Seis dias depois da partida de Lenita chegou Barbosa. De nada sabia ele: o coronel não lhe tinha escrito.
Desde que transpusera a crista do morro, vinha alongando os olhares, à espera, a todo o momento, de divulgar o vulto da moça uma janela no terreiro, em qualquer parte. Antegozava o prazer de vê-la estremecer do júbilo ao enxergá-lo, de vê-la correr-lhe ao encontro pálida, trêmula, convulsionada pela emoção.
Lembrava-se da noite, e tinha calafrios; afastava, expediu da mente a lembrança do gozo, para também esquecer que lhe era preciso esperar tantas horas.
E às janelas ninguém assomava. No pardo sujo do terreiro esburgado, agitavam-se, passavam rápidas de uma para outra parte manchas azuis e encarnadas: era um lote de crioulinhos a correr, a bancar, vestidos de camisolas do baeta. Mais nada.
— Melhor, disse Barbosa consigo, vou surpreendê-la na varanda, em prosa com o velho.
Desceu, chegou à porteira.
A crioulada reuniu-se em um magote, e, alçando as mãos e tripudiando, começou de gritar uma melopéia cadente, afinada:
— Ai vem nhonhô! aí vem!
— Cala o bico, canalha! Barbosa, cruzando nos lábios índice da mão direita.
A crioulada afeita a obedecer, emudeceu.
Ele apeou-se, descalçou as esporas, atravessou o terreiro, entrou em casa, foi andando nas pontas dos pés até à varanda.
Estava deserta.
Dirigiu-se ao quarto do pai. Encontrou o coronel deitado, a gemer com o reumatismo. Na chaise-longhe do costume cabeceava a velha entrevada.
— Como vai, meu pai? Como está, minha mãe?
E beijou a mão de um e a testa de outra.
— Na forma do louvável...respondeu o coronel, sofrendo sempre... ai!... Este maldito reumatismo não larga... Como foi você de viagem?
— Muito bem.
— O engenho?
— Vem aí, chega amanhã a estação.
— Assim, pois, é preciso que sigam os carroções a esperá-lo, hoje mesmo?
— Basta que sigam amanhã.
— E veio coisa boa?
— Ótima. Algumas peças foram fundidas especialmente; fizeram-se os moldes sob meu risco.
— Muito bem, e quanto custou?
— Ficou barato; não anda em mais de três contos.
— Ai !... Você já jantou?
— Não, senhor.
O coronel sentou-se com esforço, tirou de sob o travesseiro uma chavinha, levou-a aos lábios, arrancou um assobio estridente, prolongado.
— Sinhô, gritou de dentro uma escrava, que logo assomou à porta do quarto.
— Nhonhô está aqui, e ainda não jantou.
— Sim sinhô, meu sinhô.
E, voltando-se rápida, desapareceu.
Barbosa não quis perguntar por Lenita. Ela estava de certo no quarto. Ele lá iria ter com ela. Pediu licença ao pai para sair: que se não demoraria, disse: que voltaria logo, para conversarem.
Chegou à sala de Lenita e sentiu um grande aperto do coração ao ver os consolos despidos, sem um bronze, sem uma estatueta, sem uma jarra de Sèvres, sem um defumador de Satzuma.
Foi à porta do quarto dormir, empurrou-a, estava fechada a chave; foi ao outro quarto, vazio. Empalideceu-se, encostou-se à ombreira da porta para não cair. Que era aquilo? perguntou-se. Para onde tinha ido a moça?
Voltou aos aposentos do pai.
— Meu pai, onde está D. Lenita?
— Se realizou o que tinha na intenção, está em São Paulo, em casa de um parente, do Fernandes Faria, ou qualquer hotel. Aquilo é uma doidinha.
— Pois D. Lenita foi para São Paulo?! exclamou Barbosa, como que recusando a evidência, como que fugindo à brutalidade do fato.
— Se foi ! Você a conhece pelo menos tão bem como eu: e desencabritando, desencabrita mesmo: não há pegar-lhe.
Barbosa deixou-se cair em uma cadeira.
Não estava pálido, não estava lívido: estava uma e outra coisa: tinha manchas cor de chumbo no rosto cor de terra.
Em suas feições havia alguma coisa da expressão que deve ter uma máscara de bronze, que, caída em uma fogueira, começa a entrar em fusão.
Conservou-se sentado por muito tempo, mal respondendo às perguntas do pai.
