O teatro representa a sala de visitas da casa de Ribeiro.
CENA I
editarJOANA, ISABEL
Isabel, sentada junto a uma mesa redonda, que deve estar no centro, tem perto de si uma cesta de costura. Joana está sentada num canapé, á esquerda.
JOANA - Tem paciência, minha filha; resigna-te, resigna-te! este mundo é mesmo assim.
ISABEL (Enxugando os olhos.) - Mas eu gosto tanto dele, mamãe!
JOANA - Sim, acredito, mas bem deves saber...
ISABEL - E ele gosta tanto de mim...
JOANA (Aproximando-se da filha.) - Esqueçam-se um do outro.
ISABEL - Impossível.
JOANA - Que te hei de dizer? Jamais te aconselharei a que contraries a vontade de teu pai, que tão bem se tem compenetrado dos seus deveres e da sua responsabilidade.
ISABEL - Dos seus deveres de marido, não nego. Mas é assim que a senhora compreende os deveres de um pai? De que serviu essa esmerada educação que recebi? Para que ele me mandou ensinar a distinguir as coisas e as pessoas? Para atirar-me nos braços de um tolo!
JOANA - Belinha!
ISABEL (Com mais força.) - De um tolo, de um parvo, de um analfabeto, de um coisa-ruim!... Aqui tens esta mulher, este traste... toma-o, enfeita-o, e apresenta-o, vaidoso, ao mundo... é um objeto que compraste por um punhado de ouro! (Chora.)
JOANA - Não chores, minha filha... Vê que me afliges!
ISABEL - Deixe-me chorar, mamãe. Que seria de mim, se não fossem estas lágrimas? Teria eu bastante força para resistir a tanta contrariedade?
JOANA - Olha, faze de conta que ele morreu.
ISABEL - Antes morresse. Eu morreria também. Morreríamos ambos. E já que na terra não consentem na nossa ventura, unir-nos-íamos no céu.
JOANA - Não condenes a teu pai: o muito amor que tem por ti é que o leva a descobrir nesse casamento a tua felicidade. Anda iludido. Talvez que com calma... Deixa estar... Eu falo-lhe. (Desce ao proscênio.)
ISABEL (Erguendo-se, vivamente.) - Fala-lhe? Oh, mamãe! mamãe! (Beijando-a.) Que bom, se conseguisse...
JOANA - Quem sabe? Serei eloqüente. Mas só patrocino a tua causa sob uma condição...
ISABEL - Sei qual é: não chorar mais. Prometo. (Enxuga bem os olhos.) Vê? Ninguém dirá que aqui estiveram lágrimas.
JOANA (Beijando-a.) - Tolinha! Vamos para a sala de jantar. O sol já bate na janela. Não se pode parar aqui com o calor. Vamos! (Ouvindo um soluço de Isabel.) Espera; talvez saia tudo à medida dos nossos desejos.
ISABEL - Deus o permita. (Toma o cestinho de costura.)
JOANA (Saindo com a filha.) - Ninguém mais do que eu deseja ver-te feliz. É preciso acabar de uma vez por todas com essas lágrimas que... (Perde-se o resto nos bastidores.)
CENA II
editarRIBEIRO, ERNESTO
RIBEIRO (Trazendo Ernesto pelo braço quase à força.) - Faça favor de entrar, Senhor Alberto.
ERNESTO - E o senhor a dar-lhe com Alberto! Ernesto!
RIBEIRO (Emendando.) - Pois faça favor de entrar, Senhor Ernesto. É esta a nossa humilde choupana. Não repare. Aqui tem uma cadeira: sente-se.
ERNESTO - Não sei como agradecer tanta bondade, Senhor Ribeiro.
RIBEIRO - Eu é que devo agradecer, é boa! (Chamando.) ó senhora! ó menina!
ERNESTO - Ora! não vim preparado... (Vai a um espelho.)
RIBEIRO - Está perfeitamente. Minha mulher e minha filha não são de cerimônias. Não lhes faça muitos cumprimentos: é pô-las em mau costume, Senhor...
ERNESTO (Sentando-se.) - Ernesto.
RIBEIRO (Concluindo.) - ... Senhor Ernesto. (Senta-se também.) Aqui onde me vê, tenho uma filha de dezoito anos.
ERNESTO - Ah! sim?
