O comendador Moscoso não se podia conformar com a idéia de que ali estivesse, debaixo de suas telhas e no seio de sua família, o filho do homem a quem ele mais odiara no mundo, do homem, pelo qual fizera verdadeiros sacrifícios para vingar-se, e a quem devia as duas mais penosas cenas de toda a sua vida — o filho do coronel Pinto Leite.
Como há de ver o leitor lá para diante, havia, pouco antes do casamento de Ambrosina, sofrido o comendador das mãos do coronel, no meio do maior escândalo social, a maior afronta que se pode fazer a um inimigo.
Todavia, o coronel Pinto Leite fora sempre um modelo de franqueza e de generosidade. A vida militar dera-lhe à fisionomia e às maneiras certo cunho de desabrida aspereza, mas ao mesmo tempo lhe temperara o caráter com essa bondade, natural e seca, que moralmente distingue, dos materialistas sensuais, ávidos e fracos, os homens castos, sentimentais e fortes.
A história do velho ódio que lhe tributava o comendador vinha de longe, e só poderá ser bem compreendida com uma rápida exposição dos traços gerais da vida do coronel.
Pinto Leite, aos vinte anos, como simples alferes, fazia parte das aventurosas expedições a São Paulo e Minas, quando o Brasil, ainda estremunhando com a Independência, palpitava nas lutas militares e políticas, que depois firmaram definitivamente a sua nacionalidade. Fez carreira pelo valor, pela sisudez de caráter e leal cumprimento do dever. Ainda muito moço já era capitão e desempenhava os mais honrosos cargos de confiança do governo regencial.
Foi por esse tempo que, em campanha nas fronteiras rio-grandenses, se enamorou da filha de um estancieiro, e no intervalo de dois combates se casou com ela. Deste consórcio nasceram primeiro dois filhos gêmeos: Ana e Gaspar, e cinco anos depois falecia em Uruguai a infeliz mãe, por ocasião de dar à luz mais uma filha: Virgínia.
A situação política do país havia mudado inteiramente com a precoce e forçada maioridade do príncipe D. Pedro II, que mal acabava de completar quinze anos, e o soldado, vendo-se ao cabo da guerra preterido por bisonhos e engravatados filhotes do novo governo, e de mais a mais viúvo, enfermo de inúteis e gloriosas feridas, só por ele próprio ainda lembradas, e sobrecarregado com a responsabilidade da educação de três filhos, pediu e obteve reforma no posto de coronel, capitalizou o que tinha, e transferiu-se definitivamente para a Corte.
Só então, pela primeira vez na vida, desfrutou paz e estabilidade. Os bens adquiridos davam-lhe para viver decentemente; e quanto às suas ambições, essas, pobre delas! quedariam, talvez para sempre, sepultadas na bainha com a sua desiludida espada de reformado.
Ana e Gaspar, ao lado do viúvo, chegaram aos mais belos e bem aproveitados dezesseis anos. O rapaz matriculou-se na Academia de Medicina, enquanto a rapariga, chamando a si os cuidados domésticos da casa, fazia as vezes de mãe junto à irmã pequena.
Mas, com volver-se púbere, entrou Ana logo a penar no próprio ninho e a procurar com os olhos, em volta dos seus primeiros devaneios de donzela, quem a ajudasse a construí-lo.
Ora, a casa do veterano era mais freqüentada por velhos e ásperos camaradas dele, gente tostada de pólvora e tabaco, entre a qual não encontraria de certo a tímida rola o companheiro desejado. E o coronel tão alheio parecia aos solitários arrulhos da filha, que a menina chegou a desconfiar que o pai se não queria separar dela.
Com mais três anos por cima, e sem que aquele o percebesse, começou a irmã de Gaspar a revelar perturbações mais sérias no organismo e a tornar-se sumamente nervosa e macambúzia.
Foi então que o caixeiro da taverna em frente da casa, um rapaz português de pouco mais de vinte anos, bonito e forte, deu em requestá-la com sorrisos e olhares ternos.
