntou elrei.

“Com grande melhoria:—­respondeu o prior.—­Dormiu bom espaço, e acordou em seu juizo. Contou-me que, entrando hontem após nós na casa do capitulo, e affirmando a vista na abobada, conhecêra que tinha gemido, e estava a ponto de desabar; que sentíra apertar-se-lhe o coração, e que com a sua afflicção corrêra pela crasta fóra como doudo; que no céu se lhe affigurava um relampaguear incessante e medonho; que via ... nem elle sabe o que via, o pobre homem. Depois disso, diz que perdêra o tino, e de nada mais se recorda.”

“Nem dos exorcismos?—­perguntou em meia voz Martim d’Ocem, com um sorriso malicioso.

“Nem dos exorcismos:—­retrucou Fr. Lourenço no mesmo tom, mas subindo-lhe ao rosto a vermelhidão da colera.—­A proposito, doutor. Dizem-me que Annequim é morto, [1] e que elrei proveu o cargo em um dos de seu conselho. Seria verdadeira esta mercê singular?”

E o frade media o letrado de alto a baixo com os olhos irritados. Este preparava-se para vibrar ao prior uma nova injuria indirecta, naquelle jogo de allusões que era as delicias do tempo, quando elrei acenou ao pagem, dizendo-lhe:

“Alvaro Vaz d’Almada, ide depressa á morada d’Affonso Domingues, dizei-lhe que eu quero falar-lhe, e guiae-o para aqui. Fazei isso com tento; e lembrae-vos de que elle é um antigo cavalleiro, que militou com vosso mui esforçado pae.”

O pagem saíu a cumprir o mandado d’elrei.

“Dizeis vós—­proseguiu este, dirigindo-se a João das Regras e a Martim d’Ocem—­que talvez Affonso Domingues se enganasse em suppôr que era possivel fazer uma abobada tão pouco erguida, como é a que elle traçou para o capitulo. Não creio eu que tão entendido architecto assim se enganasse: mais inclinado estou a persuadir-me de que o lastimoso successo de hontem á noite procedesse da grave falta commettida por mestre Ouguet nesta edificação.”

“E que falta foi essa, se a vossa mercê apraz dizer-m’o?—­replicou João das Regras.

“A de não seguir de todo ponto o desenho de mestre Affonso:—­tornou elrei.

“E se a execução de sua traça fosse impossivel?—­acudiu o doutor.

“Impossivel!?”—­atalhou elrei.—­“E não contava elle com leva-la a effeito, se Deus o não tolhesse dos olhos?”

“E é disso que mais se doe mestre Affonso,”—­interrompeu o prior.—­“A sua grande canseira é que ninguem saberá continuar a edificação do mosteiro, ou, como elle diz, proseguir a escriptura do seu livro de pedra, porque ninguem é capaz de entender o pensamento que o dirigiu na concepção delle.”

“Roncarías e feros são esses proprios de quem foi homem d’armas de Nunalvares:—­disse o chanceller João das Regras.—­Todos os de sua bandeira são como elle. Porque sabem jogar boas lançadas, teem-se em conta de principes dos discretos; e o cégo não se esqueceu ainda de que comeu da caldeira do condestavel.”

João das Regras, emulo de Nunalvares, não perdeu este ensejo de lhe pôr pêcha; mas D. João I que conhecia serem esses dous homens as pedras angulares de seu throno, escutava-os sempre com respeito, salvo quando falavam um do outro; posto que o condestavel, homem mais de obras que de palavras, raras vezes menoscabava os meritos do chanceller, contentando-se com lançar na balança, em que João das Regras mostrava o grande peso da sua penna, o montante com que elle Nunalvares tinha em cem combates salvado a patria do dominio estranho, e a cabeça do chanceller das mãos do carrasco, de que não o livrariam nem os gráus de doutor de Bolonha, nem os textos das leis romanas.

“Deixae lá o condestavel, que não vem ao intento;—­disse elrei:—­o que me importa é ouvir mestre Affonso sobre este caso. Quizera antes perder um recontro com castelhanos, do que cuidar que o capitulo de Sancta Maria da Victoria ficará em ruinas. Mestre Ouguet com sua arte deixou-lhe vir ao chão a abobada: se Affonso Domingues fôr capaz de a tornar a erguer, e deixa-la firme, concluirei d’ahi que vale mais o cégo que o limpo de vista; e digo-vos que o restituirei ao antigo cargo, ainda que esteja, além de cégo, çopo [2] e mouco.”

Neste momento entrava o velho architecto, agarrado ao braço de Alvaro Vaz d’Almada, que o veiu guiando para o topo da desmesurada banca de carvalho, á roda da qual se travára o dialogo, que acima transcrevemos.

“Dom donzel, onde é que está elrei?”—­dizia Affonso Domingues ao pagem, caminhando com passos incertos ao longo do vasto aposento.

D. João I, que ouvira a pergunta, respondeu em vez do pagem:

“Agora nenhum rei está aqui, mas sim o Mestre d’Aviz, o vosso antigo capitão, nobre cavalleiro de Aljubarrota.”