RIBEIRO - E se o meu Manuelito estivesse vivo, devia ter a sua idade. Que idade tem?
ERNESTO - Eu? Vinte e cinco anos.
RIBEIRO - Ele estaria com vinte e três. Ora! está no céu. Foi talvez melhor assim. Resta-me a Belinha.
ERNESTO - Belinha? Ah! é a menina?
RIBEIRO - É a menina, é. Conto muito breve convidá-lo para o casamento dela.
ERNESTO - Deveras?
RIBEIRO - Nada, que elas, em chegando a certa idade, é preciso arrumá-las; quando não, ficam para aí tias, e não acham quem as pretenda, a não ser algum troca-tintas, mais namorado do dote que de outra coisa.
ERNESTO - Tem razão. E o nome do noivo? É segredo?
RIBEIRO - Segredo? Eu não tenho segredos. O noivo é o Comendador Domingos Bastos, conhece?
ERNESTO - Conheço um Comendador Domingos Bastos, mas não pode ser esse.
RIBEIRO - Por quê?
ERNESTO - Porque... esse já não é criança.
RIBEIRO - E julga o senhor que eu dava minha filha a uma criança?
ERNESTO - Ah, isto é um modo de falar.
RIBEIRO - O Domingos é um homem honrado... Não teve a glória de inventar a pólvora, não é nenhum fura-paredes, mas tem muito bom senso e uma boa dúzia de patacas.
ERNESTO - Mas é que...
RIBEIRO - E que o quê?
ERNESTO Uma menina de dezoito anos...
RIBEIRO - Ora pelo amor de Deus, Senhor... Alberto não?
ERNESTO - Ernesto.
RIBEIRO - Ora pelo amor de Deus, Senhor Ernesto! Também é dos tais? Não admira: na sua idade... Achava talvez mais acertado casá-la...
ERNESTO - Perdão, não digo isso, nem é da minha conta o que se passa no seio de sua família. Naturalmente a menina estima o seu noivo, e nesse caso...
RIBEIRO - Engana-se. A Belinha não quer vê-lo nem pintado. Anda embeiçada por um pelintra, e não há meio de fazê-la chegar-se ao rego.
ERNESTO - Nesse caso, desculpe a franqueza de um indivíduo que conhece apenas de alguns minutos: faz muito mal, Senhor Ribeiro. Os casamentos de conveniência são sempre muito inconvenientes.
RIBEIRO - Ora aí vem o senhor! Não admito que ninguém mais do que eu se interesse pela felicidade de minha filha. Prezo-me de ser bom pai.
ERNESTO - A seu modo. A intenção é boa; os efeitos é que são detestáveis.
RIBEIRO - Sabe que mais? Vou fazer cinqüenta e quatro anos, Senhor Alberto. (Ernesto encolhe os ombros.) Tenho levado uma vida bem governada, e de muito me tem servido a experiência do mundo. Quando me casei, a madama, se quer que lhe diga, não trouxe lá muito boa cara da casa do pai. O homem era da minha têmpera. Podia ignorar muita coisa, mas sabia perfeitamente onde tinha o nariz. Ora adeus! minha mulher em pouco tempo estava que não parecia a mesma. Temos sido muito felizes.
ERNESTO - Não se argumenta com exceções.
RIBEIRO - O mesmo há de acontecer à Belinha. A princípio muito desgosto, muita choradeira... (Arremedando.) Quero ir pro convento! Vou tomar verde-paris! Não toco mais piano! (Naturalmente.) E depois? Ai, meu maridinho, aonde te porei?
ERNESTO - Nem sempre assim sucede. (Ergue-se.) Olhe, em mim tem o senhor um exemplo. (A meia voz.) Eu gostava muito de uma moça...
RIBEIRO (Erguendo-se.) - Sim?
ERNESTO - Que foi obrigada a casar-se com outro homem.
RIBEIRO - Sim?
ERNESTO - É uma história muito comprida. Se soubesse quanto sofremos!
RIBEIRO - Sim?
ERNESTO - Quanto sofremos ainda!
RIBEIRO - Pois continuam?
ERNESTO - Se continuamos!
RIBEIRO - E ela... está... casada?
ERNESTO - Há oito meses.
RIBEIRO - E mostra-lhe ainda muita amizade?
ERNESTO - Amizade? Nenhuma.