E o caso é que a filha do coronel, a princípio revoltada, depois apenas retraída, e afinal já hesitante, acabou por aceitar abertamente o namoro do caixeiro.
Trocaram cartas, e os protestos amorosos do rapaz, escritos com pouca ortografia e muito faro no dote da pequena, a esta enchiam de deliciosos anseios e a deixavam a cismar horas perdidas nas felicidades do lar doméstico.
Um belo dia autorizou-o ela a pedi-la, ao pai, e o rapaz, no primeiro domingo de descanso, enfiou um fato novo, embolsou a carta em que vinha a autorização do pedido, e apresentou-se ao veterano com um discurso na ponta da língua.
A resposta que teve foi uma formidável gargalhada, uma dessas gargalhadas escandalosas de soldado velho, mais pungentes e agressivas que qualquer formal injúria.
O pobre moço desceu as escadas cambaleando, ébrio de confusão e sufocado de cólera.
Esse moço era, um punhado de anos mais tarde, o jovial e próspero comendador Moscoso.
Ao sair da casa do coronel, Moscoso jurou vingar-se. Atravessou a rua apoplético e, metendo-se no cubículo que lhe servia de quarto de dormir, atirou-se ao catre com uma explosão de soluços.
À noite escaldava de febre. Foi uma noite de vertigem, cálculos de fortuna e planos de vingança. O caixeiro via-se mentalmente a economizar, a passar misérias, para ajuntar pecúlio e armar um princípio sólido de vida. As fontes estalavam-lhe. Sonhava-se rico, já cercado de considerações, levantando inveja nos vencidos, abrindo por todos os lados cumprimentos e sorrisos de adulação. Então é que aquele triste do coronel havia de saber o que era bom! Oh! ele, o pobre caixeiro, seria implacável no seu ódio! o coronel havia de pagar duro! havia de puxar pelas orelhas sem deitar sangue; havia de arrepender-se de lhe não ter dado a filha! Moscoso havia de ver Anita amarrada a um diabo, que a enchesse de maus tratos e necessidades! O tempo é que havia de mostrar
E inteiramente devorado por estas idéias, o caixeiro virava-se e revirava-se na cama, sem conciliar o sono.
Amanhecera abatido, cheio de febre e possuído de uma grande má vontade por tudo e por todos.
Desde então principiou para ele uma nova existência. Tinha uma idéia fixa: tratava-se agora de ajuntar dinheiro; estava disposto a suportar tudo, contanto que o capital se fizesse e avultasse!
Moscoso principiou por mudar de gênero de comércio; meteu-se para a rua da Saúde, arranjando-se em uma casa de café.
E o grande fato é que, ao fim de algum tempo, todo o seu esforço principiava já a produzir o desejado efeito, e o caixeiro contava todos os meses o fruto das suas economias, amontoadas com o sacrifício de todos os instantes.
Pôde então realizar uma idéia, que lhe trabalhava havia muito no cérebro: escrever no Jornal do Comércio uma série de mofinas contra o coronel.
Moscoso, uma noite depois do trabalho, foi à redação daquela folha e entregou a primeira à publicação.
A mofina dizia assim:
"Pergunta-se ao coronel Pinto Leite por que razão S. S. não entra em explicação de contas a respeito de certa viúva da cidade?... — A sentinela."
Consistiu nestas estranhas palavras a primeira mofina do comendador. Ninguém as sabia explicar, não tinham fundamento algum, eram inventadas; mas quem as lesse ficaria com o juízo suspenso, diria talvez consigo que ali andava misteriosa e grossa maroteira; e era isso justamente o que Moscoso desejava, era levantar dúvida, promover desconfiança, arranjar qualquer prevenção contra o coronel.
Este, quando viu a mofina, riu-se, persuadindo-se vítima de algum engano. Mas em breve se convenceu do contrário, porque o fato começou a repetir-se.
Moscoso punha já de parte certa verba para aquela despesa; a mofina entrou no seu orçamento ao lado do dinheiro para o cabeleireiro e para o rol da roupa suja. De quinze em quinze dias apareciam elas impreterivelmente, com uma regularidade impressionadora.
