Um tanto vergado na cadeira, o antebraço direito firmado sobre a perna, o olhar fito, tinha Gustavo a expressão concentrada de quem ouve com muito interesse.
A lavadeira disse-lhe francamente toda a sua vida; relatou como fora recolhida à casa do seu protetor, a morte deste e o imediato casamento dela com Moscoso; depois falou a respeito das questões de seu marido com o pai do Médico Misterioso, do aparecimento de Gabriel, do casamento de sua filha Ambrosina com Leonardo, da loucura do noivo, da morte do comendador, da intervenção de Gabriel, que se amasiou com Ambrosina, e, finalmente, das complicações que surgiram como conseqüência de tais desordens, dando em resultado a fugida de Ambrobina com Laura para a Europa, cujo verdadeiro alcance à pobre mulher estava bem longe de calcular.
— Mas, depois da união de sua filha com o Gabriel, como viveu a senhora?
— Ah! é justamente para chegar a esse ponto que lhe contei tudo mais...
E, depois de descansar um pouco, continuou, com a voz sempre arrastada:
— Calcule o senhor que um dia encontrei sobre a cama de Ambrosina um bilhete, na qual me comunicava ela haver-se mudado para a companhia de Gabriel. Fui lá; minha filha convidou-me para ficar, eu não quis, e isolei-me na minha casinha do Engenho Novo. Foi então que me apareceu o Alfredo Bessa. o Alfredo mostrou interesse por mim, ia fazer-me companhia, conversar, encarregar-se de meus negócios. Era um bom amigo; um dia propôs-me ficar com ele, e eu aceitei...
E, como Gustavo acabava de preparar um cigarro, ela tirou uma caixa de fósforos debaixo do travesseiro, passou-lhe em silêncio, e continuou:
— Depois da morte do Alfredo, e como fosse escasseando o trabalho, mudei-me para cá, onde com o aluguel da casa do Engenho Novo e o resultado de meu trabalho, tratava da vida e da educação de uma órfã, que eu havia tomado à minha conta.
— Diga-me uma cousa, interrompeu Gustavo; esse Alfredo, de que fala a senhora, não foi retratado depois de morto?...
— Foi, porém muito mal; por um moço, que um freguês nosso nos levou à casa. Ficou uma borracheira...
— Bem; mas o que é feito daquela menina de olhos vivos, que por essa ocasião estava em sua companhia!... Aquela, a quem o moço do retrato prometeu retratar igualmente?...
— Estela! Pois essa é que é a minha pupila; mas como sabe o senhor disso?...
— É cá por uma cousa... Vamos adiante.
— Essa menina ia ver-me de vez em quando, mas era interna no colégio das irmãs de caridade em Botafogo. Eu dava-lhe uma pensão com o aluguel da casinha do Engenho Novo, porém há quatro meses que as cousas mudaram inteiramente de figura, há quatro meses que não pago a pensão; a diretora escreveu-me várias cartas, prevenindo que me ia remeter a pequena; eu não tenho onde a receber, nem posso tampouco ir lá entender-me com ela. É um inferno!
— E por que não a recebe na sua casa do Engenho Novo?...
— Aí é que bate o ponto! Depois que Ambrosina partiu para Europa, nunca mais me deram novas dessa ingrata, e, como tinha, eu a minha filha adotiva, fazia por esquecer-me da outra; mas, eis o demo, mando uma vez receber o aluguel da casinha do Engenho Novo, e o que recebo, em vez de dinheiro, é a notícia de que a casa fora vendida e que era agora o novo dono quem nela morava. Indago, procuro descobrir o que queria tudo isso dizer, e chego afinal à conclusão de que a casa fora vendida por Ambrosina, que havia chegado do estrangeiro com o nome de condessa não sei de quê!
— Mas, a casa não era sua?
— Sim; havia, porém, sido comprada em nome de minha filha... para escapar aos credores de meu marido...
— Sua filha! Condessa! Ah! exclamou Gustavo; compreendo! É a Condessa Vésper?
— Justamente! é isso!