RIBEIRO - Ah!
ERNESTO - Mas muito amor...
RIBEIRO - Oh!
ERNESTO - Amor veemente, entranhado, profundo... amor que só com a morte acabará um dia. Pois essa imoralidade que a igreja santifica e a sociedade legaliza, o casamento de conveniência, é lá bastante forte para destruir o sentimento do amor em dois corações apaixonados e jovens?
RIBEIRO - É poeta! Está perdido!
ERNESTO - Aceite o meu conselho, Senhor Ribeiro: deixe à menina a livre escolha do seu noivo, e pese bem as conseqüências de uma união forçada!
RIBEIRO - Ora as conseqüências! Uma recordação que naturalmente não se pode desvanecer em seis ou oito meses... mas que depois... em vindo a filharada...
ERNESTO - Mas saiba, meu caro Senhor Ribeiro, que eu vou à casa dela...
RIBEIRO - Fale mais baixo!
ERNESTO (Baixando a voz.) - ... quando o marido não está, bem entendido. (Gesto de admiração de Ribeiro.) Devo parecer-lhe muito leviano contando-lhe estas coisas... mas quero abrir-lhe os olhos... Ainda o outro dia... (Rindo-se muito). Ah! ah! ah! Não posso lembrar-me - sem que me ria! (Rindo-se mais.) Ah! ah! ah!
RIBEIRO (Rindo-se, ainda sem saber de quê.) - Eh! eh! eh! Então que foi?
ERNESTO (Rindo-se sempre.) - Estávamos ela e eu, na sala de visitas (porque, é preciso notar, nunca passei da sala de visitas), e dizíamos um ao outro, essas mil frivolidades de amor que jamais variam e, no entanto, sempre nos parecem novas, quando ouvimos passos no corredor!
RIBEIRO (Rindo-se muito.) - Querem ver que era o cujo?
ERNESTO - Pois quem havia de ser? Não tive outro remédio senão esconder-me num guarda-roupa...
RIBEIRO (Muito sério, puxando-o por um botão do casaco.) - Agora espichou-se... Um guarda-roupa na sala de visitas?
ERNESTO (Muito sério.) - Sim, senhor. E eu lhe explico... e eu lhe explico... Eles mudaram-se há pouco tempo... e o guarda-roupa, um guarda-roupa imenso, disforme, incomensurável, um guarda-roupa que parece uma catedral, não coube em nenhum dos quartos... foram obrigados a colocá-lo na sala de visitas... até que o substituam, ora ai está!
RIBEIRO - De modo que foi uma providência?
ERNESTO - Naturalmente. Se não fosse o guarda-roupa... Mas que estafa! Passei hora e meia dentro daquela fornalha!
RIBEIRO - Bem feito. Não lhe ficou vontade de lá voltar.
ERNESTO - Ao guarda-roupa? Não, decerto. Mas na sala já eu estive duas vezes depois disso.
RIBEIRO - Ah, rapazes! rapazes!
ERNESTO - Este exemplo deve aproveitar-lhe: não dê a menina ao Comendador Domingos Bastos...
RIBEIRO - Ora adeus! De que vale o homem sem dinheiro?
ERNESTO - E de que vale o dinheiro sem homem?
RIBEIRO - Mas esta gente que não vem! Ah! falai no mau...
CENA III
editarOS MESMOS, JOANA, ISABEL
JOANA - Chamaste-nos, Manuel? (Cumprimentos mudos entre as duas senhoras e Ernesto.)
RIBEIRO - Desejo que conheçam o meu salvador!
JOANA - O teu salvador!
RIBEIRO - É verdade! Este senhor salvou-me a vida!
ERNESTO - Seu esposo exagera, minha senhora: foi obra do acaso; não fiz mais do que faria outro qualquer no meu lugar; entretanto, pegou-me no braço, obrigando-me a acompanhá-lo até cá, para apresentar-me a Vossas Excelências...
RIBEIRO - Alto lá! Aqui não admito Excelências nem Senhorias! Guarde essas farófias para o high-life. Minha família dispensa-as.
JOANA - Decerto, senhor.. Como se chama?
RIBEIRO - Alberto.
ERNESTO - Ernesto de Barros, um seu criado.