O coronel já não ria, sacudia os ombros, e ao ver passar o redator-chefe do jornal, o Luís de Castro, torcia o nariz com repugnância.
Entretanto, pouco depois, Ana foi pedida por um empregado público, e o pai deu-a de bom grado.
Moscoso, por portas travessas, fez o que pôde para desmanchar o casamento. Serviu-se da carta anônima, não trepidou em difamar a filha do coronel, atribuindo ao próprio pai dela a autoria da sua desonra; mas nada disso produziu efeito, e o invejoso teve de roer na obscuridade de seu ódio mais essa decepção.
Ah! o que o havia de vingar eram as mofinas! para isso estava ali o Jornal do Comércio!
E Moscoso meneava a cabeça, com a calma e a resignação de quem tem toda a confiança na sua paciência e plena certeza de alcançar os seus fins.
— Havia de vingar-se, olé! repetia consigo de vez em quando. Seu tempo de gozo havia de chegar!...
Por essa época sucedeu que o dono da casa comercial em que estava ele empregado, fosse acometido mais fortemente pela moléstia que padecia.
Moscoso tornou-se desvelado e incansável com o patrão, a quem passou a servir de enfermeiro. Perdia noites, andava na ponta dos pés, só falava à meia voz e vivia amarelo, feio e taciturno.
Assim se passaram cinco meses, sem uma queixa, sem uma exigência. Afinal o patrão uma noite o chamou ao quarto e, mostrando-lhe uma rapariga, que criara e com quem vivia, disse-lhe com as lágrimas nos olhos:
— Moscoso! eu sou um homem rico, tenho esta pequena que eduquei como filha, sinto que vou morrer e não deixo família para herdar. Mortifica-me a idéia de ficar aí tanto dinheiro, que representa o meu trabalho da vida inteira exposto a cair na mão de algum vadio que o deite à rua, como quem não sabe quanto me custou a ganhá-lo, e acabe por atirar na miséria a esta pobre de Cristo!
Moscoso abriu a chorar, e entre soluços pediu ao patrão que se calasse por amor de Deus, e não se estivesse a mortificar com semelhantes idéias.
Mas o homem não o atendeu e, segurando uma das mãos do caixeiro e outra da pupila, continuou com a voz sufocada:
— Deixa-te disso, Luís! sei que morro e não quero, pela primeira vez em minha vida, largar os meus negócios desamparados... Não me posso ir, sem cuidar do futuro desta criatura; eu já lhe toquei a teu respeito, ela concordou; de tua parte espero que não me hás de deixar mal... Minha pupila, coitada! não é nenhuma beleza, nem é nenhuma senhora de salão, mas tem boa cabeça e um coração que é uma jóia. Fica-te com ela, toma-a por esposa. Só desejo que a trates sempre como eu sempre a tratei, e que sustentes o nome e o crédito desta casa, que fiz com a minha atividade e com a minha perseverança. Tu és econômico e sensato, virás a dar um bom marido, e...
O enfermo, não pôde continuar, e com um gesto pediu o remédio.
Moscoso serviu-lhe, recomendando que se calasse.
Havia tempo, que diabo! para tratarem daquilo. Ficasse o patrão descansado; ele cumpriria as suas últimas ordens, com o mesmo zelo com que cumpriu as primeiras recebidas naquela casa!
O patrão fez um gesto afirmativo e puxou para o seu peito descarnado as cabeças dos seus dois herdeiros, que se vergaram condescendentemente, em uma posição forçada, cada qual uma careta mais feia.
A pequena chorava, e o Moscoso fazia-lhe sinais com os olhos para que sustivesse o pranto defronte do moribundo.
O médico chegou depois à hora do costume, demorou-se o tempo que a formalidade exigia, e saiu, dando de ombros.
O doente expirou no dia seguinte.
