Rica de galas, a primavera tinha vestido os campos da Estremadura do viço de suas flores: a madresilva, a rosa agreste, o rosmaninho, e toda a casta de boninas teciam um tapete odorifero e immenso por charnecas, comoros, e sapaes, e pelo chão das matas e florestas, que agitavam as frontes somnolentas com a brisa de manhan purissima, mostrando aos olhos um balouçar de verdura compassado com o das seáras rasteiras, que mais longe, pelas veigas e outeiros, ondeavam suavemente. Eram sete de Maio da era de Cesar de 1439, ou, como os letrados diziam, do anno da redempção, 1401. Quatro mezes certos se contavam nesse dia, depois daquelle em que, n’uma das quadras do aposento real no mosteiro da Batalha, se passára a scena, que no antecedente capitulo narrámos, e que extrahimos do famoso manuscripto mencionado no capitulo II, com aquella pontualidade e verdade, com que o grande chronista F. Bernardo de Brito citava só documentos innegaveis e auctores certissimos, e com aquella imparcialidade e exacção, com que o philosopho de Ferney referia e avaliava os factos em que podia interessar a religião christan.

Assistiu o leitor á promessa que mestre Affonso Domingues fez a D. João I de que dentro de quatro mezes lhe daria posto o remate na abobada da casa capitular de Sancta Maria da Victoria, e lembrado estará de como elrei lhe promettêra, tambem, mandar vir de Guimarães todos os officiaes portuguezes, que, despedidos da Batalha por mestre Ouguet como menos habilidosos que os estrangeiros, haviam sido mandados para a obra, posto que grandiosa, menos importante de Sancta Maria da Oliveira, hoje desaportuguesada e caiada e dourada e mutilada pelo mais barbaro abuso da riqueza e da ignorancia clerical. A palavra do Mestre d’Aviz não voltára atraz, não por ser palavra de rei, mas por ser palavra de cavalleiro portuguez daquelles tempos, em que tão nobres affectos e instinctos havia nos corações de nossos avós, que de bom grado lhes devemos perdoar a rudeza. Tendo partido de Alcobaça para Guimarães, onde nesse anno se ajunctavam cortes, apenas ahi chegára tinha mandado partir para Sancta Maria da Victoria os officiaes e obreiros mais entendidos, que vieram apresentar-se a mestre Affonso.

Este, resolvido tambem a cumprir o promettido, mettêra mãos á obra. O capitulo foi desentulhado: aproveitaram-se as pedras da primeira edificação que era possivel aproveitar, lavraram-se outras de novo, armaram-se os simples, e muito antes do dia aprazado o fecho ou remate da abobada repousava no seu logar.

Durante estes quatro mezes os successos politicos tinham trazido D. João I a Santarem, onde se fizera prestes com bom numero de lanças, bésteiros, e peões para ir ajunctar-se com o Condestavel, e entrarem ambos por Castella, cuja guerra tinha recomeçado, por se haverem acabado as treguas. Para esta entrada se apparelhára elrei com uma lustrosa companhia de seus cavalleiros, e caminhando pela margem direita do Tejo, acampára juncto a Tancos, onde se havia de construir uma ponte de barcas para passar o exercito, e seguir ávante até o Crato, que era o logar aprazado com o Condestavel, para junctos irem dar sobre Alcantara.

Em Val-de-Tancos estava assentado o arraial da hoste d’elrei: os petintaes, que tinham vindo de Lisboa, trabalhavam na ponte de barcas, que se deviam lançar sobre o Tejo; os bésteiros limpavam suas béstas, e folgavam em luctas e jogos; os cavalleiros corriam pontas, atiravam ao tavolado, monteavam, ou matavam o tempo em banquetes e beberronias. Tinham chegado áquelle sitio a cinco de Maio, e no seguinte dia elrei partíra afforradamente para a Batalha, porque não se esquecêra de que os quatro mezes, que pedira Affonso Domingues para alevantar a abobada, eram passados, e fôra avisado por Fr. Lourenço de que a obra estava acabada, mas que o architecto não quizera tirar os simples senão na presença d’elrei.

