Havia muito que tinha começado a nova moagem: ia ela já quase em meio, quando se deu um desastre. Um crioulinho deixou-se prender nos cilindros do engenho e teve um braço esmagado.
Ao ver a mísera criança segura, atraída pelo revolver lento, implacável, do mecanismo bruto, o pai dela, o negro moedor, tomou uma alavanca de aço que achou à mão, entalou entre os dentes dos rodetes.
Ouviu-se um grande estalo metálico, um tinir sonoro de ferros partidos, o engenho parou.
Salvou-se a vida do negrinho, mas as moendas inutilizaram-se; rodetes, pescoços, mancais, tudo ficou arrebentado.
Que fora uma caipora, que fora o diabo aquele desastre em meio da moagem, disse o coronel arreliado. Lá pelo crioulinho, não: era ingênuo, era 28 de setembro, ficasse aleijado, pouco prejuízo havia. Que o azar era a interrupção da moagem, quando ia tudo correndo tão bem, em um tempo como se não havia de ter outro. Que remendos no engenho não queria, que de longa data andava com idéias de reformar tudo aquilo, e que ia reformar, embora levasse a casqueira a safra.
E ficou assentado que, no outro dia, Barbosa havia de seguir para o Ipanema, a entender-se com o Dr. Mursa, sobre planos e dimensões para a nova máquina que urgia ficasse pronta dentro de poucos dias.
Lenita, ao saber da viagem, teve um sobressalto, ficou pálida, quase desmaiou: lembrava-lhe o muito que sofrera com a ida de Barbosa a Santos, quando ele não era ainda seu amante, quando ela nem sabia sequer ao certo que o amava.
Como havia de ser então, que as coisas se achavam em pé diversíssimo? Uma tortura inenarrável, impossível, o inferno.
E não foi.
Lenita ajudou a Barbosa nos seus aspectos de viagem, sem sentir por forma alguma o que sentira da vez passada. As expansões lúbricas, desenfreadas, a que ele se entregou na despedida noturna, contrariaram-na, mortificaram-na, mesmo.
Admirava-se da transição brusca, repentina que se lhe operara no espírito: sentia-se fria, indiferente, aborrecida quase; achava-o a ele grosseiro, vulgar, impertinente, ridículo, chato.
Na hora da partida apertou-lhe a mão; viu-o montar a cavalo, dar de rédeas, seguir vagaroso em uma nuvem de pó que se levantava da estrada; distinguiu-lhe o gesto de adeus que lhe fez ele ao transpor o viso da colina, ao sumir-se-lhe da vista.
E não se entristeceu; em torno de si não sentiu vácuo algum: achou-se até mais à vontade por ficar só, em companhia de si própria, senhora de pensar, de agir em liberdade, sem sugestão.
Todavia era-lhe grata à vaidade a idéia de que Barbosa ia cogitar ininterrompidamente nela, só nela; de que levava a sua imagem estereotipada, viva, na memória; de que todo o pensamento, todo o ato dele a ela se reportava, tinha-a por objetivo.
E, analista sutil, não se enganava sobre os seus próprios sentimentos: no prazer que tinha com a sujeição de Barbosa, descobria mais a satisfação do orgulho lisonjeado do que o contentamento do amor correspondido.
Foi ao quarto de Barbosa, começou a pôr em ordem as coisas dispersas, os livros e jornais que atravancavam a mesa, o mármore do criado, as cadeiras.
Ninguém em casa, nem mesmo o coronel, estranhava mais esses cuidados: a amizade estreita a intimidade que reinava entre ela e Barbosa justificavam-na; todos achavam muito natural o papel de ecônoma que ela a si chamara.
Nas senzalas, porém, o viver excêntrico e liberdoso que ela levava com Barbosa já começava a servir de pábulo à maledicência característica da raça negra: os pretos e principalmente as pretas murmuravam, comentavam as caçadas improdutivas, sublinhavam ditos, aventavam torpitudes.
Ao puxar uma gaveta da mesa de Barbosa, para recolher as miudezas que achara dispersas, Lenita deu com uma caixinha oblonga de tartaruga, incrustada de metal e madrepérola.
Abriu-se por abrir, sem curiosidade. Encontrou dentro quatro papéis dobrados, uma medalha muito oxidada de Nossa Senhora da Aparecida, flores secas e várias bolinhas de lã branca, desfiada.