RIBEIRO - Ernesto, Ernesto, sempre me engano. (Senta-se; todos o imitam.) Obra do acaso. É muito boa! Também o nascimento é obra do acaso, e a gente a quem mais ama, abaixo de Deus, é a seu pai e a sua mãe. Ora imaginem que ia eu para a Guarda-velha encomendar cinqüenta garrafas de cerveja para casa, quando, ao passar pelo Largo da Carioca, uma maldita casca de banana me faz escorregar e cair sobre os trilhos justamente na ocasião em que ia passar um bonde.
JOANA - Meu Deus!
ERNESTO - Ora! o bonde ainda vinha a meia légua...
RIBEIRO - Ora viva, meu amigo, se o senhor não me houvesse puxado para fora dos trilhos...
ERNESTO (Modestamente.) - Qual!
RIBEIRO - Estávamos a estas horas... você sem marido... você sem pai... e eu sem vida. Eu é que ia mais no meio.
JOANA - Vejam que brincadeira!
RIBEIRO - Ergo-me debaixo de um coro de gargalhadas.
ERNESTO - Os homens são perversos. Todos se riem quando alguém leva um trambolhão.
JOANA - Confesso o meu pecado, Senhor Ernesto... se vejo alguém cair, quero ficar séria e não posso. É um riso involuntário.
RIBEIRO - E então as senhoras que têm sempre a caninha n'água! (Continuando a narração.) Mas como ia dizendo, ergo-me... ou antes, o Senhor Alberto ergue-se, eu tomo-lhe o braço, e obrigo-o a vir até cá para apresentá-lo a vocês, dizer-lhes quem é, etc. Conto que fique amigo da casa, e não deixe de nos visitar algumas vezes.
JOANA - Decerto. É solteiro, Senhor Ernesto?
ERNESTO - Solteiro, minha senhora.
JOANA - Mas tem família aqui?
ERNESTO - Nem aqui nem em parte alguma. A varíola o ano passado roubou-me o derradeiro parente.
JOANA - Fica para almoçar conosco?
ERNESTO - Sinto não poder aceitar o convite de Vossa Ex...
RIBEIRO - Ah?
ERNESTO (Rindo-se.) - Da senhora. Costumo almoçar em casa do patrão, e são quase horas...
RIBEIRO - O Senhor Ernesto é guarda-livros de uma casa muito importante. (A Isabel, que desde o principio da cena tem estado triste, a folhear um álbum.) Então, menina? você não diz nada? parece matuta!
ISABEL - Nada tenho que dizer.
ERNESTO - Tenho notado que está triste, minha senhora...
ISABEL - É o meu natural.
RIBEIRO - Deu-lhe pr'ali, Senhor... Ernesto: as mulheres são mesmo assim: qualquer coisa as amofina como as alegra; choram por um nada e riem-se por dá cá aquela palha.
ERNESTO - Não diga isso. Quantas vezes se enganam os homens que assim pensam! As mulheres são uns pobres entes, cujos direitos desconhecemos, cuja liberdade cerceamos. Quantas angústias silenciosas, quantas dores que não se dizem, quantos sentimentos que se calam justificam essas lágrimas sinceras e apaixonadas, a que eles emprestam sempre uma origem fútil, irrisória, ridícula!
RIBEIRO - Com licença: vou tirar esta albarda... Em casa não posso estar senão de rodaque. (Sai.)
CENA IV
editarERNESTO, JOANA, ISABEL, depois RIBEIRO
ISABEL - Papai não toma estas coisas a sério. Diz que é poesia.
JOANA - Em nome do meu sexo, agradeço a generosidade de suas palavras, Senhor Ernesto.
ERNESTO - Nada tem que agradecer, minha senhora; é a verdade... Quem sabe se Dona Belinha...
ISABEL - Quem disse ao senhor que eu me chamava Belinha?
ERNESTO - Foi o senhor seu pai.
ISABEL - Ah!
ERNESTO - Quem sabe se não tem mágoas secretas?
ISABEL (Vivamente.) - Eu não, senhor.
ERNESTO (A Joana.) - A Vossa Excelência compete sondar aquele coração.
JOANA - As mães não sondam; adivinham. São como certos médicos experimentados, que não precisam tomar o pulso ao doente para saber se tem febre.
ERNESTO - Tem tão bons olhos?
JOANA - Os olhos do coração vêem muito longe.
