No dia seguinte, Gaspar, verificando que o enteado havia fugido do Rio de Janeiro, sem deixar rastos, sem a ninguém comunicar o destino que levava, meteu-se, ardendo em febre, a bordo do transatlântico em que contava seguir com ele para a Europa, e por sua vez desaparecia da Corte, levando o coração tão despedaçado, quanto é natural que a essas horas acontecesse igualmente com o pobre Gabriel.
Semanas depois desse triste rompimento, que arrojava os dois amigos para longe um do outro, quase toda linfática população fluminense de novo se agitava num delírio de entusiasmo.
É que na véspera Ambrosina estreara no Alcazar. Não se falava em outra cousa; os jornais vinham pejados de elogios à deslumbrante Condessa Vésper, meteram-se em circulação os mais pomposos adjetivos, para dar idéia dos encantos da debutante, e, nas rodas dos habitués do teatrinho francês e dos flanadores da rua do Ouvidor, descreviam-lhe com assombro a perfeição maravilhosa do corpo.
Foi um estrondoso triunfo! Uma das folhas mais lidas, dizia nas suas publicações gerais, que a nova artista era uma glória nacional, e que os brasileiros se enchiam de orgulho ao lembrar-se de que aquele primor de estatuária viva era carioca da gema.
Entretanto, a própria Ambrosina estava bem longe de esperar semelhante fortuna.
Um dia o empresário do Alcazar, o Arnaud, que lhe havia já franqueado o teatro, apareceu-lhe de novo a falar mais insistentemente sobre isso, e, tão bonitos pintou os resultados da estréia, que conseguiu afinal abalar o espírito da loureira.
Mas olhe que eu não sei cantar, homem de Deus!... objetou ela.
— E alguma das que lá tenho o saberá porventura...
— Mas terão boa voz, ao menos!...
— Nom de Dieu! praguejou o empresário francês. Não se pode ter melhor voz do que a sua para o Alcazar!
Ali não queremos voz, queremos jeito! percebe? A questão é de savoir faire!
— Porém é que eu nunca representei em minha vida!...
— E quem lhe pede que represente? Quero é que se mostre! Com esse corpo e essa cara não há que recear do público!
Ambrosina sorriu.
— Além disso... insistiu o Arnaud, o palco lhe realçará o prestígio. Não há para uma mulher bonita melhor moldura que os bastidores e as gambiarras!...
— E a empresa, como vai?...
— Vai mal! Pois se não tenho ninguém!... Aquela meia dúzia de gatas magras que lá estão, desacreditam-me o teatro! Faltam-me boas pernas... Se a senhora me voltar o rosto, o Alcazar — morreu!
E o Arnaud acompanhou a sua última frase com um gesto trágico de profeta; que prevê um fim de mundo.
Ambrosina mostrou-se compungida.
— Morre! é o que digo! A senhora não sei se o salvará, mas pelo menos há de suster-lhe a queda por algum tempo, até que apareça alguém capaz de arriscar ali um par de contos de réis!... oh! exclamou o empresário com ar convicto — aquele teatrinho é uma mina, que se pode explorar com muito pouco dinheiro! A questão é de reformar o jardim e mandar buscar um tenor! Não, não temos absolutamente vislumbre de um tenor! Quando lhe falei à primeira vez, há cousa de sete meses, se a senhora tivesse querido, eu podia nessa ocasião dar-lhe um bom ordenado, mas, o diabo dos negócios foram tão mal de lá para cá, que agora só o que posso fazer é oferecer-lhe sociedade na empresa...
— E você acha que com algum dinheiro se levanta aquilo?...
— Oh! oh! soprou o francês, por única resposta.
— Pois eu me associo com oito contos de réis, e trabalho; serve-lhe?
— Se serve! E afianço-lhe que vai ganhar rios de dinheiro!
No dia seguinte, Ambrosina deu as suas providências para arranjar o capital; os oito contos de réis pingaram da algibeira dos seus admiradores, como o sumo de uma fruta espremida. Ficou a cousa afinal arranjada da seguinte forma: o então ministro da Fazenda um conto de réis; o comendador X. X., presidente de certa companhia garantida pelo Estado, dois contos de réis; o deputado Rocha Coelho, quinhentos mil-réis; mais três comendadores do comércio, a quatrocentos mil-réis por cabeça, um conto e duzentos mil-réis; um diretor de secretaria trezentos mil-réis; um banqueiro de roleta, quinhentos mil-réis; um fazendeiro, que a convidara para ficar só com ele, oitocentos mil-réis. E o que faltava ainda foi obtido em quantias pequenas de algibeiras de todos os tamanhos e jerarquias: de sorte que Ambrosina nem teve de tocar no seu fundo de reserva, como esperava, e talvez ainda guardasse algumas sobras na ocasião de reunir o produto das quotas.
