Vamos refluir ao ponto em que este romance principiou, vamos penetrar de novo na bela chácara em que se fez o malogrado casamento de Ambrosina; vamos, finalmente, saber o que sucedeu às cenas da loucura de Leonardo.

Mas, antes disso, antes de fecharmos este grande parêntese, cumpre esclarecer o leitor sobre os últimos acontecimentos que procederam àquela situação.

Resume-se tudo em poucas palavras:

O coronel, depois de alguns dias de prostração, expirou nos braços do filho, ao lado de Gabriel e de Alfredo. O pobre velho não foi abandonado nos seus últimos momentos, sacramentou-se, fechou os olhos com a fisionomia banhada na mais doce resignação, e a alma tranqüilamente ungida pela consolação religiosa.

Morreu como um justo.

Gaspar, pouco depois, propôs a Gabriel uma viagem à Europa. Gabriel consentiu, contanto que assistissem primeiro ao delongado casamento de Ambrosina; o outro protestou, mas afinal teve de ceder, porque o enteado não desistia uma polegada do seu intento.

— Repara que é uma tremenda loucura o que tencionas fazer, Gabriel! Lembra-te de que, um vez casada Ambrosina, nada mais tens que esperar dela!

— Deixa-me! respondeu insolitamente o moço. Faze tu se quiseres a tal viagem; eu, haja o que houver, irei ao casamento!

— E prometes partir comigo logo ao depois?...

— Prometo.

— Palavra de honra?

— Palavra de honra!

— Bem, nesse caso eu te acompanharei à casa do comendador.

A festa foi extraordinária. A casa destinada aos noivos era uma bela chácara, que se prestava admiravelmente aos caprichos do gosto e às fantasias da bolsa. Leonardo, sofrivelmente rico, não olhou despesas; o comendador, por outro lado, procurou dar o maior brilho ao casamento da filha.

E tudo saiu muito à medida dos seus desejos. Foi enorme a concorrência.

A chácara apresentava um aspecto deslumbrante com a sua caprichosa iluminação; repuxos, cascatas, alpendres, caramanchões artificiais, estátuas simbólicas, tudo estava cheio de luz ou coberto de flores.

O Melo Rosa não descansara um mês inteiro. Fora ele o encarregado de dirigir os preparativos do festejo. Durante esse tempo vivia preocupado exclusivamente com aquele trabalho. Controlava operários, copeiros, encomendava doces, tinha idéias, lembrava esquisitices de grande efeito, desenhava planos e sonhava maravilhas originais.

O Reguinho ajudava-o muito e era quem saía a fazer compras, a procurar cortinas, laçarias, estatuetas, cantoneiras e mais petrechos de ornamentação.

Foi um mês de pândega na chácara, enquanto a preparavam para o noivado. Melo Rosa conhecia vários boêmios, que entendiam de pintura e viviam por aí a trocar as pernas; carregou com eles para lá, deu-lhes de comer e beber, e os homens puxaram a valer pelas tintas e pelos pincéis.

O Melo estava no seu elemento; passava o dia a distribuir ordens e a tomar grogs, sem largar o charuto da boca.

O comendador, de vez em quando, aparecia por lá, para dar um vista d’olhos ou um sorriso de aprovação.

— Os rapazes são o diabo! dizia ele depois em casa à mulher. Olhe que revolucionaram a chácara: bandeiras, figuras, estrelas, o diabo! E o fato é que está bonito! Logo na entrada puseram um caboclo abraçando a figura de Portugal; dá na vista! Foi uma idéia feliz! Não! tanto um como o outro têm bastante mérito.

— Como não?! disse Genoveva com um ar sério e estúpido, persuadida que o marido, naquela última frase, se referia a Portugal e ao Brasil.

Quando só faltava uma semana para o grande dia, a mulher do comendador, e o seu futuro genro, mudaram-se para a chácara com o fim de aprontarem as mesas e os aposentos dos noivos. Ficariam estes em um pavilhão cor-de-rosa, que estava uma tetéia.

Foi justamente no pavilhão, que aqueles dois rapazes mais capricharam: havia cupidos por toda a parte, pombinhos, grinaldas, fitas e borboletas. Era um bouoir de mágica, um ninho casquilho e arrebicado.

Mudaram-se também para a chácara, com pretexto de ajudarem, Ursulina e suas duas filhas: Eugênia e Miló.

Chegou, afinal, o grande dia, e tudo correu às mil maravilhas, até à hora em que os noivos fugiram para a independência feliz do seu pavilhãozinho cor-de-rosa. E viu já o leitor, pelo segundo capítulo, todas as desgraças que então se sucederam. Pois bem; vamos agora encontrar de novo os nosso pobres heróis na crítica situação em que os deixamos.