ERNESTO - E o Senhor Ribeiro... não os terá míopes?
ISABEL (Vivamente.) - Cegos, completamente cegos!
JOANA - Belinha!
ERNESTO - Sei a história do seu projetado casamento.
JOANA - Ele disse-lhe?
ERNESTO - Não está completamente cego: tem cataratas apenas. As cataratas operam-se com facilidade.
JOANA - Sim, mas falta o cirurgião.
ISABEL (Vivamente.) - O cirurgião deve ser a senhora.
ERNESTO - Eu poderei ajudá-la, se quiser.
JOANA - O senhor?
ISABEL - Oh! Como eu lhe agradeceria!
ERNESTO - Ele ai vem. (Indo ao encontro de Ribeiro, que entra de roda que.) Senhor Ribeiro, dê-me as suas ordens.
RIBEIRO - Já?
ERNESTO - São horas. Hoje parte um vapor para o Sul... está a correspondência por fazer...
RIBEIRO - Não quero desviá-lo de suas obrigações.
JOANA - Mas, no domingo, há de vir jantar conosco; sim?
RIBEIRO - Bem lembrado! Deita-se mais uma caneca d'água na sopa. Veja lá se vai faltar.
ERNESTO - Serei pontual. (Aperta as mãos às senhoras.) Minhas senhoras...
ISABEL - Até domingo, Senhor Ernesto.
JOANA - Estimei muito conhecê-lo, e agradeço de coração o serviço que...
ISABEL - Também eu, Senhor Ernesto.
ERNESTO - Pelo amor de Deus, minhas senhoras! Até domingo. (Vai apertar a mão de Ribeiro.)
RIBEIRO - Acompanho-o até a escada.
ERNESTO - Nada, não se incomode.
RIBEIRO - Ora! (Insiste. Novas e últimas cortesias. Ribeiro e Ernesto saem pelo fundo.)
CENA V
editarJOANA, ISABEL
ISABEL - Não lhe pareceu tão bom moço, mamãe?
JOANA - Sim, sim; mas vai lá para dentro: quero falar a teu pai.
A VOZ DE RIBEIRO - Ponha o chapéu, Senhor Alberto!
A VOZ DE ERNESTO - Ernesto! (Ouve-se Ribeiro rir.)
ISABEL - Vai falar-lhe a meu respeito, mamãe?
JOANA - Pois então? Vai, vai para o teu quarto, e não nos venha interromper.
CENA VI
editarJOANA, RIBEIRO
RIBEIRO - Eh! eh! eh! Parece-me um excelente rapaz... apesar do guarda-roupa. (Vai saindo pelo lado.)
JOANA (Sentada.) - Manuel?
RIBEIRO (Parando.) - Hein?
JOANA - Venha cá, sente-se perto de mim.
RIBEIRO - Temos namoro? Olha, mulher, que isto, depois de vinte e quatro anos de casados, não tem mais graça. (Sentando-se.) Cá estou. Que deseja?
JOANA - Desejo saber que papel represento nesta casa.
RIBEIRO - Oh! essa agora!
JOANA - Desejo saber que papel...
RIBEIRO - Já ouvi, já ouvi, que não sou surdo; mas ainda não pude perceber o sentido de suas palavras.
JOANA - Trata-se do futuro de sua filha.
RIBEIRO - Logo vi.
JOANA - E sua filha também é minha.
RIBEIRO - Naturalmente; é nossa.
JOANA - É até mais minha do que sua; eu sou sua mãe... o senhor é apenas pai.
RIBEIRO - Apenas.
JOANA - É de bom aviso, me parece, consultarem-se as mães quando se pretende dispor dos filhos.
RIBEIRO (Depois de uma pausa.) - Respondo sem retóricas nem palanfrórios. Olhe bem para mim; parece-lhe que tenho um t na testa?
JOANA - Eu é que lhe devia fazer essa pergunta.