Pouco depois, passaram-se os documentos necessários, e era ela empresária do Alcazar.
Estreou com duas pífias cançonetas e um quadro vivo, mas por tal sorte apimentou os versos e os gestos, e tão à mostra apresentou as suas formas esculturais, que o público sentiu vibrar-lhe no sangue uma faísca diabólica e levantou-se entusiasmado, a lançar no palco chapéus, lenços, bengalas e ventarolas, possuído de verdadeiro delírio.
No dia seguinte, a sala da Condessa Vésper encheu-se de homens de toda a idade e posição social, e os cartões, os ramalhetes, os oferecimentos, os pequeninos presentes de consideração, choveram de todos os lados.
No espetáculo imediato, subiram os bilhetes a um preço escandaloso, os cambistas encheram-se a grande, e às sete horas da noite já se não podia passar pela rua da Vala. O teatrinho parecia vir abaixo! o nome da formosa estrela enchia o ar, pronunciado em todos os sotaques e diapasões. O público sentia-se impaciente, a orquestra apressada.
Afinal, subiu o pano, e Ambrosina, quase nua, viu-se calçada de flores até acima dos joelhos.
Não obstante, no meio daquela porção de rosas foi envolvido um novo espinho, e este agora bem agudo — era um cartão de Gustavo.
Em casa, no seu primeiro momento de independência, Ambrosina releu o tal cartão, dez, vinte vezes seguidas, e acabou por atirar-se à cama, soluçando, dominada por uma violenta comoção, que não ficou bem averiguado se era produzida pela raiva, pela excitação da noite, ou por qualquer outra causa.
O cartão dizia o seguinte:
"Gustavo Mostella pode à festejada Condessa Vésper o obséquio de marcar-lhe amanhã uma hora, na qual lhe possa ele falar, em confidência, a respeito de certa lavadeira por nome de Genoveva. Rua do Rezende..."
Era simplesmente isto o que dizia o cartão.
E a cousa explica-se do seguinte modo: Gustavo morava num cômodo de sala e alcova, que lhe alugava a família Silva, proprietária e moradora de um sobrado da rua do Rezende. Pagava noventa mil-réis por mês, com direito, além da comida, ao arranjo dos quartos, ao banho e ao café pela manhã.
A família Silva, que se compunha de uma velha chamada Joana e duas filhas trintonas, era gente pobre, porém boa e honestamente laboriosa; e o hóspede, em troca dos graciosos desvelos que recebia dela, jamais negava os seus serviços, tinha ocasião de ser-lhe útil.
Uma vez disse-lhe a velha que desejava merecer-lhe favor, e, passando os óculos do nariz para o alto da cabeça, acrescentou com voz misteriosa:
— Nesse cortiço aí aos fundos da casa, há uma pobre mulher, bem apresentada ao que dizem, que há tempos lava para mim; ultimamente tem estado de cama, e mandou-me agora pedir que lhe fosse lá escrever uma carta, não sei para qual dos seus parentes. Como o senhor na ocasião não estivesse cá, desci eu próprio a ter com ela, acheia-a muito mal, coitada! e prometi à infeliz que, mal o senhor chegasse, lá iria a meu pedido prestar-lhe aquela caridade.
— Pois não, respondeu o rapaz; posso ir imediatamente, contanto que venha comigo alguém, para mostra-me a qual dessas centenas de portas tenho eu de bater.
E, enquanto D. Joana chamava pela negrinha que na casa representava o papel de copeiro, Gustavo, sem se desfazer do chapéu e da bengala, dizia de si para si, a recordar-se das muitas vezes em que da janela do seu quarto ficava a contemplar a labutação do cortiço:
— Deve ser aquela mulherança gorda e azafamada, que estava sempre a ralhar com as crianças, e de quem copiei o tipo da "Brigona" no meu romance "A Estalagem".
Daí a pouco esperava à porta da lavadeira que o mandassem entrar. A negrinha tinha já enfiado pelo quarto, a dar notícia da chegada "do moço que ia para escrever a carta".