“Beijo-vos as mãos, senhor rei, por vos lembrardes ainda de um velho homem de armas, que para nada presta hoje. Vêde o que de mim mandaes; porque de vossa ordem aqui me trouxe este bom donzel.”

“Queria vêr-vos e falar-vos; que de coração vos estimo, honrado e sabedor architecto do mosteiro de Sancta Maria.”

“Architecto do mosteiro de Sancta Maria, já o não sou; vossa mercê me tirou esse encargo: sabedor, nunca o fui, pelo menos muitos assim o creem, e alguns o dizem: dos titulos que me daes só me cabe hoje o de honrado; que esse, mercê de Deus, é meu, e fôra infamia rouba-lo a quem já não póde pegar em um montante para defende-lo.”

“Sei, meu bom cavalleiro, que estaes mui torvado comigo por dar a outrem o cargo de mestre das obras do mosteiro: n’isso cria eu fazer-vos assignalada mercê. Mas venhamos ao ponto: sabeis que a abobada do capitulo desabou hontem á noite?”

“Sabia-o, senhor, antes do caso succeder.”

“Como é isso possivel?!”

“Porque todos os dias perguntava a alguns desses poucos obreiros portugueses que ahi restam, como ia a feitura da casa capitular: no desenho della pozera eu todo o cabedal de meu fraco ingenho, e este aposento era a obra prima de minha imaginação: por elles soube que a traça primitiva fôra alterada, e que a junctura das pedras era feita por modo diverso do que eu tinha apontado: prophetisei-lhes então o que havia de acontecer. E—­accrescentou o velho com um sorriso amargo—­muito fez já o meu successor em por tal arte lhe pôr o remate, que não desabasse antes das vinte e quatro horas.”

“E tinheis vós por certo que se vossa traça se houvera seguido, essa desmesurada abobada não viria a terra?”

“Se estes olhos não tivessem feito com que eu fosse posto de banda como uma carta de testamento antiga, que se atira, por inutil, para o fundo de uma arca, a pedra do fecho dessa abobada não teria de vir esmigalhar-se no pavimento antes de sobre ella pesarem muitos séculos; mas os de vosso conselho julgaram que um cégo para nada podia prestar.”

“Pois se ousaes levar a cabo vosso desenho, eu ordeno que o façaes, e desde já vos nomeio de novo mestre das obras do mosteiro, e David Ouguet vos obedecerá.”

“Senhor rei—­disse o cégo, erguendo a fronte, que até alli tivera curvada:—­vós tendes um sceptro e uma espada; tendes cavalleiros e bésteiros; tendes ouro e poder: Portugal é vosso, e tudo quanto elle contém, salvo a liberdade de vossos vassallos: nesta nada mandaes. Não!... vos digo eu: não serei quem torne a erguer essa derrocada abobada! Os vossos conselheiros julgaram-me incapaz d’isso: agora elles que a alevantem.”

As faces de D. João I tingiram-se do rubor do despeito.

“Lembrae-vos, cavalleiro,—­disse elle—­de que falaes com D. João I.”

“Cuja corôa—­acudiu o cégo—­lhe foi posta na cabeça por lanças, entre as quaes reluzia o ferro da que eu brandia. D. João I é assaz nobre e generoso, para não se esquecer de que nessas lanças estava escripto:—­os vassallos portuguezes são livres.”

“Mas—­tornou elrei—­os vassallos que desobedecem aos mandados daquelle em cuja casa tem acostamento, [3] podem ser privados de sua moradia...”

“Se dizeis isso pela que me déstes, tirae-m’a; que não vo-la pedi eu. Não morrerei de fome; que um velho soldado de Aljubarrota achará sempre quem lhe esmole uma mealha; e quando haja de morrer á mingua de todo humano soccorro, bem pouco importa isso a quem vê arrancarem-lhe, nas bordas da sepultura, aquillo por que trabalhou toda a vida, um nome honrado e glorioso.”

Dizendo isto, o velho levou a manga do gibão aos olhos baços, e embebeu nella uma lagryma mal sustida. Elrei sentiu a piedade coar-lhe no coração comprimido de despeito, e dilatar-lh’o suavemente. Uma das dores d’alma, que em vez de a lacerar a consolam, é sem duvida a compaixão.

“Vamos, bom cavalleiro,—­disse elrei pondo-se em pé—­não haja entre nós doestos. O architecto do mosteiro do Sancta Maria vale bem o seu fundador! Houve um dia em que nós ambos fomos pelejadores: eu tornei celebre o meu nome, a consciencia m’o diz, entre os principes do mundo, porque segui avante por campos de batalha; ella vos dira também que a vossa fama será perpetua, havendo trocado a espada pela penna, com que traçastes o desenho do grande monumento da independencia e da gloria desta terra. Rei dos homens do acceso imaginar, não desprezeis o rei dos melhores cavalleiros, os cavalleiros portuguezes! Tambem vós fostes um delles; e negar-vos-heis a proseguir na edificação desta memoria, desta tradição de marmore, que ha-de recordar aos vindouros a historia de nossos feitos? Mestre Affonso Domingues, escutae os ossos de tantos valentes, que vos accusam de trahirdes a boa e antiga amizade: vem de todos os valles e montanhas de Portugal o soído desse queixume de mortos; porque, nas contendas da liberdade, por toda a parte se verteu sangue e foram semeados cadaveres de cavalleiros! Eia, pois: se não perdoaes a D. João I uma supposta affronta, perdoae-a ao Mestre d’Aviz, ao vosso antigo capiião, que em nome da gente portugueza vos cita para o tribunal da posteridade, se refusaes consagrar outra vez á pátria vosso maravilhoso ingenho, e que vos abraça como antigo irmão nos combates, porque certo crê que não quereis perder na vossa velhice o nome de bom e honrado portuguez.”