RIBEIRO - Se a fizesse, eu responderia que sim. (Levanta-se.) Era o que faltava! eu, que envelheci no trabalho, que tenho o espírito amadurecido, devia, para tomar uma resolução cuja responsabilidade é minha, imediatamente minha, consultar uma senhora, e então uma senhora quatorze anos mais nova do que eu! (Joana encosta a fronte na mão.) Para quê? Para ouvir destas e outras. Não! não é bom que dês a nossa filha a esse homem honrado e maduro para quem a destinaste; vai ao jardim do Santana, vai à Rua do Ouvidor, e procura um peralvilho, um boneco, e mete-o em casa, e dá-lhe cama, mesa, roupa lavada e engomada, e tua filha, e nossa filha também! (Pausa, durante a qual passeia de um lado para outro, com as mãos nos bolsos das calças.) Quando eu a pedi, isto é, quando ma deu seu pai -, lembra-se?... - a senhora batia com os pés e arrancava os cabelos, maldizendo uma sorte invejável... (Joana encara-o fixamente.) Invejável, sim, senhora! Tomaram-na muitas, e mais pintadas! Nessa ocasião consultou seu pai a sua mãe? Diga! (Pausa.) Não consultou, não, senhora! Meu sogro era dos meus, e minha sogra lia romances, e a senhora também os lê, e sua filha, e nossa filha, que para isso é que serve o dinheiro que gastei com os mestres.
JOANA - Atende, Manuel... é em nome da felicidade de Belinha que te falo!
RIBEIRO - E nós não fomos tão felizes?
JOANA - Foste-o tu; eu não!
RIBEIRO - Hein?
JOANA - Sim, porque fui sacrificada à vontade de ferro de meu pai; porque fui obrigada a renunciar a todas as minhas aspirações, e vi desfeitos, como um castelo de fumo, todos os meus sonhos de ventura. Obedeci. Pois que o tempo se encarrega de tudo aniquilar, sou feliz agora, sou feliz, entendes? Porque me revejo em minha filha. Muito será condená-la também ao sacrifício; muito será renovar contra essa pobre criança a penosa situação que precedeu o nascimento do nosso primeiro filho.
RIBEIRO - Que queres tu dizer, mulher?
JOANA - Só depois do seu nascimento principiei a amar-te. Odiei-te a princípio, porque não te podia amar; amei-te depois, porque Deus mo ordenava nos sorrisos de nosso filho.
RIBEIRO - A tua situação penosa só durou um ano. É muito sacrificar Belinha a um ano de provação?
JOANA - Mas durante esse tempo a mulher tentada vacila muitas vezes entre o amor e o dever.
RIBEIRO - A mulher tentada?!... e foste-o tu?!... Tentaram-te?!...
JOANA - Sim. E vacilei. Sossega: venci.
RIBEIRO (Com um suspiro de alívio.) - Ah!
JOANA - Mas cartas sobre cartas recebi, que...
RIBEIRO - Cartas?!
JOANA - Ei-las! (Tira da algibeira um maço de cartas.)
RIBEIRO - Fechadas... Estão fechadas?
JOANA - Fechadas há vinte e quatro anos. Não as abri, para provar-te a minha honestidade quanto tas apresentasse mais tarde, intercedendo por uma filha que, por ventura, o céu nos desse, como nos deu. Eu fui forte, e venci; ela pode ser fraca, e ceder. Vê o que fazes!
RIBEIRO (Guardando as cartas.) - Histórias! Caso-a com o Comendador, e caso-a bem!
JOANA - O moço a quem ela ema e com quem deseja casar-se é de boa família e tem um meio de vida honesto.
RIBEIRO - Não me agrada.
JOANA - Também não agradava a meu pai aquele que eu amei, e no entanto...
RIBEIRO - Foi presidente de província e até ministro; mas caiu o partido, e hoje não passa de um pobre advogado sem renda certa. Ora viva!
JOANA (Brandamente.) - Convence-te, Manuel.
RIBEIRO (De mau humor.) - Convencer-me de quê? De uma asneira? A pequena ou casa-se com o Comendador, ou faço uma estralada que vai tudo raso!
CENA VII
editarJOANA, RIBEIRO, ISABEL
ISABEL (Entrando e lançando-se aos pés do pai.) - Papai!
RIBEIRO (Embaraçado.) - Levante-se, menina! Tenha juízo! Não seja tola!
ISABEL (Erguendo-se e caindo banhada em lágrimas nos braços da mãe.) - Mamãe!
A VOZ DE MACEDO - Licença para mais dois! (Isabel limpa apressadamente as lágrimas e disfarça. Rosália aparece ao fundo, acompanhada por Macedo.)
RIBEIRO - Entra, Macedo. Dona Rosália, vá entrando.