Gaspar, como vimos, fora surpreendido pelo comendador na ocasião em que socorria Ambrosina, e declarou, apesar de enxotado pelo dono da casa, que ficava no seu posto de médico; Gabriel fora recolhido a um quarto, e o noivo, tão violentamente atacado de insânia, teve de resignar-se a ser encerrado no porão da chácara.

Quem imaginaria que o homem, para quem se faziam todos aqueles deslumbramentos, havia de ser encurralado no pior lugar da casa?...

Depois de tais cenas, tudo se converteu em sobressalto e desordem. O comendador compreendeu que não dispunha de outro médico, e consentiu que Gaspar tratasse da filha; esta, porém, não queria voltar a si do tremendo abalo nervoso que a prostrara.

Da gente quedada para passar a noite na chácara, muitas pessoas desapareceram com a catástrofe e outras se achavam chumbadas à cama pelo vinho. Melo Rosa e o Rêgo eram dos últimos. Além de muito cansados, havia neles, para os inutilizar de vez, uma formidável carga de champanha.

Gaspar medicou o enteado, e voltou a cuidar de Ambrosina, cujo desfalecimento principiava a sobressaltá-lo. O comendador e a mulher encostaram-se, a chorar, no quarto da filha e esperaram pelo dia.

Ambrosina, estendida na cama, parecia morta.

Gabriel ficara só; às cinco horas da manhã, abrira os olhos e percorrera-os com um ar infeliz e resignado pelo quarto, como um ferido à espera da ambulância.

Entretanto, por detrás do seu leito, sem ser vista e sem ser ouvida, uma doce amiga lhe velava o sono, e parecia resguardá-lo com um véu de amor e de piedade.

Era Eugênia.

Leonardo havia enlouquecido totalmente, e só com muita dificuldade conseguiram alimentá-lo.

De um moço bonito e elegante que era, estava um monstro. Tinha os olhos espantados e vermelhos, o cabelo hirsuto, a boca feroz. Não admitia nenhuma roupa no corpo e passeava a quatro pés na sua prisão, soltando uivos plangentes ou bramidos de fúria.

E assim se passaram dois dias tristes e aborrecidos. Havia por toda a casa o constrangimento da desgraça. Ninguém se animava a rir e conversar livremente; ouviam-se gemidos e suspiros dolorosos, e de vez em quando os berros de Leonardo. Andavam todos espantados.

Gaspar declarou que o louco não podia ficar ali:

Ambrosina, se chegasse a ouvir aqueles berros, havia de piorar e talvez viesse a enlouquecer também. Leonardo foi com grande trabalho, conduzido para uma casa de saúde no bairro de Laranjeiras.

Gabriel convalescia à sombra dos desvelos de Eugênia.

Alguns dias depois, o médico procurou o comendador para dizer-lhe que se retirava; a sua doente estava livre de perigo, e Gabriel já podia partir.

O comendador ouviu-o com ar comovido e cheio de humildade. Súbita mudança havia ultimamente se operado nele; agora, ao contrário, parecia muitas vezes empenhado em praticar ações que o reabilitassem.

— Compreendo, disse ele a Gaspar, que o senhor esteja agastado comigo. Tem razão... Fui grosseiro e mal reconhecido aos seus serviços; peço-lhe, porém, que me perdoe e que se não vá embora por enquanto... Trate ainda minha filha, e só se despeça quando a pobre menina voltar de todo à sua primitiva saúde... Ah! se o senhor soubesse quanto tenho sofrido nestes últimos dias... teria compaixão de mim...

Gaspar cedeu afinal, mas declarou logo que não se separaria de Gabriel.

— Ó senhores! respondeu o comendador, já reanimado. Ele ficará conosco. Longe de incomodar-nos, nisso nos dará o maior prazer... Creia-me que falo neste instante com toda a sinceridade!...

Ficaram.

Ambrosina volvia-se garrida e sã com os hábeis cuidados de Gaspar. Este quase lhe não abandonara a cabeceira até conseguir levantá-la da moléstia. Daí uma certa intimidade muito respeitosa entre os dois. A doente só o tratava por "Meu salvador", e lhe sorria afetuosamente.

Uma ocasião, pediu-lhe ela licença para lhe dar um beijo na testa. Gaspar consentiu sorrindo, com um gesto paternal.

— Olhe! disse-lhe a bela moça; desejo que o senhor seja muito meu amigo... Não calcula o respeito que me inspira a sua tristeza; pressinto por detrás dela alguma penosa recordação de amor...