Chamaram-no para jantar; foi, sentou-se à mesa, cruzou os braços sobre ela, afundou a cabeça no ângulo formado pelo braço esquerdo, deixou-se ficar, imóvel.
Refletia.
Lenita ali não estava, não estava na sala, não estava no quarto, não estava no terreiro, não estava no pomar, não estava na fazenda. Ele a não veria mais, não lhe ouviria mais a voz suave, não lhe beijaria mais os lábios corados, não lhe beberia mais a frescura do hálito... Só... só... estava só !
Ela o provocara, ela se lhe oferecera, ela o procurara, ela se lhe entregara, ela s e prestara a todos os seus caprichos, mansa, dócil, submissa, para depois assim abandoná-lo, a sós com as lembranças, entregue à tortura da saudade!
Não, não era possível: Lenita ali estava, do outro lado da mesa; não se fora...
Ergueu a cabeça, abriu os olhos esgazeados e só viu diante de si a crioulinha servente, que abanava moscas, movendo preguiçosa e mole, para a direita e para a esquerda, um ramo de alecrim bravo.
Barbosa deixou cair de novo a cabeça, continuou no cismar doloroso, como quem se praz a revolver em uma ferida o ferro que a produziu.
Louco que fora!
Tinha tido dezenas de amantes, tinha sido, era ainda casado, conhecia a fundo a natureza, a organização caprichosa, nevrótica, inconstante, ilógica, falha, absurda, da fêmea da espécie humana; conhecia a mulher, conhecia-lhe o útero, conhecia-lhe a carne, conhecia-lhe o cérebro fraco, escravizado pela carne, dominado pelo útero; e, estolidamente , estupidamente, como um fedelho sem experiência, fora se deixar prender nos laços de uma paixão por mulher!
O tempo ia passando: o jantar arrefecera.
Barbosa levantou-se.
— Nhonhô não janta? perguntou triste a preta cozinheira que o observava da porta do corredor.
— Não, Rita, estou sem vontade, estou doente.
Saiu, chegou à porta do terreiro, circunspecionou os arredores.
Parecia-lhe morta a natureza: a paisagem figurava-se-lhe um cadáver, vasto, enorme.
Do diafragma subia-lhe para o coração um aperto constante, ininterrompido, doloroso, que lhe tolhia o fôlego, que o sufocava.
Queria chorar; o pranto, julgava, far-lhe-ia bem, seria um desabafo: impossível. Um ardor seco, febril, queimava-lhe os olhos.
No imóvel do arvoredo secular, na calma impassível das encostas amareladas, havia, ele pelo menos sentia, o que quer que era de hostil: essa indiferença majestosa irritava-o, era como um escárnio à angústia em que se estorcia seu espírito.
E tudo lhe fazia lembrar Lenita; na ante-sala, a cuja porta estava, a vira ele pela vez primeira por entre as torturas de uma enxaqueca; no pomar, de que avistava um ângulo, com ela tivera a primeira entrevista; no pasto, que se lhe estendia entre os olhos, quantas vezes não tinham passeado juntos; a mata fronteira, as caçadas, os pássaros, a cutia, os porcos, a cascavel... ah! a cascavel! Por que não sucumbira Lenita ao veneno da cobra? Por que a fizera ele viver?! Morta naquele tempo, ela seria apenas uma saudade doce, e não a lembrança voraz que o havia de matar.
Anoiteceu.
A escuridade, o silêncio, reprodução cruel da escuridade e do silêncio das noites de outrora, das noites de amor, que não mais voltariam acenderam-lhe, exacerbaram-lhe o pungir do sofrimento, o rolar da soledade.
Lembrou-lhe o suicídio.
— Ainda não, disse: esperemos.
Entrou para o seu quarto, deitou-se, fez uma injecção de morfina, dormiu.
No dia em que era esperado chegou o makhinismo.
Barbosa desenvolveu uma actividade febril.
Desengradou-o, armou-o, installou-o ele próprio. Multiplicou-se, dividiu-se: fez-se carpinteiro, pedreiro, serralheiro, maquinista.
Queria esquecer de dia, hypnotizava-se com trabalho, de noite, com morphina.
Pronto o engenho, a moagem continuou.
Barbosa tomou-a a si, dirigiu o serviço. O açúcar da fazenda criou fama.