CENA VIII
editarJOANA, RIBEIRO, ISABEL, MACEDO, ROSÁLIA
Macedo dirige-se a Ribeiro; e Rosália, a Joana e Isabel.
MACEDO - Como vai isso?
ROSÁLIA - Como estão? (Abraços, beijos, etc. Rosália vai cumprimentar Ribeiro; Macedo, Joana e Isabel.)
RIBEIRO - Vou indo. A senhora cada vez mais bela!
MACEDO - Ora vivam, minhas senhoras!
As DUAS - Senhor Macedo... (Jogo de cena ao cuidado do ensaiador.)
MACEDO - A menina tem os olhos vermelhos. Esteve a chorar?
ROSÁLIA - É verdade, agora reparo, Belinha! Que tens tu?
ISABEL - Nada...
MACEDO - Quem bem nada não se afoga. Eh! eh! eh!...
RIBEIRO - Asneiras... morreu-lhe um dos passarinhes...
MACEDO - E; as mulheres não choram senão... (Benzendo-se.) Padre, Filho, Espírito Santo!
JOANA - Senão por quê, Senhor Macedo?
ROSÁLIA - Desculpe, Dona Joana: meu marido não sabe o que diz. (Grupo das três senhoras.)
MACEDO - Já tardava um remoque... (Entre dentes.) Malcriada! (A Ribeiro.) Minha mulher queria almoçar hoje com vocês, e eu acompanhei-a porque preciso falar-te.
RIBEIRO - Estou às tuas ordens.
ROSÁLIA - A causa principal da minha visita é saber por que as senhoras não têm aparecido... Depois que nos mudamos, ainda não nos deram esse prazer...
JOANA - E que tal a casa nova?
ROSÁLIA - Eu dou-me bem em toda a parte.
MACEDO - Tem bons cômados, mas todos muito acanhados. (A Ribeiro.) Imagina que o guarda-roupa está na sala de visitas, porque não cabe em nenhum dos quartos!
RIBEIRO - Hein?
ROSÁLIA - É verdade; temos que substituí-lo por outro mais pequeno. Também uma almanjarra daquelas!
MACEDO - Nunca vi um guarda-roupa tão grande! Podia uma família morar lá dentro à vontade. Eh! eh! eh!...
ROSÁLIA (A Isabel.) - Disseram-me que você foi às últimas corridas com um vestido muito bonito... há de mostrar-mo.
ISABEL - Com todo o prazer.
MACEDO (A Ribeiro.) - Minha mulher gasta uma fortuna em vestidos! Padre, Filho, Espírito Santo!
JOANA - Com licença; vou dar algumas ordens para o almoço. Dona Rosália, querendo entrar, nada de cerimônias. A senhora sabe. (Vai saindo e volta.) Dê-me o seu chapéu e a sua capa. (Rosália dá-lhe o chapéu e a capa. Joana sai. Rosália e Isabel, abraçadas, vão para o fundo.)
RIBEIRO (A Macedo.) - Mas sobre que me querias falar?
MACEDO - Sobre esta carta que recebi de um freguês de Minas, pedindo-lhe uma moratória. Quero que me aconselhes Sobre este negócio... Ah! tu és um homem feliz: liquidaste a tua casa, vives dos teus rendimentos, não tens que dar satisfações a ninguém... Invejo o seu sossego! Pudesse eu, e faria o mesmo.
RIBEIRO - Deixa-te disso... Dá-me a carta, e vamos para o gabinete, onde estaremos à vontade...
MACEDO - Vamos. (Saindo com Ribeiro, a Isabel, que desce ao proscênio, sempre abraçada a Rosália.) Então, menina, o passarinho foi-se, hein? Eh! eh! eh!... (Saem Ribeiro e Macedo.)
CENA IX
editarROSÁLIA, ISABEL
ROSÁLIA - Idiota! (Outro tom.) Vamos lá!... agora que estamos sós... diga-me: por que estava chorando?
ISABEL - Você para que que o pergunta, se não me dá remédio?
ROSÁLIA - Quem sabe? O remédio pode vir de quem menos se espera.
ISABEL - Papai quer por força que eu me case com o Comendador Domingos Bastos... um homem impossível...
ROSÁLIA - Conheço; parece-se muito com meu marido.