Meses depois, casava-se Moscoso com a pupila do defunto patrão. Chamava-se Genoveva e era uma raparigaça de seus vinte e poucos anos, muito tola de uma gordura desengraçada. Parecia toda feita de almofadas; as carnes da cara tremiam-lhe quando ela andava, os olhos tinham uns tons amarelados e mortos; o cabelo vivia-lhe pregado ao casco da cabeça com suor, por falta de asseio. Era de uma brancura de sebo velho, falava muito descansado e com um hálito azedo; as suas mãos papudas e umidamente macias, davam em quem as tocasse a sensação repulsiva que se experimentava ao pegar na barriga de uma lagartixa.
Moscoso apossou-se sofregamente dessa mulher, como quem se abraça a um colchão infecto e sebento, cheio porém, de apólices da dívida pública.
Amou-a com todo o ardor da sua ambição, cercou-a de carinhos, de desvelos, de meiguices. Melhorou a sua casa comum de residência, comprou boa roupa, assinou jornais, freqüentou teatros e reuniões familiares, afinal conspirou com alguns colegas a respeito de uma comenda da Vila Viçosa, e aumentou sorrateiramente duas linhas em cada mofina contra o coronel.
No prazo marcado pela fisiologia, Genoveva, deitou ao mundo uma criança. Era menina e foi batizada com o doce nome de Ambrosina.
É deste ponto que principia o maior interesse das memórias do nosso pobre condenado.
Moscoso começava a presenciar a realização dos seus dourados sonhos de vingança, já era rico, respeitado, estava em vésperas de ser comendador e em breve seria milionário; ao passo que o marido da outra — o pobre empregado público, não passava ainda de miserável chefe de secção, e continuava a medir o seu ordenado pelas despesas indispensáveis da casa.
Ah! que bastantes vezes teriam ocasião de comparar os dois destinos, pensava aquele. De um lado o magro funcionário público, seco, modestamente vestido, curvado pelo serviço, com o espírito consumido pelo trabalho oficial, pela papelada da secretaria, e traduzindo na cara o nenhum caso que lhe votava a sociedade; em quanto do outro lado, resplandecia o belo comendador, o futuro barão, o homem das altas transações, a alma de mil negócios, o nédio ricaço que brincava com muitos contos de réis, gozando a boa carruagem, fumando o seu bom charuto, rindo na praça, dizendo pilhérias aos colegas tão ricos como ele.
E Moscoso revia-se na própria prosperidade, imponente na sua barriga esticada e egoísta, a destilar todo ele um ar petulante da fartura e proteção, a esconder enfim com uma simples aba da sua larga sobrecasaca o vulto franzino do miserável empregado público.
— Esfreguei-os! exclamou o marido de Genoveva em um assomo de contentamento. — Esfreguei-os em regra!
Entretanto, a vida do coronel ia muito pior do que podia imaginar o comendador Moscoso. O bom veterano, percebendo que os seus bens de fortuna tendiam a enfraquecer consideravelmente, teve um palpite de ambição e meteu-se a especular com eles. Foi um desastre que deixou o pobre homem quase reduzido ao soldo militar.
Por essa época, o filho habitava em S. Francisco da Califórnia depois de ter estado na Europa a aperfeiçoar-se em medicina. O velho participou-lhe o estado em que se achava, e pediu-lhe que voltasse quanto antes. Gaspar, que até aí gozara ordem franca, não acreditou em semelhante notícia, calculou que o pai desejava vê-lo e tratou de partir sem pressa.
Tinha ele então vinte e quatro anos e era um belo moço. Tomou uma passagem no "Pacific Star", disposto a voltar definitivamente para a companhia do pai.
Mas, enquanto o navio ancorava em Montevidéu para refrescar, Gaspar resolveu aproveitar o dia, visitando a cidade com outros rapazes companheiros de bordo.
Só quem não viajou deixará de compreender o que é passar vinte e quatro horas numa cidade estranha, quando se tem outros tantos anos de idade e dinheiro nas algibeiras. Jantaram em casa de uma rapariga; o vinho era excelente e a tarde encantadora. As horas voaram no turbilhão do prazer e da desordem; ferveu o champanha, as canções rebentaram estrepitosamente entre gargalhadas.
O navio largava no dia seguinte às onze horas.