— Eta ! rapazinho destrocido! dizia o coronel, é pau para toda a obra! Quem havia de dizer que ele entende mais de fabricação do que eu que lido com cana desde que me conheço por gente? Quem estuda sabe mesmo.
Mas... eu não ando contente com ele: estes modos que ele agora tem não são naturais, ele não os tinha. Aquela Lenita...
Em um dos dias da primeira quinzena de outubro, o moleque trouxe da vila, na correspondência, duas cartas sobrescritas por uma letra redonda, fina, bonita letra, letra de mulher.
Era de Lenita.
Barbosa a conheceu imediatamente.
Uma lhe era endereçada, outra ao coronel.
Barbosa tomou a sua, abriu-a e, pálido, muito pálido, com um ligeiro tremor a agitar-lhe as mãos, começou a leitura.
Dizia:
São Paulo, 5 de outubro de 1887.
Ao Sr. Manuel Barbosa envio muito saudar.
Mestre.
Ao chegar à fazenda, surpreendeu-se de certo com a minha partida um tanto brusca.
Procurou-lhe explicação, não achou: nem eu. Lembro-lhe o que diz Spinoza: "A nossa ilusão do livre-arbítrio vem de ignorarmos nós os motivos que nos dirigem". No caso desta minha partida, eu poderia bem crer que tinha livre-arbítrio. Demais sou mulher, sou fantasque. Quem vai discutir, explicar caprichos de mulher? Vale infinitamente mais non ragionar di lor, guardar, passar.
Qual tem sido a minha vida desde que vim da fazenda? Nem eu me sma sei.
Estudar, não tenho estudado; fui sábia, fui preciosa tanto tempo, que achei de justiça dar-me o luxo de ser ignorante, de ser mulher um poucochinho.
Mas, qual! ninguém é sábio impunemente. A ciência é uma túnica de Dejanira: uma vez vestida, gruda-se à pele, não sai mais. Quando se tenta arrancar, deixa pedaços de forro, que é o pedantismo.
E a prova é estar-lhe eu escrevendo, por não poder resistir ao prurido de comunicar as minhas impressões, de conversar um bocadinho com quem me entenda.
Que saudades não tenho eu às vezes das nossas palestras, das nossas lições, nas quais tanto se dissipava a treva da minha ignorância à luz do seu profundo saber.
O passado, passado: fomos como dois astros vagabundos que se encontraram em um recanto do espaço, que caminharam juntos, enquanto foram paralelas as suas órbitas, e que ora estão separados, seguindo cada qual o seu destino.
Vamos ao que serve.
São Paulo é hoje uma grande cidade, dou-lhe, sem receio de erro, sessenta mil habitantes.
Dia a dia, para norte, para sul, para leste, para oeste, está crescendo, está-se alastrando, é o que mais é, está-se aformoseando.
Os horríveis casebres dos fins do século passado e dos princípios deste vão sendo demolidos para dar lugar a habitações higiênicas, confortáveis, modernas. Os palacetes do período de transição, à fazendeira, à cosmopolita, sem arte, sem gosto, chatos, pesados, mas solidamente construídos, constituem um defeito grave que não mais desaparecerá. Obras, porém, há feitas, nestes últimos cinco anos, pelo arquiteto Ramos de Azevedo, pelo italiano Pucci e por outros estrangeiros, que são realmente primores de arte. Gosto imenso da Tesouraria da Fazenda que está construindo Ramos de Azevedo: é um edifício que honra São Paulo pela severidade e elegância do estilo, pela robustez que ostenta desde os profundíssimos alicerces até o levantado coruchéu. Aquela mole enorme forma um todo compacto, homogêneo, sem o mínimo defeito, sem uma trinca sequer de tassement. Quem viu o que ali estava.. cruzes!!! Para se avaliar o que era basta que se veja o anual Palácio do Governo, da mesma procedência. Os manes do Sr. Florêncio de Abreu podem se limpar as mãos à parede dos Campos Elísios, se é que os Campos Elísios têm parede. Desmanchar a velha, a maciça, a histórica, a legendária construção dos Jesuítas, para estender por ali fora aquele pardieiro medonho. Não sei por que não mandou botar abaixo também a capela... O Sr. de Parnaíba desvendou os mistérios da cripta dos padres de Loyola, rasgando uma porta no andar da torre dessa capela. À esquerda de quem entra, vêem-se distintamente seis covas sepulcrais, seis catacumbas, superpostas, em duas ordens, de três cada uma, praticadas na grossura enorme da parede. Entraram já cadáveres os que ali jazem, ou foram emparedados vivos, segundo a lei terrível do código secreto da Companhia? Ao governo, ao bispo diocesano, incumbe, corre o dever de mandar abrir aqueles jazigos, onde talvez se encontrem documentos importantes para a história da província.