Antes de partir de Lisboa, D. João mandára sair dos carceres, em que jaziam, bom numero de criminosos e de captivos castelhanos, que, com grande pasmo dos povos, e rodeados por uma grossa manga de bésteiros, tomaram o caminho da Batalha, sem que ninguem aventasse o motivo d’isto. Todavia elle era obvio: elrei pensou que, assim como a abobada do capitulo desabára da primeira vez, passadas vinte quatro horas depois de desamparada, podia agora derrocar-se em cima dos obreiros no momento de lhe tirarem os prumos e travezes sobre que fôra edificada. Sollicito pela vida de seus vassallos; parente do povo por sua mãe, e crendo por isso que a morte de um popular tambem tinha seu trance de agonia, e que lagrymas de orphãos pobres eram tão amargas, ou porventura mais que as de infantes e senhores, não quiz que se arriscassem senão vidas condemnadas, ou pela guerra, ou pelos tribunaes, e que naquella se tinham remido pela covardia, e nestes pela piedade ou antes esquecimento dos juizes. E se da primeira vez lhe não occorrêra esta idéa, fôra porque tambem na memoria de obreiros portuguezes não havia lembrança de ter desabado uma abobada apenas construida.

Seguido só por dous pagens, D. João I atravessou a villa de Ourem pelas horas mortas do quarto de modorra, e antes do meio-dia apeou-se á portaria do mosteiro.

Os officiaes, que trabalhavam em varios lavores, pelos telheiros e casas ao redor do edificio, viram passar aquelle cavalleiro e os dous pagens, mas não o conheceram: D. João I vinha cuberto de todas as peças, e ao galgar o ginete pelo outeiro abaixo, tinha descido a viseira.

“Benedicite!—­dizia elrei, batendo devagarinho á porta da cella de Fr. Lourenço.

“Pax vobis, domine!—­respondeu o prior que logo conheceu elrei, e veio abrir a porta.

“Não vos incommodeis, reverendissimo—­disse D. João, entrando na cella, e sentando-se em um tamborete.—­Deixae-me resfolegar um pouco, e dae-me uma vez de vinho.”

“Não vos esperava tão de salto;—­tornou Fr. Lourenço: e abrindo um armario, tirou delle uma borrácha e um cangirão de madeira, que encheu de vinho, e pegando com a esquerda em uma escudela de barro de Estremoz [1] cheia de uma especie de bolo feito de mel, ovos, e flor de farinha, apresentou a elrei aquella collação.

“Excellente almoço:—­dizia elrei, descalçando o guante ferrado, e cravando a espaços os dedos dentro da escudela, d’onde tirava bocados do bolo, que ajudava com alentados beijos dados no cangirão. Depois que cessou de comer, limpando a mão ao forro do tonelete, poz-se em pé, em quanto Fr. Lourenço guardava os despojos daquella batalha:

“Bofé—­disse D. João, rindo—­que não ando a meu talante, senão com o arnez ás costas! Cada vez que o visto, parece-me que torno á mocidade, e que sou o Mestre d’Aviz, ou antes o simples cavalleiro, que, confiado só em Deus, corria solto pelo mundo, monteando edomas [2] inteiras, e tendo sobre a consciencia só os peccados de homem, e não os escrupulos de rei.”

“E então—­atalhou o prior—­o vosso confessor Fr. Lourenço era um pobre frade, cujos unicos cuidados se encerravam em saber as horas do côro, e em ler as sagradas escripturas, porém que hoje tem de velar muitas noites, pensando no modo de não deixar affrouxar a disciplina e boa governança de tão alteroso mosteiro. Mas, segundo vosso recado, que hontem recebi, vindes para assistir ao tirar dos simples da mui famosa abobada, o que mestre Domingues aporfia em só fazer perante vós?”

“A isso vim, porém de espaço; que não será nestes cinco dias, que esteja prompta a ponte de barcas, que mandei lançar no Téjo para passar minha hoste. Durante elles, com vossos mui religiosos frades me apparelharei para a guerra, enthesourando orações e recebendo absolvição de meus erros.”

“Os principes pios—­acudiu o prior com ar de compuncção—­são sempre ajudados de Deus, principalmente contra herejes e scismaticos, como os perros dos castelhanos, que a Virgem Maria da Victoria confunda nos infernos.”

“Amen!—­respondeu devotamente elrei.

“Avisarei, pois, mestre Affonso de vossa vinda, para que mande pôr tudo em ordenança de se tirarem os simples: elle me pediu que o mandasse chamar apenas fosseis chegado.”

Fr. Lourenço saíu, e d’ahi a pouco voltou acompanhado do architecto, que um rapaz guiava pela mão.

“Guarde-vos Deus, mestre Affonso Domingues!—­disse elrei, vendo entrar o cégo—­Aqui me tendes para vêr acabada a feitura da mirifica abobada do capitulo de Sancta Maria, cujos simples não quizestes tirar senão em minha presença.”