Gaspar fez-se mais pálido e sombrio.

— Peço-lhe que me conte a história. Tenho até hoje ouvido falar tanto do Médico Misterioso!... Conte-ma. Suplico-lhe!

— Não. Far-lhe-ia mal...

— Porém, quando me não fizer mal... promete?...

— Está bom, prometo, mas não se preocupe com isso...

E o médico recaiu na sua habitual serenidade. Ambrosina ficou a olhar longamente para aquela fronte pálida e despojada como se interrogasse o mármore de um sepulcro.

Gabriel, entretanto, também se restabelecia quanto ao corpo, porém absolutamente nada quanto ao espírito.

À tarde saía do quarto, arrastando debilmente a sua mágoa, e ia assentar-se, sombrio, debaixo das mangueiras, ao fundo da chácara. Comprazia-se então em deixar-se penetrar pela tristeza misteriosa do crepúsculo, e ficava horas esquecidas a olhar vagamente para o horizonte, que além se atufava nas últimas matizações da luz do sol.

Uma vez achava-se aí, como de costume. Era uma tarde esplêndida. Todavia, a natureza parecia ir morrendo à proporção que lhe escapava o dia, como se lhe fugisse a alma.

Havia em tudo a sombra melancólica de uma saudade; as árvores murmurinhavam numa deliciosa agonia, e no seio da terra caíam as primeiras lágrimas da noite.

Gabriel permanecia meditativo, a cismar no seu malogrado amor. Sem se regozijar com os últimos acontecimentos, sentia não obstante certo prazer amargo em pensar no sofrimento de Ambrosina e na desgraça de Leonardo.

Ah! ela com certeza teria mais de uma vez se arrependido da escolha que fizera!... pensava o pobre rapaz; entretanto, se o tivesse aceitado a ele para marido, como seriam agora felizes!... que bela lua-de-mel não desfrutariam ao calor amoroso daquelas tardes!...

E continuava a meditar: Que triste situação a dela!... afinal, não era casada, nem solteira e nem viúva... Não podia ser amada e nem podia amar, pois Leonardo não dava esperanças de melhoria... Pobre Ambrosina!

E Gabriel, apesar de tudo, sentia que a amava sempre; como nunca! sentia que aquele doido amor, longe de perecer desabrochava em novos rebentões, viçosos e verdejantes.

— Maldito! apostrofou ele; mil vezes maldito seja aquele homem, que veio despedaçar a minha felicidade!

E escondeu a cabeça entre as mãos, a soluçar. Quando levantou, viu defronte de si Eugênia. Esta o observava silenciosamente, com um olhar cheio de doçura e melancolia.

— Ah! exclamou Gabriel. Não sabia que estava aí...

— Sim, vim mais esta vez importuná-lo com a minha presença...

— Não; a sua presença só pode trazer-me esperança e resignação... Importunar-me a senhora! E por quê? por que não lhe causa tédio o infeliz que sofre e vive das suas próprias dores? Não! a senhora, que ultimamente se converteu em minha confidencial amiga, nunca será para mim uma importuna... Eu a estimo, D. Eugênia, como se foramos irmãos.

Eugênia abaixou os olhos.

— Às vezes, continuou Gabriel, tomando-lhe as mãos; quero crer que nos aproxima a simpatia do sofrimento, quero crer que nesse coração, sereno e casto, já algum dia esfuziou também a tempestade. Eu lhe tenho falado de minha vida; disse-lhe com toda a franqueza os meus infortúnios... por que não me conta a senhora os seus?... Eu os saberia compreender... Vamos! diga-me alguma cousa dos seus segredos... Seja minha amiga.

— Não! não lhe posso dizer cousa alguma...

— Não tem confiança em mim?

— Valha-me Deus! Tenho, o que não tenho são segredos... Vim procurá-lo aqui para lhe dizer que amanhã nos vamos embora... O senhor já é conhecido e estimado por minha família... apareça-nos...

— Meu Deus! como está comovida!...

— Não faça caso... Adeus...

— Adeus, disse Gabriel, colhendo um ramo de miosótis. Olhe, leve estas flores, para se lembrar de mim.

Eugênia recolheu as flores ao seio, e retirou-se pensativa e triste.

Entretanto, Ambrosina presenciava esta cena por detrás das gelosias de seu quarto.

— Miserável! disse consigo mesma, num sobressalto de ciúmes. E eu que supunha que ele só a mim amasse!...

Aquele procedimento de Gabriel a revoltava e lhe doía por dentro como a mais negra das traições.

— Correspondem-se? Pois não hão de amar-se, que o não quero eu! protestou ela de si para si.