O Chá, lembra-se bem, era mato quando eu estive com meu pai em São Paulo, pela primeira ver hoje é um bairro populoso, constituído por um vasto enxadrezamento de ruas direitas e largas, arejadas e mordidas de luz.
Há na cidade vários calçamentos a paralelepípedos. O antigo, famoso largo de São Francisco está que é um brinco.
A academia foi reformada.
Talvez eu não tenha razão; mas o caso é que eu a preferia exteriormente como ela era outrora. Tinha pelo menos o mérito de representar o gosto arquitetônico dos religiosos que dirigiram a colonização do Brasil. Hoje não representa coisa nenhuma, tem uma aparência limpa, mas desgraciosa e até caturra.
No alastrar da cidade, bairros unem-se, vão desaparecendo as soluções de continuidade predial: a Luz já pega com o Brás pela rua de São Caetano.
O comércio tem-se desenvolvido de modo assombroso, e a indústria segue-o de perto.
Há em São Paulo fábricas de móveis, de chapéus, de chitas, de bordados, de luvas, que rivalizam com as do Rio, e que estabelecem concorrência séria aos produtos europeus.
Nas ruas de São Bento e da imperatriz é enorme o acervo de lojas, e de armazéns, de casas bancárias, de estabelecimentos de todo o gênero.
As vitrines das casas de jóias entram em compita de riqueza e gosto: aqui a relojoaria suíça, delicada, elegantíssima, ostenta os seus primores, os seus inexcedíveis "Patek Philippe", a par dos artefatos sólidos da relojoaria americana, dos "Waltham" feitos a máquina, grossos, esparramados, angulosos, profusa e desgraciosissimamente ornamentados. Ali a prata do Porto, aereamente, maravilhosamente filigranada, casa sua alvura mate aos reflexos fúlvos da ourivesaria francesa, às cintilações mágicas dos brilhantes puríssimos do Brasil, dos diamantes coloridos do Cabo, dos rubis, das safiras, dos topázios, das ametistas, das opalas irisadas. A luz brinca nos lavores dos metais e nas facetas das pedrarias em um tal deboche de magnificência, que faz lembrar os contos de fadas, a caverna de Aladim.
Entrei ontem em uma casa de modas, a Mascote.
Atraíram-me a atenção bronzes de Barbedienne, expostos em uma vitrine interior.
Alguns eram reproduções dos que eu possuo, o hoplitodromo conhecido por gladiador Borghése, a Vênus de Milo, a Vênus de Salona: outros eu ainda não conhecia, o menino da cesta, por Barrias; a bacante do cacho, por Clodion.
Que bronze adorável este; que verdade nos panejamentos! Que morbidez suave de postura! No rosto o metal parece ter o emaciamento, a transparência fosca da pele viva. Os olhos como se cerram em um êxtase de volúpia...
Encomenda de Júlio Ribeiro, um gramático que se pode parecer com tudo menos um gramático: não usa simonte, nem lenço de Alcobaça, nem pince-nez, nem sequer cartola. Gosta de porcelanas, de marfins, de bronzes artísticos, de moedas antigas. Tem, ao que me dizem, uma qualidade adorável, um verdadeiro título de benemerência nunca fala, nunca disserta sobre coisas de gramático.
Veio receber-me um dos proprietários da loja, rapaz afável, parisiense nos modos, flor na botoeira do paletó, sorriso engatilhado.
Fiz alguns pedidos: tomou nota deles, para mandar-nos a casa, o outro sócio, irmão creio, do primeiro; moço grave, sério, de fisionomia leal, sempre ao bureau, sempre a escrever, tipo acabado do português antigo, trabalhador, honesto, pontual, pé de boi.
Em frente - a Casa Garraux, vasta Babel, livraria em nome, mas verdadeiramente bazar de luxo, onde se encontra tudo, desde o livro raro até a pasta de aço feita, passando pelo Cliquot legítimo e pelos cofres a prova de fogo.
Lá fui ver a exposição permanente.
Mal tinha eu entrado, entrou também um grupo de homens, três ou quatro, se bem me lembra.