ISABEL - Você sabe que eu gosto muito do Alfredo Lemos, e que o Alfredo Lemos gosta de mim.
ROSÁLIA - E seu pai também sabe disso?
ISABEL - Sabe; mas é inflexível. Não cede nem às minhas lágrimas nem aos pedidos de mamãe. Oh, Rosália! que será de mim?
ROSÁLIA - A mesma pergunta fazia eu quando era noiva daquele tipo. Hoje não me queixo. Você quer um conselho? Obedeça a seu pai; case-se, e, depois de casada, continue a gostar do outro.
ISABEL - Rosália!...
ROSÁLIA - Admira-se desta linguagem? Que quer? O casamento perverteu-me: já não sou a mesma. É provável que venham a falar de mim... é possível até que já se fale... Mas que me importa uma sociedade que consente no nosso sacrifício, que não tem uma voz que se levante em nosso favor?
ISABEL - Rosália!
ROSÁLIA - Quando me casei, exigiram que me esquecesse dele. Debalde protestei. Levaram-me a uma igreja como se me levassem a um leilão, e deram-me aquele ridículo companheiro para toda a vida. Para toda a vida, Belinha! Faltou-me energia; não me falta amor. Não tive forças para repelir o marido; é natural que as não tenha para repelir o amante.
ISABEL - Pois você? Oh!...
ROSÁLIA (Resoluta.) - Sim, ele vai à minha casa... à minha própria casa nas horas em que meu marido não está. (Isabel afasta-se instintivamente.) Oh! não se afaste de mim... não sou ainda uma mulher impura... entretanto, não sei se terei forças para não aviltar e materializar o meu afeto... Ele nunca passou da sala de visitas... A princípio fiz-me esquiva à sua presença... fingi muitas vezes que não gostava de o ver ali... mas saboreava intimamente o inefável prazer da sua companhia... Hoje, sou a primeira a pedir-lhe que volte... Como acabará isto, meu Deus? (Rindo-se.) Ah! ah! ah! ainda o outro dia... (Rindo-se mais.) Ah! ah! ah! A coisa tem graça realmente!
ISABEL (Sorrindo tristemente e com algum interesse.) Que foi?
ROSÁLIA - Estávamos juntos; ele falava-me de amor; dizíamos não sei o quê... quando, de repente, ouvimos passos no corredor...
ISABEL - Era seu marido?
ROSÁLIA (Fazendo um sinal afirmativo com a cabeça e rindo-se.) - Não tive outro remédio senão escondê-lo... sabe aonde? Ah! ah! ah! No tal guarda-vestidos! Na almanjarra! (Rindo-se nervosamente.) Case-se, Belinha, case-se, case-se! Não se importe!
CENA X
editarROSÁLIA, ISABEL, RIBEIRO, MACEDO, depois JOANA
MACEDO (Continuando uma conversa.) - Pois grande novidade me dá você! O casamento é pechincha, lá isto é, mas tenho pena do Domingos. Isto de homens de certa idade terem de aturar crianças... Eu que o diga! (Aponta para Rosália.)
RIBEIRO - Hein!
MACEDO - Eu que o diga! Padre, Filho, Espírito Santo! (Ribeiro fica pensativo.)
ROSÁLIA (A Isabel.) - Olhe só para aquela cara!
JOANA (Entrando.) - Vamos almoçar.
RIBEIRO (Como despertando.) - Vamos!
MACEDO - Boa notícia para o pai da criança! Eh! eh! eh! eh! eh!
RIBEIRO (Vendo que Rosália e Isabel não se mexem.) - Ah! não querem? (A Macedo.) Sabes que mais? Vamos indo. Elas que venham quando lhes apertar a fome.
MACEDO - Ai, Ai! Vamos nus que eu levo a roupa! Eh! eh! eh! eh! eh!... (Saem os dois.)
CENA XI
editarISABEL, ROSÁLIA, JOANA
ROSÁLIA (Erguendo-se, a Isabel.) - Vamos, vamos também. (Encaminha-se para a porta.)
JOANA (Em voz baixa a Isabel, que se ergue.) - Não desesperes.
ISABEL - Ora, mamãe, se não houver outro remédio que hei de eu fazer, senão casar-me com o Comendador? (Vai dar o braço a Rosália e saem ambas acompanhadas por Joana, que se mostra estupefata.)
(Pano.)