“Beijo-vo-las, senhor rei, pela mercê: dous votos fiz se levasse a cabo esta feitura; era esse um delles...”

“E o outro?—­atalhou elrei.

“O outro, dir-vo-lo-hei em breve; mas por ora permitti que para mim o guarde.”

“São negocios de consciencia:—­acudiu o prior.—­Elrei não quer, por certo, fazer-vos quebrar vosso segredo.”

D. João I fez um signal de assentimento ao parecer do seu antigo padre espiritual.

Elrei, o prior, e o architecto ainda se demoraram um pedaço falando ácerca da obra, e do que cumpria fazer no proseguimento della; mas o cégo dissera o que quer que fôra em voz baixa ao rapaz que o acompanhava, o qual saíra immediatamente, e que só voltou quando os tres acabavam a conversação.

“Fernão d’Evora—­disse o cégo, sentindo-o outra vez ao pé de si—­fizeste o que te ordenei, e deste a teu tio Martim Vasques o meu recado?”

“Senhor, si! Envia-vos elle a dizer que tudo está prestes.”

“Então vamos a vêr se desta feita temos mais perduravel abobada.”

Isto dizia elrei saindo da cella de Fr. Lourenço, e seguindo ao longo do claustro. Já a este tempo se tinha espalhado no mosteiro a nova da sua chegada, e os frades começavam de ajunctar-se para o cortejarem. Do mosteiro rompêra a noticia, e se espalhára na povoação, aonde concorrêra muita gente dos arredores, principalmente de Aljubarrota, por ser dia de mercado: de modo que quando elrei desceu á crasta já alli se achavam apinhados homens e mulheres, que queriam vê-lo, e ainda mais saber se desta vez a abobada vinha ao chão, para terem que contar aos vizinhos e vizinhas da sua terra.

As portas da casa do capitulo estavam abertas: via-se dentro della tal machina de prumos, travezes, andaimes, cabrestantes, escadas, que bem se podéra comparar a composição daquelles simples á fabrica do mais delicado relogio. Á porta, que dava para a crasta, estava um homem em pé, que se desbarretou apenas viu elrei, a cuja direita vinha o architecto, seguido por Fr. Lourenço e por outros frades.

O pequeno Fernão d’Evora disse algumas palavras a Affonso Domingues, o qual lhe respondeu em voz baixa. Então o rapaz acenou ao homem desbarretado, que se chegou timidamente ao cégo. Era um mancebo, que mostrava ter de idade, ao mais, vinte cinco annos; de rosto comprido, tez queimada, nariz aquilino, olhos pequenos e vivos. Chegando-se ao cégo, este o tomou pela mão, e voltando-se para elrei, disse:

“Aqui tendes, senhor, a Martim Vasques, o melhor official de pedraria que eu conheço; o homem que, com mais alguns annos de esperiencia, será capaz de continuar dignamente a serie dos architectos portuguezes.”

“E debaixo de meu especial amparo estará Martim Vasques—­respondeu elrei—­que por honrado me tenho com haver em meus senhorios homens que vos imitem. [3]

Ainda bem não eram acabadas estas palavras, sentiu-se um sussurro entre o povo, que girava livremente pela crasta, e que se enfileirou aos lados: chegava a gente que devia tirar os simples.

Entre duas alas de bésteiros vinha um bom numero de homens, magros, pallidos, rotos e descalços: o porte de alguns era altivo, e em seus farrapos se divisava a razão d’isso: eram bésteiros castelhanos, que em diversos recontros e pelejas tinham cahido nas mãos dos portuguezes. As guerras entre Portugal e Castella assemelhavam-se ás guerras civis de hoje: para vencidos não havia nem caridade, nem justiça, nem humanidade: ser mettido em ferros era então uma ventura para o pobre prisioneiro; porque os mais delles morriam assassinados pelo povo desenfreado, em vingança dos máus tractos que em Castella padeciam os captivos portuguezes. Com os castelhanos vinham d’envolta varios criminosos condemnados á morte por suas malfeitorias.

“Misericordia!—­bradou toda aquella multidão, ao passar por elrei: e cahiram de bruços sobre as lageas do pavimento.

“Comvosco a tenho, mesquinha gente:—­disse elrei commovido—­Se tirardes os simples, que vêdes acolá, a abobada não desabar sobre vós, soltos e livres sereis. Erguei-vos, e confiae na sciencia do grande architecto que fez essa mirifica obra. Mandar-vos comprar vossa soltura a custo de tão leve risco, quasi que é o mesmo que perdoar-vos.”