Fez-lhe espécie aquilo: que diabo poderia ser? Barbosa não era religioso, a medalha não tinha explicação como coisa dele. E as bolinhas de lã? Com certeza tinham caído de uma manta de malha, de uma saída de baile, em que se envolvera, em que se agasalhara uma mulher, para procurá-lo a ele na sua casa, no seu quarto, no seu leito. E as flores secas? E os papéis? Ah! os papéis... Os papéis continham de certo a chave do enigma davam a solução de tudo aquilo.
Desdobrou o primeiro, encontrou um anel de cabelos castanhos, quase pretos, cetinosos, muito finos.
Desdobrou o segundo, era um bilhetinho em poucas linhas: a letra bonita, fina, redonda, de mulher. Dizia:
Espero-o sábado sem falta; se não vier zango-me. Não o esqueço um só momento. Adeus.
Lenita empalideceu, mordeu os beiços e, trêmula, com os olhos a despedir chispas, abriu o terceiro papel, uma folha grande, larga, de almaço Fiume. Estava escrita pela letra de Barbosa, um cursivo feio, muito legível. Era evidentemente uma série de impressões lançadas no papel sur place, no momento mesmo em que se tinham produzido, inconexas, cortadas de reticências.
Lenita leu:
O trem ia partir.
Ela estava na plataforma da Estação da Luz, com o marido, em bota-fora de não sei quem.
Olhou-me, eu a olhei; ela baixou os olhos, uns grandes olhos verdes; corou. O braço esquerdo estava passado no do marido enfastiadamente, aborrecidamente; o direito, em abandono, pendia-lhe ao longo do corpo, forte, musculoso, muito branco. A mão estava sem luva, era pequenina, bem feita, anho no anelar uma marquesa de muito brilho. Levantou os olhos, encarou-me, tomou a baixá-los, avançou o pé direito, um pezinho adorável, bateu com ele freneticamente, como se estivesse muito contrariada. O marido disse-lhe o que quer que foi alemão, ela respondeu-lhe na mesma língua. Saíram, eu segui-os. Tomaram o bonde que vinha de Santa Cecília.............. Olhos verdes...........amor............venusta............................
Tornei a vê-la.
Era no Grande Hotel: ela estava jantando, à mesa do centro. Dava-me as costas. Recostava-se na cadeira, pendendo o corpo para a esquerda; a perna direita, passada por sobre a esquerda, agitava-se com um movimento sacudido, nervoso; o pé muito pequeno, estreitado em uma meia de seda carmezim, recurvando-se, descalçava em parte o sapatinho Clark, mostrava o calcanhar redondo, diminuto, delicioso. O pé esquerdo assentado firme no chão. O vestido rodeava, cobria pane da poltrona em fartos panejamentos, e por sob ele entrevia-se uma orla de saia muito branca. A aragem que entrava pelas janelas altas agitava-lhe os crespinhos dourados da nuca. Levantou-se, rodando para a esquerda, com o busto curvado, em um movimento gracioso, que pôs em relevo a exuberância dos seios a avultarem reprimidos no corpete retesado, em contraste provocador com a exiguida da cintura.
O quarto papel, amarelo, puído nas dobras, continha uma poesia escrita também por letra de Barbosa.
Lenita leu:
M.I.
Não sei se és feia ou bonita,
Segundo as regras da arte;
Sei, sim, que gosto de ver-te,
Que gosto até de estudar-te.
Nas faces sedosas tuas
Não brilha o rubor das rosas,
Retinge-as a palidez
Das compleições biliosas.
Estranhas cintilações
Mordentes, frias, geladas
Tens nos olhos baços, vítreos,
Azuis, da cor das espadas.
Teu lábio, sempre agitado
De leve tremor nervoso
Parece ressumar sangue
Com sede infrene de gozo.
Contorce-te as mãos pequenas
Espasmo fabricitante
Tem não sei quê de felino
Teu breve corpo ondulante...
Queres então que eu te diga
Meu sentir quando te vejo ?
Amor não te tenho não;
Porém morde-me o desejo.
A moça teve um deslumbramento: em seu espírito, subitamente iluminado, fez-se vácuo enorme, desmoronou-se fragorosa a mole das ilusões.
Pensava - Barbosa era casado na Europa, ela o tinha conhecido como tal, não podia exigir-lhe conta dos afetos que ele voltara em tempo à esposa, das recordações que dela porventura conservasse.