Era um sujeito corpulento, coroado, limpo, no descambar da idade viril, ou melhor, no verdor da velhice. O bigode farto, betado aqui e ali por um fio de prata, e as longas costeletas acentuavam-se com nitidez no rosto fresco, caprichosamente escanhoado. O cabelo dividia-se em pastinhas despretensiosas no alto da testa vasta, ligeiramente redonda. Colarinho de pontas quebradas, gravata branca de nó, colete fechado até o nó da gravata, fraque, flor enorme na lapela, calças de casimira preta com listinha de seda branca, chapéu preto, alto, mole, sapatos Clark, pince-nez.
Belo homem, Ramalho Ortigão, já adivinhou.
Um dos que o acompanhavam era um rapaz alto, cheio de corpo, alvo de cabelos castanho-claros, quase louros, ondeados, de bigode crespo, de lábio inferior coroado, úmido; um causeur adorável, que o mestre disse-me ter encontrado uma vez em Campinas, e a quem eu fui apresentada um dia destes, em uma festa de anos, Gaspar da Silva.
Ramalho entrou em conversas com um dos sócios da Casa Garraux: eu, fingindo que examinava um livro, prestei-lhe toda atenção. Apanhei, dissequei, analisei cada uma de sua palavras.
Voz agradável, bem timbrada; pronúncia distinta, corretíssima; sotaque alfacinha puro, estranho, muito estranho a ouvidos paulistas.
Ramalho Ortigão é incontestavelmente um homem de combate, um grande escritor. Eu, porém, não gosto dele. Acho-o trabalhado, limado, castigado demais; acho qu'il pose toujours. Não escreve como Garrett, vazando a alma no papel: calcula o efeito de cada palavra, de cada frase, como um jogador de xadrez calcula o alcance do movimento de cada peça. Nos seus escritos há notas, há quantidades constantes, que reaparecem fatalmente. Encontra-se sempre uma admiração exagerada por tudo quanto é vigor muscular, por tudo quanto é manifestação de força humana física. O estadulho, a bengala grossa são fato imprescindíveis das suas teorias de moralização social. Afeta pelo asseio, pelo cuidado do corpo um culto que chega a se tomar impertinente. Não perde ensejo de contar que se banhou, que se barbeou, que mudou a roupa branca. Tanto repete, tanto insiste, que até parece ter um secreto receio de que o não acreditem. Escreve ele um livro novo: os seus leitores habituais já lhe conhecem, já lhe esperam as ficelles. Há de falar por força nas malas, nos apeiros de toilette, nos desinfetantes, na abundância de cuecas e peúgas. Tem frases feitas, uma por exemplo - todos os seus estandartes, todas as suas bandeiras, todas as suas flâmulas, todos os seus galhardetes, estão sempre a palpitar gloriosamente, estão sempre a bater em palpitações gloriosas.
Os livros de Ramalho Ortigão são excelentes, não há negá-lo, quer pelo fundo, quer pela forma. Bom senso e correção de linguagem até ali: ensinam a pensar, e ensinam Português.
O que eu não creio é que eles sejam um espelho, uma câmara escura para se estudar a individualidade do autor.
Entendo que não se pode ficar conhecendo a Ramalho Ortigão nem no Em Paris, nem nas Farpas, nem na sua parte de Mistério da Estrada de Cintra, nem nas Caldas e Praias, nem nas Impressões de Viagem, nem na Holanda, nem no John Bull: melhor do que em isso, fotografa-se ele nos seus depoimentos sobre a questão Vieira de Castro.
Seja como for, ontem foi para mim um grande dia: conheci um grande homem.
Agora, nós: o que mais de perto nos toca...
Seguiam-se algumas linhas criptográficas, em uma cifra que Barbosa e Lenita tinham combinado, desde os primeiros tempos de convivência.
Estou grávida de três meses mais ou menos.
Preciso de um pai oficial para nosso filho: ora pater est is quem instae nuptiae demonstrant.
Se tu fosses livre, fazíamos justas na igreja as nossas nuptias naturais, e tudo estava pronto. Mas tu és casado, e a lei de divórcio, aqui no Brasil não permite novo enlace: tive de procurar outro.
"Tive de procurar" é um modo de dizer: o outro deparou-se-me, ofereceu-se-me; eu me limitei a aceitá-lo e ainda impus-lhe condições.