À meia-noite os rapazes levantaram-se da mesa, mas a rapariga passou os braços no pescoço de Gaspar e pediu-lhe que ficasse. Ele cedeu, tinha a cabeça pesada e o corpo lhe exigia repouso. Não foi sem prazer que viu a vasta cama e o confortável aposento, que lhe franqueou a dona da casa.
Deitou-se e pediu que lhe servissem chá antes de dormir. Foi ela própria levar-lhe ao leito uma chávena, em que tinha lançado duas gotas de ópio.
Gaspar, depois de beber, sentiu um grande entorpecimento e adormeceu profundamente.
Então, a um sinal da rapariga, acudiu da alcova imediata um homem musculoso, que se apoderou dele e o levou consigo.
Gaspar foi carregado em trajes menores; todos os seus objetos de valor, o seu dinheiro e a sua roupa externa ficaram no quarto da ratoneira.
O homem que o colheu atirou-o dentro de uma carruagem à porta da casa, e trepou para a boléia.
O carro percorreu várias ruas, e afinal parou em uma das mais sombrias e desertas.
O ladrão desceu então da boléia, sacou Gaspar da sege, deitou-se ao comprido do macadame, galgou de novo o seu posto e afastou-se fustigando os cavalos.
A noite fizera-se escura e um vento frio ameaçava chuva. Gaspar continuava a dormir, estendido no chão.
Só voltou a si às três horas da tarde. Ao abrir os olhos, reparou que estava deitado em um rico aposento, e que o tinham envolvido em magníficas casimiras e agasalhado os pés em edredão legítimo. Ao lado da cama, de pé, olhando para ele, havia uma mulher, que resplandecia em toda a exuberância de mocidade e beleza
Gaspar supôs-se num sonho; esfregou os olhos, estendeu a cabeça. E a linda visão, com o mais amável dos sorrisos, passou-lhe uma das mãos no ombro e com a outra lhe fez sinal de silêncio.
Ele tomou aquela mãozinha branca e nervosa e ficou a fitá-la por longo tempo. Depois traçou um circo com o olhar e perguntou verdadeiramente surpreendido de tudo que via em torno de si:
— O que quer isto dizer? Onde me acho eu?!
— Mais tarde o saberá, disse a bela desconhecida; por ora trate de fazer a sua toilette e tomar o chocolate que já está servido sobre aquela mesa. O senhor deve estar a cair de fraqueza.
E saiu.
Gaspar acompanhou-a com a vista, e procurou mentalmente descobrir a relação que havia nesta casa com a outra em que adormecera. Nada descobriu e resolveu aceitar o conselho que lhe dera a desconhecida. Foi ao toucador e preparou-se tomou em seguida o chocolate, e tratou de vestir-se. Mas embalde procurava pela roupa — no quarto só havia um robe-de-chambre de seda. Gaspar enfronhou-se nele.
Tinha feito isto, quando sentiu passos. Era novamente a bela e misteriosa mulher.
— Ainda bem, resmungou Gaspar um tanto impacientado.
Ela voltou-se muito familiarmente para ele, e disse com a voz firme:
— Antes de lhe explicar a razão pela qual espontaneamente o hospedei em minha casa, tenho a declarar-lhe que sou uma mulher honesta. Um pouco caprichosa talvez, mas com a consciência satisfeita pelo bom cumprimento do dever. Encontrei-o hoje, às quatro horas da manhã, desfalecido em uma das ruas menos transitadas desta cidade; a sua fisionomia impressionou-me extraordinariamente, por uma circunstância que mais tarde saberá. Calculei que o senhor tivesse sido vítima de algum roubo: fiz conduzi-lo à minha casa e aqui o tenho. Espero que me perdoará tal procedimento, se ele não for do seu agrado.
Gaspar, por única resposta, ferrou-lhe um olhar grosseiramente incisivo e curioso, como se lhe procuras se descobrir no rosto o que havia de verdade naquelas palavras.
Ela suportou o olhar sem pestanejar, e replicou-lhe com uma firmeza que não admitia réplica:
— Não tolero que ninguém duvide do que afirmo!
E voltando-se, acrescentou consigo: "Não me enganei! É ele com certeza!"