Mas ali não se tratava da esposa, tratava-se de três mulheres pelo menos - a dos cabelos que, escuros, tinham naturalmente por correlativo olhos pretos ou castanhos; a do fragmento em prosa, de olhos verdes; a da borracheira poética, de olhos azuis, cor de aço.
E quem sabe se não seriam seis ou mesmo sete: o bilhete podia ser de uma outra; a medalha azinhavrada, de uma outra; as flores secas, de uma outra, as bolinhas de lã branca, de uma outra ainda.
E que eram aquelas bolinhas de lã branca senão lembranças, troféus amorosos, colhidos de certo em cama desfeita, sobre lençóis ainda quentes, após uma noite de delírios eróticos?
Aquele homem era um devasso; um Dom João de pacotilha, e ela, Lenita, não passava de uma das suas muitas amantes.
Quem lhe dizia a ela que uma dádiva sua, que uma épave qualquer que lhe tivesse pertencido, não iria aumentar aquela ignominiosa coleção.
Em que dera seu orgulho, o alto conceito que ela formava do seu sexo, que ela formava de si própria!
Amante de um devasso, barregã de um homem velho, casado, que guardava troféus das conquistas... Bonito! Esplêndido!
Estava castigada e achava justo o castigo.
Tinha ido pedir à ciência superioridade sobre as outras mulheres; e na árvore da ciência encontrara um verme que a poluíra.
Quisera voar de surto, remontar-se às nuvens, mas a carne a prendera à terra, e ela tombara, submetera-se; tombara como a negra boçal do capão, submetera-se como a vaca mansa da campina. Revoltada contra a metafísica social, pusera-se fora da lei da sociedade, e a consciência castigava-a, dando-lhe testemunho de quanto ela descera abaixo do nível comum da mesma sociedade.
É loucura quebrar de chofre o que é produto de uma evolução de milhares de séculos. A sociedade tem razão: ela assenta sobre a família, e a família assenta sobre o casamento. Amor que não tenda a santificar-se pela constituição da família, pelo casamento legal, aceito, reconhecido, honrado, não é amor, é bruteza animal, desregramento de sentidos. Não, ela não amara a Barbosa, aquilo não tinha sido amor. Procurara-o, entregara-se a ele por um desarranjo orgânico, por um desequilíbrio de funções, por uma nevrose. Como a Fedra da fábula, como as bíblicas filhas de Jó, como a histórica mulher de Cláudio, ela caíra sob o látego da carne e, empurrada por um devasso ilustríssimo, resvalara ao fundo do pego, à última estratificação da vasa. Não, ela não amara, ela não amava a Barbosa. O que por ele sentira fora uma atração paulatina, gradual, viciosa, mórbida. A primeira impressão que recebera, ao vê-lo, não tinha sido boa; e as primeiras impressões é que fazem fé, porque são as que se produzem instintivamente no espírito desprevenido. Nesse momento em que ficava conhecendo a Barbosa como Barbosa realmente era, é que ela podia avaliar o báratro em que se despenhara. Pomba inocente, procurara por seu pé o açor, metera-se-lhe nas garras, e ele a conspurcara, não somente lhe arrancando a virgindade, mas debochando-a em práticas infames para despertarem os sentidos embotados...
Meteu tudo às pressas, desordenadamente, na caixinha, atirou a caixinha para a gaveta, empurrou com violência a gaveta, saiu, foi para seu quarto, entrou, fechou-se por dentro, atirou-se na cama; desatou em pranto.
De repente ergueu-se.
Que era aquilo? perguntou-se a si própria. Pois ela era mulher para chorar, para carpir-se, como qualquer criadinha de servir, violentada pelo filho da patroa? Não! Caíra, mas caíra vencida por si, só por si, por seu organismo, por seus nervos. O homem não entrava em linha de conta, não passava de mero instrumento: fora Barbosa; poderia ter sido o administrador, poderia ter sido o velho coronel. Enquanto quisera, gozara; estava saciada...
Uma idéia terrível atravessou-lhe o cérebro.
De pouco tempo, de um mês a essa parte, sentia-se modificar de modo estranho, moralmente, fisicamente: tomara-se irritadiça, tinha impaciências febris. Uma nuga, um nada a punha fora de si. Mal se alimentava: à simples vista da mesa posta, vinham-lhe engulhos, chegava mesmo a vomitar. Aberrara-se-lhe o apetite, desejava coisas extravagantes. Uma tarde vira um cacho de caraguatá à beira de um valo: quisera por força comer, comera, queimara a boca com o sumo cáustico da fruta da bromeliácea.