O cortiço estava todo em movimento. Havia nele o alegre rumor do trabalho. Um grupo de mulheres, de vestido arregaçado e braços nus, lavava, conversando e rindo em volta de um tanque cheio. Um português, com jaqueta atirada sobre os ombros, tagarelava com uma negra, que entrara para vender hortaliças; duas crianças más, assentadas na grama raspada de um quase extinto canteiro, entretinham-se a enraivecer um cão. Um mascate, com uns restos de cachimbo ao canto da boca fumava ao lado de um tabuleiro de quinquilharias de vidro, e conversava em meia língua com uma velha ocupada a depenar um frango.
Gustavo observava tudo isto, e era igualmente observado. Seu tipo destacava-se ali, no meio daquela pobre gente, que o olhava com desconfiança.
Mas, afinal, a negrinha reapareceu, chamou por ele, e o rapaz entrou no quarto da lavadeira.
Era um cubículo estreito e oprimido pelo teto. Gustavo deu alguns passos e parou, afrontado pela escuridão e pela insalubridade do ar que respirava ali. A sua retina, que acabava de receber a luz de fora, ainda se não havia dilatado; só depois de alguns segundos foi que principiou ele a distinguir vagamente alguns vultos confusos.
— Venha para cá... disse uma voz fraca e arrastada.
O rapaz tomou a direção da voz, quase às apalpadelas.
A negrinha nessa ocasião voltava com uma cadeira, que fora pedir à vizinha, e Gustavo assentou-se ao lado da cama em que estava a enferma.
Pôde então com dificuldade reconhecer que a pobre mulher era justamente quem ele supunha.
Mas, que mudança!... pensava. Que transformação...
E declarou que D. Joana lhe pedira fosse ali escrever uma carta.
A senhora está doente?... perguntou ele depois.
Ao ouvir a última frase, a enferma pôs-se a gemer, como se só então se lembrasse dessa formalidade da moléstia.
E começou a queixar-se do que tinha, como se falasse ao médico.
— Estou muito mal, disse; o senhor não faz uma idéia! são pontadas no estômago, dores nas juntas, tonturas, cólicas, e a boca amarga, que é uma desgraça!
E como Gustavo fizesse um movimento de interesse:
Mas o que mais me consome é esta perna! acrescentou ela, esfregando a mão pela perna esquerda. — Olhe!
E, gemendo, cingiu o lençol à coxa para dar idéia da inchação.
— Porém aqui há de ser um pouco difícil escrever... arriscou Gustavo, a olhar em torno de si.
— Abre-se aquele postigo...
E gritou:
— Ó Bento!
— Eu abro! lembrou Gustavo.
E, depois de trepar-se na cadeira, abriu uma janelita de dois palmos, que ficava sobre a cabeceira da cama.
Entrou logo por aí um grande jato de luz, cortando o espesso ambiente com uma lâmina cor de aço.
Foi então que Gustavo viu distintamente a miséria repulsiva que o cercava.
A lavadeira, deitada sobre uma velha cama de ferro, tinha um aspecto hediondo. A doença comera-lhe a gordura, e caíam-lhe agora tristemente do pescoço, dos ombros e dos braços, as peles vazias e engelhadas. Seus olhos desapareciam engolidas pelas pálpebras empapadas, sua boca era uma fístula, a febre levara-lhe os cabelos, e o crânio, mórbido pelo molho de luz que vinha do postigo, desenhava-se, como o da velhinha Benedita, através do transparente rede das farripas secas e grisalhas.
— Já tenho ali a tinta e o papel, disse ela, sem atentar para a preocupação de Gustavo.
Este olhava em torno de si, oprimido pelo aspecto cru e nojento de tudo aquilo. Nas paredes, entre manchas de umidade, havia várias litografias de santos, nelas pregadas sem moldura; no chão, sapatos velhos, cestos de roupa suja e uma gaiola quebrada; a um canto, uma bacia de folha transbordava água sebosa. E uma galinha, cercada de pintos, cacarejava pelo quarto, a mariscar nuns pratos engordurados, que teriam servido naturalmente à última refeição.
— Quando quiser, estou às ordens... observou Gustavo, impaciente por livrar-se daquele espetáculo.
— Feche-me primeiro a porta, pediu a velha; não quero que ouçam a nossa conversa. Esta gente de cá é muito amiga da vida alheia... Bem! agora puxe aquela mesinha para junto de mim! assim... Pode assentar. E antes de escrever, escute... escute com toda a atenção...
Gustavo percebeu que hálito da lavadeira transpirava aguardente.