— Ah! essa sujeita é sua filha?... repisou Gustavo, muito preocupado. E o que quer a senhora que lhe faça agora?
— Que o senhor me escreva uma carta a ela dirigida, e dê as providências para que a carta seja entregue em mão própria...
— Isso hoje será difícil, porque a Vésper tem uma festa no Alcazar; mas vou ver se consigo.
— Está bem, concordou a lavadeira; contudo que o senhor prepare a carta agora mesmo, e não se descuide de entregá-la quando for possível.
— Pode ficar descansada.
E Gustavo, depois de inteirado do que a velha queria dizer à filha, escreveu a carta, e saiu, prometendo voltar com qualquer resposta.
Eis aí o que deu motivo ao bilhete, que tanto sobressaltou Ambrosina na noite dos seus triunfos.
Entretanto, o rapaz, ao deixar o cubículo de Genoveva, levava no coração um motivo de grande contentamento; era o que acabava de saber com respeito a Estela, o mocinha de olhos bonitos, que tanto o havia impressionado quando a viu pela primeira vez no colégio de irmãs de caridade em Botafogo e logo depois por ocasião do malsinado retrato de Alfredo; e a qual, a partir daí, nunca mais deixara de associar-se aos sonhos do poeta como noiva eleita para a futura felicidade de homem público. Ia vê-la afinal, falar-lhe diretamente, talvez até receber de seus lábios de donzela uma esperança de amor.
Á noite desse mesmo dia foi ao Alcazar, armado com o bilhete que conseguiu fazer ir ter às mãos de Ambrosina, na manhã seguinte, perfeitamente seguro do que tencionava pôr em prática a respeito de Estela, correu ao seu editor, muniu-se com o que aí tinha em dinheiro, tomou um tílburi e seguiu para o colégio das irmãs de caridade. Não lhe foi possível ver a pupila da lavadeira, prometeram-lhe, porém, que às cinco da tarde poderia falar-lhe em presença da diretora, ou da irmã que estivesse de semana. Saldou a conta de Genoveva e, propondo-se pagar um mês de pensão adiantado, soube com surpresa que a sua protegida permanecia ultimamente no colégio, não já na qualidade de aluna, mas de simples empregada no serviço doméstico do estabelecimento.
Retirou-se triste, e durante o resto desse dia nada mais fez do que esperar o momento da prometida entrevista.
À hora aprazada lá estava ele de novo no colégio, e bem pode o leitor calcular com que ansiedade não lhe saltaria por dentro o coração, quando lhe anunciaram que a desejada menina ia afinal ser conduzida à sua presença.
Estela apareceu cabisbaixa e silenciosa na sua estamenha azul-ferrete, e com os cabelos escondidos numa desgraciosa coifa de torcal; acompanhava-a de perto a semanária, velha, macilenta, de óculos quase negros, mãos ocultas nas largas mangas do burel, e o rosto resguardado pelas engomadas abas do seu enorme toucado de linho branco. A rapariga parecia tolhida de sobressalto e timidez, mas seus formosos olhos logo se acenderam e animaram ao dar com os de Gustavo, que a contemplavam enamorados; e, com o feminil e agudo instinto, que jamais atraiçoa a mulher defronte do homem que a ama lealmente, toda ela no mesmo instante se encheu de confiança, deixando em sorrisos transbordar do íntimo da alma a consoladora previsão do novo caminho em flor, que naquele supremo momento ia abrir-se para a sua casta e obscura mocidade.
A semanária, sem levantar a cabeça, nem desencovar as mãos, afastou-se discretamente para um canto da sala, entrincheirada nos seus terríveis óculos, cujos vidros redondos e abaulados, lhe davam à fisionomia, assim a certa distância, um perturbador aspecto de ave agoureira.
Gustavo, ao contrário do que sucedia com a moça, e apesar da íntima segurança das suas intenções, achava-se cada vez mais perplexo e embaraçado. Foi com uma voz apenas perceptível que ele lhe falou da necessidade de cuidar seriamente do futuro dela, à vista do precário estado em que se achava Genoveva.
