Era noite; sentia-me abrasar no leito.

Precisava de ar, de espaço, de movimento. Ergui-me, e vaguei durante uma hora pelas ruas já desertas. A noite ao menos traz o mistério. Perco a minha triste celebridade. Passo como uma sombra entre as outras sombras que dormem na terra.

A sede que tinha de ar, no sangue e na cabeça, levou-me à borda do mar. Fui sentar-me perto das Cinco Pontas, sobre algumas pedras que a maré deixara em seco.

A brisa fresca e cortante que vinha do largo impregnada das úmidas exalações das ondas batia-me em cheio no rosto. Banhava-me, como a veia de um rio. Aspirei as emanações salitrosas do oceano. A volúpia que eu sentia nesse respirar do ar livre, não sei se a gozarão outros colhendo beijos na boca vzrgem de sua noiva.

O vento!... Oh! ninguém sabe que delícias me trazem os seus acres perfumes! Que sedas e cambraias são as refegas dele para o corpo devorado da febre, quando o sangue escalda nas veias!

O vento!... É o túmulo que eu terei um dia. Quando morrer, ninguém se animará a tocar no meu corpo para dá-lo à terra. Hão de queimá-lo, porque não infeccione o ar. E as minhas cinzas então, soltas ao vento, voarão com ele sobre esse vasto e imenso oceano.

A maré começava a encher. As ondinhas debruçando-se umas pelas outras, todas frocadas de espumas, brincavam como um bando de cordeirinhos que retouça sobre a relva ao pôr do sol. Algumas espreguiçando-se pelas areias vinham lamber-me os pés e quase os tocavam.

Não sei que ilusão me alheara o es pinto. De as contemplar, de as admirar, a essas ondinhas travessas, foi-me parecendo que tinham alma, para sentir. E, de repente, ao ver que se chegavam para mim e me festejavam, enterneci-me e chorei.

Chorei, sim!... Tão órfão estou eu de afeições, que as procuro até na matéria inerte!... Tão acostumado ando a me fugirem, que já me surpreende ver um objeto ainda inanimado aproximar-se de mim, obedecendo à sua lei física.

Rompeu-me esse enleio d'alma uma voz doce e melodiosa. Soltava ela aos sopros da viração as frases singelas de uma canção.

Ergui a cabeça. A alguns passos se elevava uma pequena casa. Dela entrava pelo mar um terrado coberto de arvoredo. O vulto de uma menina, vestida de branco, se destacava na borda do jardim, onde quebravam as ondas.

Era dela a voz.

Pude distinguir ao luzir das estrelas os seus movimentos. Tinha as duas mãozinhas cruzadas sobre o peito; os olhos no céu. Rezava: eram cantos as suas rezas.

Não retive da letra mais do que esta invocação — Ave-Maria! Mas achei o verso tão simples e o ritmo tão suave, que me parece o tenho ainda no coração. Foram-se as palavras e os tons, só ficou o sentimento.

Assim, de uma flor que se desfolha, ficam no espaço ondas de perfume. Mal que terminou a sua melodiosa oração a menina voltou a casa, correndo e saltando por entre as moitas do jardim.

Também eu voltei. As ondas me expulsaram de seu leito.