É o Dr. Mendes Maia.
Ao chegar aqui, escrevi-lhe para a corte; ele veio imediatamente, tivemos trina conferência larga, eu fui franca, contei-lhe tudo e... e... e nós nos casamos amanhã, às 5 horas da madrugada.. Pelo trem do Norte, que parte às 6, seguimos para a corte, e da corte para a Europa no primeiro vapor.
Sei que te hás de lembrar sempre de mim, como eu sempre hei de lembrar de ti: calembour à parte, o que entre nós passou não se ouvida.
Não me guardes rancor. Fomos um para o outro o que podíamos ter sido; nada mais, nada menos.
A criança, se for menino, chamar-se-á Manuel; se for menina, Manuela.
A carta ainda continuava.
Barbosa, lívido, com as feições horrivelmente contraídas, rasgou-a em dois movimentos, atirou-a em um lamaçal, onde, com gáudio infinito, chafurdavam alguns porcos.
— Rameira! Prostituta vil! exclamou ele.
— Sabe você que mais? perguntou-lhe o coronel, que se aproximava. A Lenita casa-se! Escreveu-me, participando.
— A mim também escreveu ela.
— Sim? E ela a dizer que se não queria casar... Fiem-se lá em mulheres! Aquela partida repentina não teve outra causa.
— Não teve, não, volveu Barbosa.
A tarde levou-a ele toda a pensar, a malucar só consigo.
À noite não fez injeção de morfina, passou em claro, nem sequer se deitou.
No dia seguinte, cedo, saiu, deu uma volta pelo pomar, foi à mata, chegou à cova, demorou-se a contemplar os destroços do reparo, as do milho que tinham nascido e morrido estioladas pela sombra, sem produzir. Viu ainda por entre as folhas secas algumas vértebras, algumas espinhas da cascavel.
Voltou, passou pela fruiteira, em cuja copa uma araponga serrava estridulosa.
Viu no chão uma pena de jacu, desbotada pela umidade, suja de barro.
Ergueu-se, contemplou-a muito tempo, deixou-a cair.
Voltou para casa, não quis almoçar, pediu um banho.
Despiu-se, entrou na banheira, deitou-se, revolveu-se com delícia, na água tépida, aromatizada com vinagre de Lubin.
Após muito tempo saiu, enxugou-se com esmero, calçou ceroulas de linho, passadas a ferro, cheirosas, frescas, muito macias.
Chamou dois pretos, mandou esvaziar, retirar a banheira.
Foi à mesa, tomou uma garrafa de vinho húngaro, doce, perfumoso, Rusti-Aszú; abriu-a, encheu um cálice, examinou de encontro à luz a transparência cor de topázio queimado do precioso líquido, cheirou-o, hauriu-lhe o bouquet, bebeu-o como fino entendedor, aos golinhos, dando estalos com a língua.
Puxou uma gaveta, e dela tirou uma caixinha oblonga de charão: abriu-a. Havia dentro uma seringuinha de vidro, uma cápsula de porcelana, um escarificador de dez lâminas e um pequeno pote, esquisito, bojudo, de barro preto, arrolhado cuidadosamente com um batoque de madeira. Uma etiqueta em letras vermelhas sobre fundo amarelo denunciava-lhe o conteúdo.
Barbosa dispôs tudo isso sobre o mármore do criado.
Tomou o escarificador, fê-lo funcionar. Nove das lâminas tinham sido quebradas de adrede: uma só estava intacta, e essa cortava como uma navalha.
Barbosa largou o escarificador, pegou no potinho, fez cair dele, na cápsula, uns grãos irregulares, escuros, com quebraduras lustrosas.
Era curare.
De sobre a mesa tirou um moringue, deitou na cápsula cerca de duas colheres de água, e, com o bico da seringa, foi agitando, fazendo com que se dissolvesse o terrível veneno.
Quando inspissou-se a solução, assumindo a cor carregada de café forte, Barbosa encheu com ela a seringa.
Tomou de novo o escarificador, engatilhou-o, aplicou-o sobre a face interna do antebraço esquerdo, premiu o botão.
Ouviu-se um estalo abafado.
Barbosa retirou o escarificador.
Um pequeno traço, fino como um cabelo, desenhava-se-lhe negro na alvura da cútis.
Uma gotazinha de sangue ressumou, marejou, redonda, rubro, brilhante, como um rubim.