Estela, com o rosto afogado de comoção, ouvia-o sem ânimo de arriscar palavra. E o moço não se fartava de vê-la, achando-a agora sem dúvida menos bonita, porém muito mais fascinadora e amável. Naqueles travessos olhos, que os dele enfeitiçaram desde que se viram pela primeira vez, lágrimas já de mulher haviam deixado tênue sombra dessas ocultas mágoas, donde tira a natureza as melhores notas dos seus hinos de amor.
— A senhora não poderá continuar na falsa posição em que se acha... balbuciou ele. E preciso ocupar na sociedade o lugar que lhe compete...
A semanária tossiu lá do seu canto, e Estela, abaixando as pálpebras, murmurou:
— Será muito difícil... Não passo de uma pobre órfã, quase totalmente desamparada...
— E por que não se casa?... arriscou o rapaz, abaixando ainda mais a voz.
A rapariga estremeceu, sem responder, mas em compensação a tosse da velha aumentou, e o agoureiro espectro começou a aproximar-se dos dois namorados sinistro e lento.
Gustavo acrescentou, chegando a boca ao ouvido da moça:
— E se lhe aparecesse um rapaz, pobre, mas trabalhador e honesto, que a amasse muito... muito...?
Estela sorriu, de olhos baixos, e começou a torcer e destorcer nos dedos o lenço de algodão que tirara da algibeira; ao passo que a lôbrega semanária, num frouxo de tosse recalcitrante, vinha cada vez mais aproximando deles as duas negras vigias dos seus óculos.
— Então... nada me responde?... insistiu Gustavo.
— Não creio... segredou Estela.
— Pois sei eu de um moco nessas condições, cujo maior desejo na vida é obtê-la por esposa...
A tosse da velha tomou proporções intimidadoras, e daí por diante não teve tréguas. Estela torcia e destorcia o lenço com um frenesi mais significativo.
— Vamos... prosseguiu o rapaz, ganhando ânimo e levantando a voz para dominar a tosse da semanária; vamos... diga se posso levar ao desgraçado uma esperança... feliz, ou se tenho de desenganá-lo para sempre... Responda, Estela!...
— Não sei...
— E se uma família de gente virtuosa e meiga a viesse buscar aqui, com o fim de a levar para a companhia dela, não como criada, nem agregada, mas como amiga, que pode quando quiser montar a sua própria casa e constituir honestamente o seu lar... Diga, Estela, a senhora não consentiria em acompanhá-la?...
Ela respondeu que sim com a cabeça, e Gustavo, porque a velha tossia agora desesperadamente, exclamou, soltando verdadeiros berros:
— Então em breve estarei de volta, e comigo virá a mãe dessa família, que se entenderá com a diretora do colégio! Adeus, adeus, minha noiva querida!
Estela, radiante de alegria, estendeu a Gustavo uma das suas mãozinhas, que ele avidamente tomou para levar aos lábios.
A semanária, porém, sem largar de tossir, se havia já metido de permeio entre eles, enquanto por todas as portas do salão surgiram, fariscantes, muitas outras toucas de linho branco, que a tosse da semanária e os gritos do rapaz tinham posto em reboliço.
Gustavo bateu em retirada, mas lá da porta de saída ainda se voltou para a rapariga, a dizer com os olhos e com o estalar dos lábios o que as suas palavras não conseguiram.
E desceu a escada do jardim aos pulos, como se todo corpo lhe acompanhasse os saltos do coração, e lá fora meteu-se de novo no seu tílburi, ardendo por chegar a casa e entender-se com D. Joana sobre o que acabava de combinar com a pupila da lavadeira.
Ao chegar à rua do Rezende, entregaram-lhe uma carta, que ele arremessou para o lado, sem abrir, e daí a pouco ficava assentado, de pedra e cal que Estela seria reclamada no dia seguinte às irmãs de caridade pela família Silva.
Só na ocasião de recolher-se à cama é que o rapaz abriu afinal a carta, e leu o seguinte:
"A condessa Vésper comunica ao Sr. Gustavo Mostella que está às ordens dele amanhã às três horas da tarde, Largo do Rocio nº ..."