Com pasmo grande, sem poder dar a razão por que, via que Barbosa já lhe não inspirava admiração. As tiradas, as dissertações científicas, aliás corretas, que lhe fazia enfastiavam-na: ela achava-o desajeitado, vulgar, pretensioso; ganhava-lhe aversão; cria até perceber-lhe no corpo e na roupa um cheiro esquisito, enjoativo, o que quer que era como catinga de rato. Repugnavam-lhe as carícias dele, e, para chegar bem à verdade, elas incomodavam-na, de fato, topicamente.
Acudiu-lhe o dizer de Rabelais - "Les bêtes sur-leurs ventrées n'endurent jamais te malê masculant".
Estaria grávida?
Correu à cômoda, puxou uma gaveta, tirou um calendariozinho de algibeira, percorreu os meses, virando as folhas com rapidez: estavam a 20 de agosto, e o último dia marcado com uma cruzinha vermelha era o dia de São Pedro, 29 de junho. Mediava um espaço de cinquenta e dois dias...
Desabotoou o corpinho, desceu o cabeção da camisa, fez sair o seio esquerdo, globuloso, duro: baixou a cabeça para vê-lo, estendendo o beiço inferior. O auréolo, outrora róseo, imperceptível, acentuava-se retrato, pardacento, constelado de papilas ouriçadas. Não havia duvidar, estava grávida.
Sentiu ou julgou sentir que uma coisa qualquer se lhe agitava, se lhe enovelava dentro do útero. No mesmo instante apoderou-se dela um afeto imenso, indizível, por esse quer que fosse, que assim ensaiava os primeiros movimentos na ante-sala da vida. Era o desencadear de uma tempestade, de uma inundação nevrótica, que a invadia, que a alagavam como as águas de um açude roto invadem e alagam a planície. No amor enorme de que se via repassada, Lenita reconheceu o sentimento tão ridiculamente guindado ao sublime pelo romantismo piegas, e todavia tão egoístico, tão humano, tão animal - a maternidade.
— Que iria fazer? perguntou-se a si mesma, e, sem hesitar, respondeu-se — levar a bom termo a gestação, parir, criar, educar o filho, ver-se nele, ser mãe.
Dois dias se passaram sem que Lenita saísse do quarto, senão para ir a uma ou outra refeição.
Ao almoço do terceiro dia, uma quinta-feira, disse ao coronel que no domingo tencionava seguir para a vila, de lá para a cidade, e da cidade para São Paulo; que seus tarecos estavam arranjados, suas malas feitas; que precisava do carroção para conduzi-los, do trolley para conduzi-la a ela; que, saindo bem cedo, chegaria a tempo, teria ainda de esperar pelo trem, talvez uma hora.
— Que nova loucura era aquela? perguntou o coronel. Que ia Lenita fazer a São Paulo, assim de repente, sem quê nem para quê?
À insistência de Lenita, que a nada se demoveu, fez ele sentir que ao menos era preciso esperar ela vir Barbosa do Ipanema para levá-la; que, só, ela não podia, não devia ir; que ele, coronel, ameaçado e até já principiando a sofrer de um insulto de reumatismo, achava-se incapaz de uma vez para cumprir o dever de acompanhá-la.
— Que iria muito bem só com o moleque até à vila, volveu Lenita inabalável; que na estrada de ferro não se fazia mister companhia; que lhe era impossível deixar de ir.
As súplicas da entrevada, as instâncias e amuos do coronel, de nada aproveitaram.
O carroção coma bagagem partiu no sábado de tarde, e, no domingo cedo, Lenita de guarda-pó e chapéu de abas largas, abraçou, chorando, a velha; abraçou o coronel que soluçava como uma criança, subiu para o trolley, seguiu.
— Rapariga, gritou-lhe de longe o coronel, limpando os olhos, engasgado, você tem má cabeça, mas seu coração é bom, e eu quero-lhe bem deveras. Em toda e qualquer emergência lembre-se de que eu e seu avô fomos como irmãos, de que eu tive sempre a seu pai na conta de filho. Para tudo, mas mesmo para tudo, aqui fica o velho.
E acrescentou consigo:
— Nalguma coisa haviam mesmo de dar as físicas e as botânicas e as caçadas: foi nisto. Antes nunca esta rapariga se lembrasse de ter vindo aqui para a fazenda, ou antes Manduca lá se tivesse deixado ficar pelo Paranapanema. Agora é pegar-lhe com um trapo quente.