Barbosa largou o escarificador e, a sorrir, sem empalidecer pegou, segurou a seringa entre o índice e o médio da mão direita, introduziu-lhe o bico afilado na cesura, meteu o polegar no anel da haste, calcou firme, empurrou com força o pistão. O excesso do líquido injetado espandanou, desenhando-lhe na brancura da pele um como aracnide sinistro.
Barbosa lançou no ourinol o resto do conteúdo da cápsula, meteu-a com o potinho, com o escarificador, com a seringa na caixa de charão, escreveu em um bilhete de visita - Cuidado, que isto é veneno - pôs também o bilhete dentro, fechou a caixa, guardou-a na gaveta, foi ao lavatório, molhou uma toalha, limpou o braço, voltou para a cama, deitou-se de costas, ao comprido.
Passaram-se dois minutos.
Barbosa nada sentia, absolutamente nada.
Quis ver a cesura, tentou chegar o braço à altura dos olhos. Não pôde. O membro paralisado recusava-se à ordem do cérebro.
Tentou o mesmo com o braço direito, quis mover as pernas: igual impossibilidade.
Tentou sacudir a cabeça, fechar e abrir os olhos: sacudiu a cabeça, fechou e abriu os olhos.
Passaram-se mais alguns minutos.
Tentou de novo sacudir a cabeça, fechar e abrir os olhos. Impossível. A paralisia era já quase completa, quase total.
E não sofria dor, constrangimento de espécie alguma.
No terreiro abaixo, ao pé do engenho, os pretos estavam a malhar um resto de fegão que ficara de julho. Cantavam. A toada distante chegava a Barbosa, amortecida, em quebros suaves, como os das vozes angélicas de um harmônium. Do teto pendia uma jardineira de vidro com um epidendron fragans: Barbosa hauria com delícias os eflúvios embriagantes das flores da orquídea.
Na boca tinha ainda o ressaíbo suave, quente do vinho húngaro generoso.
A um canto do forro, aranhas domésticas fabricavam as teias: Barbosa distinguia-lhes bem os movimentos hábeis das pernas longas, esguias, nodosas, verdadeiros dedos de tísico.
Veio uma mosca, e pousou-lhe na face: com uma hiperestesia que chegava a ser um padecimento, ele sentia o prurido das patas do inseto. Quis enrugar a pele do rosto para afugentá-lo, não pôde.
E a percepção de tudo era clara, a inteligência perfeita.
Lembravam-lhe, acudiam-lhe de tropel à memória as metamorfoses mitológicas de homens, de mulheres em árvores, em rochedos.
O sonho extravagante da imaginação doentia dos poetas helenos era traduzido em realidade palpitante, era excedido no domínio dos fatos pela ação misteriosa do veneno americano.
— Oh, pensava Barbosa, não poder eu ditar a alguém o que em mim se está passando, descrever o gosto desta morte gradual, em que a vida esvai-se como um líquido que se escoa. Que sou eu neste momento? Uma inteligência que sente e quer, presa em um invólucro morto, cativa em um bloco inerte... O espírito, o conjunto das funções do cérebro, está vivo, dá ordens; o corpo está morto, não obedece. Tenho um pé na existência e outro no não-ser. Alguns minutos mais, e tudo estará acabado, sem sofrimento, sem dor... Já entrevejo o nirvana búdico, o repouso do aniquilamento...
— Manduca! Manduca!
Era a voz do pai que o chamava.
Barbosa ficou triste: queria responder e não podia.
— Teresa!
— Sinhô!
— Onde está Manduca? Você não o viu?
— Vi, meu sinhô. Ele está aí no quarto dele. Estava se banhando. Ainda há pouco Pedro e José saíram com a banheira.
— Que diabo, não responde... Só se está dormindo.
E o coronel dirigiu- se ao quarto, entrou.
Ao dar com o filho nu da cintura para cima, estendido de costas na cama, pálido, imóvel, olhos abertos, fixos, o coronel deu um salto.
— Manduca! Que é isso Manduca?!
E agarrando, abraçando o filho, sacudia-o nervosamente.
O corpo de Barbosa, flácido, quente, cedia aos esforços do pai, como um cadáver antes da rigidez.
E o cérebro, ativo, lúcido, em exercício pleno de funções, vivia, compreendia, sentia, tinha vontade, queria falar, queria responder ao pai; mas já não tinha orgão, estava isolado do mundo.