Os presos ergueram-se; mas a tristeza lhes ficou embebida no coração, e espalhada nas faces: o terror fazia-lhes crer que já sentiam ranger e estalar as vigas dos simples, e que, ás primeiras pancadas, as pedras desconformes da abobada, desatando-se da immensa volta, os esmagariam, como o pé do quinteiro esmaga a lagarta enroscada na planta viçosa do horto.

Neste momento quatro forçosos obreiros chegaram á porta do capitulo, trazendo sobre uma pavióla uma grande pedra quadrada. Martim Vasques, que já lá estava, gritou ao cégo architecto:

“Mui sabedor mestre Affonso, que quereis se faça do canto, que para aqui mandastes trazer?”

“Assentae-o bem debaixo do fecho da abobada, no meio desse claro, que deixam os prumos centraes dos simples.”

Os obreiros fizeram o que o architecto mandara: este então voltou-se para elrei, e disse:

“Senhor rei, é chegado o momento de vos declarar meu segundo voto. Pelo corpo e sangue do Redemptor jurei que, assentado sobre a dura pedra, debaixo do fecho da abobada, estaria sem comer nem beber durante tres dias, desde o instante em que se tirassem os simples. De cumprir meu voto ninguem poderá mover-me. Se essa abobada desabar, sepultar-me-ha em suas ruinas: nem eu quizera encetar, depois de velho, uma vida deshonrada e vergonhosa. Esta é a minha firme resolução.”

Dizendo isto, o cégo travou com força do braço de Fernão d’Evora, e encaminhou-se para a porta do capitulo.

“Esperae, esperae!—­bradou elrei.—­Estaes louco, dom cavalleiro? Quem, se vós morrerdes, continuará esta fabrica, tão formosa filha de vosso engenho?”

“Mestre Ouguet:—­tornou o cégo, parando.—­Não sou tão vil que negue seu saber e habilidade: se a abobada desabar segunda vez, ninguem no mundo é capaz de a fechar com uma só volta, e para a firmar sobre uma columna erguida no centro, mestre Ouguet o fará. Quanto ao resto do edificio, fazei senhor rei que se prosiga meu desenho: é o que ora vos peço tão sómente.”

E o velho e o seu guia sumiram-se por entre as bastas vigas, que sustinham as traves dos simples: elrei, Fr. Lourenço, e os mais frades ficaram atonitos e calados.

“Que tão honrado mestre corra parelhas no risco com esses perros castelhanos cousa é que se não póde soffrer: mas o voto é voto, senão...”

Estas palavras partiam da bôca d’uma gorda velha, cuja tez avermelhada dava indicios de compleição sanguinea e irritavel, e que de mãos mettidas nas algibeiras, na frente de uma das alas do povo presenceava o caso.

“Tendes razão, tia Brites d’Almeida; e por ser voto me calo eu:—­acudiu elrei, voltando-se para a velha.—­Mas juro a Christo, que estou espantado de só agora vos vêr! Porque me não viestes falar?”

“Perdoe-me vossa mercê:—­replicou a velha.—­ Eu vim trazer pão á feira, e ahi souhe da chegada de vossa real senhoria. Corri ... se eu correria para vos falar! Mas estes bôcas abertas não me deixaram passar. Abrenuncio! Depois estive a olhar... Parecieis-me carregado de semblante. Que é isso? Temos novas voltas com os excommungados castelhanos? Se assim é, trosquiae-mos outra vez por Aljubarrota, que a pá não se quebrou nos sete que mandei de presente ao diabo, e ainda lá está para o que der e vier.”

Soltando estas palavras, a velha tirou as mãos das algibeiras, e cerrando os punhos, ergueu os braços ao ar, com os meneios de quem já brandia a tremebunda e patriotica pá de forno, que hoje é gloria e brasão da gothica villa de Aljubarrota.

“Podeis dormir descançada, tia Brites:—­respondeu elrei, sorrindo-se.—­Bem sabeis que sou portuguez e cavalleiro, e a gente de nossa terra é cortez: elrei de Castella veio visitar-nos varias vezes: e agora eu ando na demanda de lhe pagar com usura suas visitações.”

Em quanto este dialogo se passava entre o heroe de Aljubarrota e a sua poderosa alliada, Martim Vasques tinha posto tudo a ponto; e dando as suas ordens da porta, as primeiras pancadas de martello, batendo nos simples, resoaram pelo ambito da casa capitular. Fez-se um grande silencio e todos os olhos se cravaram em Martim Vasques.

