Introduzi-me na igreja por uma janela baixa da sacristia, cuja grade estava carcomida.

Vendo à luz baça dos tocheiros assomar um vulto, as beatas fugiram assombradas. Fiquei só ali em frente do ataúde.

Nesse momento Úrsula me pertencia; ninguém a disputava à minha adoração.

Como era bela no eterno sono em que repousava do mundo e de suas misérias! Tinha nos lábios aquele mesmo sorriso que derramava sobre mim, agora tocado de um reflexo lívido. Estava branca e imaculada como os anjos; eram níveas como as faces as rosas que lhe cingiam os bastos cabelos crespos.

Quis beijá-la e recuei!... Ainda morta, e brevemente pasto dos vermes, não ousei profanar o despojo santo da formosa criatura.

Nesse momento ouço rumor do lado da sacristia. É a gente curiosa que vem trazida pelas beatas, para espancar o espetro. Querem roubar-ma outra vez!...

Mas não o conseguirão! Hei de disputá-la até aos vermes e ao pó da terra.

Cingindo ao peito o corpo de Úrsula, arrojei-me fora da igreja, e vim depositá-lo aqui, onde ninguém ousará perseguir-me. As portas estão eiscâncaras, dia e noite, batidas pelo vento; guardadas porém uma fera mais terrível que Cérbero, a peste.

Agora sim, Úrsula, tu me pertences para sempre, como eu a ti.

Que se passa?

Ouço a plebe a rugir lá fora; uma chama súbita enrosca-se pela treva como o dragão.

Compreendo: deitaram fogo à casa para exterminar o maldito!

Graças, meu Deus! Este fogo me redimirá da maldição que pesa sobre mim, e purificará meu ser. Assim ao menos poderão minhas cinzas se unirem com as de Úrsula!

Bem-vindas, chamas amigas! Aqui estamos; cingi-nos, abraçai-nos, para que em vosso seio fecundo, celebremos as núpcias da eternidade.