— Meu filho morreu! Meu filho morreu! bradou o coronel, e saiu desatinado, correndo com as mãos na cabeça.
A esses gritos deu-se um como milagre.
A velha entrevada firmou as mãos nas guardas da chaise-longue, fez um esforço supremo, ergueu-se, caiu de joelhos e começou a engatinhar para o quarto do filho, movendo as juntas quase anquilosadas de um modo que seria ridículo, se não fosse horroroso.
Em camisa, em uma seminudez indecente, escorregando pelo assoalho, às sacadas, aos solavancos, como um inseto mutilado, foi, chegou onde estava o filho, abeirou-se-lhe da cama, levantou-se; agarrou-se no colchão, guindou-se com dificuldade dolorosa, abraçou o corpo por sua vez, colocou-lhe nos lábios os seus lábios de velha, moles, franzidos, frios.
Aos beijos da mãe, beijos que não podia retribuir, Barbosa sentiu-se tomado de um sentimento estranho de uma ternura filial que nunca dantes conhecera.
Mãe! Pai!
Por que se não devotara com todas as suas poderosas faculdades a minorar os sofrimentos daquele casal de velhos, a suavizar-lhes as misérias da senectude?!
Descrente de amigos, descrente de amantes, descrente da esposa, ateu, farto do mundo, enjoado até de si, fora pedir aos gelos da ciência exclusivista a morte, a extinção dos últimos afetos.
Tomara-se egoísta, tomara-se cruel.
E tinha ainda o que lhe prendesse ao mundo: tinha pai, tinha mãe, tinha a quem se devotar, tinha para quem viver!
Que vingança cruel a da natureza!
Entregara-o de mãos atadas aos caprichos de uma mulher histérica que se lhe oferecera, que se lhe dera, como se teria oferecido, como se teria dado a qualquer outro, a um negro, a um escravo de roça, não por amor psíquico, mas para satisfazer a carne faminta...
Repleta, farta, essa mulher o abandonara.
Nas cinzas quase frias das suas crenças mortas ateara-se o lume do amor, o fogo da fé brilhara um momento, mas prestes se extinguira, e a escuridão voltara mais tétrica.
Lenita fora procurar e achara um homem vil que lhe vendia o nome para coberta do erro, que a aceitava por esposa, desonrada, grávida...
Grávida... Ela estava grávida, ele ia ser pai...
E ela fugia dele, levava-lhe o filho e ainda o ludibriava, descrevia-lhe em cínica missiva as suas observações de viajante, as suas impressões de artista! Fazia ainda mais, dava-lhe parte do seu enlace com o minotauro prévio e consciente, informava-o de que o seu filho, o filho dele, Barbosa, tinha de dar o nome augusto de pai a um homem sem brios, a um chatim refece de honra.
E ele morria, por amor dessa mulher, morria porque ela lhe quebrantara o caráter, morria porque ela o prendera nos liames da carne, morria porque sem ela a vida se lhe tomara impossível... Covarde!
O remorso personificado na figura lastimosa e quase hedionda de sua desgraçada mãe ali estava sobre ele, abraçando-o, devorando-o, bebendo-lhe os últimos alentos.
Oh! ele queria viver!
E não era impossível.
Se houvesse quem entendesse de fisiologia, quem estabelecesse a respiração artificial, até que fosse completamente eliminado o veneno, arredar-se-ia a morte, a vida voltaria.
Mudassem as circunstâncias, outrem fosse o paciente, e Barbosa salvava-o.
Mas por si, para si, nada podia fazer: enclausurado no corpo, como o lepidóptero na crisálida, estava impotente, estava aniquilado: nem sequer lhe era concedido o consolo triste de pedir, de implorar o perdão da pobre mãe, da mísera entrevada, a quem a angústia curara em um momento.
A placidez da morte sem dor, da morte pela paralisia dos nervos motores, converteu-se em um suplício atroz, pavoroso, para cuja descrição não tem palavras a linguagem humana.
Morto e vivo!
Tudo morrera: só vivia o cérebro, só vivia a consciência e vivia para a tortura...
Por que não ter despedaçado o crânio com uma bala?
A paralisia invadiu os últimos redutos do organismo, o coração, os pulmões, sístole e diástole cessaram, a hematose deixou de se fazer. Um como véu abafou, escureceu a inteligência de Barbosa, e ele caiu de vez no sono profundo de que ninguém acorda.