Elrei parecia grandemente commovido, e talvez involuntariamente, lançou um braço ao redor do pescoço do cégo, que soluçava e tremia sem soltar uma só palavra.

Houve uma longa pausa: todos se tinham posto em pé quando elrei se erguêra, e esperavam anciosos o que diria o velho. Finalmente este rompeu o silencio:

“Vencestes, senhor rei, vencestes!... A abobada da casa capitular não ficará por terra. Oh meu mosteiro da Batalha, sonho querido de quinze annos de vida entregues a cogitações, a mais formosa das tuas imagens será realisada, será duradoura como a pedra em que vou estampa-la! Senhor rei, as nossas almas entendem-se: as unicas palavras harmoniosas e inteiramente suaves, que tenho ouvido ha muitos annos, são as que vos saíram da bôca: só D. João I comprehende Affonso Domingues; porque só elle comprehende a valia destas duas palavras formosissimas, palavras de anjos—­patria e gloria. A passada injuria a vossos conselheiros a attribui sempre, que não a vós, posto que de vós, que ereis rei, me queixasse: varre-la-hei da memoria, como o entalhador varre as lascas e a pedra moída pelo cinzel de cima do vulto, que entalhou em fuste de columna arrendada. Que me restituam os meus officiaes e obreiros portuguezes; que portuguez sou eu, portugueza a minha obra! De hoje a quatro mezes podeis voltar aqui, senhor rei, e ou eu morrerei, ou a casa capitular da Batalha estará firme, como é firme a minha crença na immortalidade e na gloria.”

Elrei apertou então entre os braços o bom do cégo, que procurava ajoelhar a seus pés. Era a attracção de duas almas sublimes, que voavam uma para a outra. Por fim D. João I fez um signal ao pagem, que se aproximou:

“Alvaro Vaz, acompanhae este nobre cavalleiro a sua pousada. E vós, mestre mui sabedor, ide repousar: dentro de quinze dias vossos antigos officiaes terão voltado de Guimarães para cumprirem o que mandardes. Mui devoto padre prior,—­continuou elrei, voltando-se para Fr. Lourenço—­entendei que d’ora avante Affonso Domingues, cavalleiro de minha casa, torna a ser mestre das obras do mosteiro de Sancta Maria da Victoria, em quanto assim lhe aprouvér.”

O prior fez uma profunda reverencia.

A alegria tinha tolhido a voz do architecto: diante de toda a côrte elrei o havia desaffrontado, e já, sem desdouro, podia acceitar o encargo de que o tinham despojado. Com passos incertos, e seguro ao braço do pagem, saíu do aposento, feita venia a elrei.

Este deu immediatamente ordem para a partida; e quando todos íam saindo, o prior chegou-se ao velho chanceller, e disse-lhe em tom submisso:

“Doutor Johannes a Regulis, espero que narreis fielmente á rainha o que succedeu, e a certifiqueis de quanto me custa ver tirada a régua magistral a mestre Ouguet...”

“Foi—­tornou o politico discipulo de Bartholo—­mais uma façanha de D. João I: começou por brigar com um louco, e acabou abraçando-o, por lhe vêr derramar uma lagryma. Bem trabalho por fazer do Mestre de Aviz um rei; mas sae-me sempre cavalleiro andante. Não lhe succedêra isto se, em vez de passar a mocidade em pelejas, a houvera passado a estudar em Bolonha. Tendo-lhe dicto mil vezes que é preciso lisongear os inglezes, porque carecemos delles: a tudo me responde com dizer que com Deus e o proprio montante tem em nada Castella: todavia a gente ingleza ufanava-se de ser David Ouguet o mestre desta edificação; e que importava que ella fosse mais ou menos primorosa a troco de contentarmos os que comnosco estão liados? Quanto a vós, reverendo prior, ficae descançado: tudo fia a rainha de vossa prudencia, que é muita, posto que não vistes Bolonha. Vamos, reverendissimo.”

A côrte já tinha saído; e os dous velhos seguiram-na ao longo daquellas arcadas, conversando um com o outro em voz baixa.


  1. Annequim era o bobo do paço em tempo de D. Fernando, a quem sobreviveu.
  2. Coixo.—­Fui vista ao cégo, e pée ao çôpo. Trad. do livro de Job. Fragmento do seculo 14.º
  3. Acostamento, é o mesmo que moradia.