Passada uma hora, aquelle montão de vigas, barrotes, taboas, cambotas, cabrestantes, reguas e travessas tinha passado pela crasta fóra em collos de homens: os presos tinham sido postos em liberdade, com grande raiva da tia Brites ao vêr ir soltos os bésteiros castelhanos; e só no centro da ampla quadra se via uma pedra, sobre a qual, mudo e com a cabeça pendida para o peito, estava assentado um velho.

A este velho rogava elrei, rogavam frades, rogava o povo, sem todavia se atreverem a entrar, que saisse d’alli; mas elle não lhes respondia nada. Desenganados, emfim, foram-se pouco a pouco retirando da crasta, onde ao pôr do sol começou a bater o luar de uma formosa noite de Maio.

Três dias se passaram assim. Mestre Affonso, assentado sobre a pedra fria, nem se quer cedêra ás rogativas de Anna Margarida, que, obrigada pela boa amizade que tinha a seu amo, se atrevêra a cruzar os perigosos umbraes do capitulo, para vêr se o movia a tomar alguma refeição: tudo recusou o cégo: a sua resoluçào era inabalavel. Também a abobada estava firme, como se fôra de bronze. No terceiro dia á tarde elrei, que tinha passado o tempo em aparelhar-se para a guerra com actos de piedade, desceu á crasta acompanhado de Fr. Lourenço e de outros frades, e chegando á porta do capitulo viu Martim Vasques e Anna Margarida juncto á pedra fria de Affonso Domingues, e este pallido e com as palpebras cerradas encostado nos braços delles.

O mancebo e a velha choravam e soluçavam, sem dizerem palavra.

“Que temos de novo?—­perguntou elrei, chegando á porta, e vendo aquelles dous estafermos.—­Completam-se ora os tres dias do voto: ainda mestre Affonso teimará em estar aqui mais tempo?”

“Não senhor:—­respondeu Martim Vasques, com palavras mal articuladas:—­não estará aqui mais tempo; porque seu corpo é herança da terra; sua alma repousa com Deus.”

“Morto!?”—­bradaram a uma voz elrei e Fr. Lourenço; e correram para o cadaver do architecto, olhando, todavia, primeiro para a abobada com um gesto de receio.

“Nada temaes, senhores:—­disse Martim Vasques—­As ultimas palavras do mestre foram estas: a abobada não cahiu ... a abobada não cahirá!”

O architecto, já velho, não pôde resistir ao jejum absoluto a que se condemnára. No momento em que, ajudado por Martim Vasques e Anna Margarida, se quiz erguer cahiu moribundo nos braços delles, e aquelle genio de luz mergulhou-se nas trévas do passado.

Elrei derramou algumas lagrymas sobre os restos do bom cavalleiro, e Fr. Lourenço resou em voz baixa uma oração fervente pela alma generosa, que até o ultimo arranco escrevêra sobre o marmore o hymno dos valentes de Aljubarrota.

Na pedra, sobre a qual Mestre Affonso expirára, ordenou elrei se tirasse, parecido quanto fosse possivel retratando-se um cadaver, o vulto do honrado architecto, e que esta imagem fosse collocada em um dos angulos da casa capitular, onde durante mais de quatro seculos, como as sphynges monumentaes do Egypto, tem dado origem ás mais desvairadas hypotheses e conjecturas. Á pobre Anna Margarida, que ficava sem arrimo, doou D. João I, tambem, as casas em que o mestre morava, fazendo-lhe, além disso, assignaladas mercês.

Mestre Ouguet, pelo que o cégo dissera a elrei ácerca da sua capacidade para o substituir, e porque, emfim, era estrangeiro, foi logo restituido ao cargo que occupára, e quando nos serões do mosteiro alguem falava nos meritos de Affonso Domingues e na sua desastrada morte, cortava o irlandez a conversação, dizendo com um riso amarello:

“Olhem que foi forte perda!”


  1. A louça de Estremoz é antiquissima em o nosso paiz. No tempo de Francisco I de França, mandavam-se buscar os pucaros desta louça a Portugal, para beber a agua, que então, bem como hoje, se tornava nelles excessivamente fria.
  2. Semanas.
  3. Martim Vasques foi o 3.º mestre das obras da Batalha e Fernão d’Evora o 4.º—­Veja-se a Memoria de D. Francisco de S. Luiz no 10.º volume das da Academia.