Ultimou-se o negócio do comendador com Gabriel, e este recebeu o prometido convite para a tal quinta-feira. Haveria baile.

— É uma loucura o que vais fazer! observou-lhe Gaspar, quando o moço enfiava já a casaca. Convenho que Ambrosina seja uma interessante rapariga, convenho que seja bela, chego mesmo a concordar em que ela tenha espírito, e que a ames loucamente; digo e repito, porém, que uma menina, criada e educada pelo comendador Moscoso, não pode ser uma menina bem educada. O casamento, meu filho, depende principalmente da educação da mulher. Tu és o que se chama um bom partido; e ela, pelo que vejo, uma grande espertalhona. Não dou um mês a vocês dois para se amarrarem, e outro para te arrependeres!

— Mas, que diabo hei de fazer? Prometi ir ao baile!... Vá que cometesse com isso uma asneira, mas não é muito razoável querer remediar uma asneira com uma incorreção!... A verdade é que prometi ir. Ela, coitadinha! para obrigar o pai a convidar-me, que passos não teria dado...

— Bem se vê que tens vinte e um anos! Pois acredita nisso? Não percebes que, de todos ali, o mais interessado na tua ida é justamente o comendador, esse homem do dinheiro e da vaidade? Não percebes, Gabriel, que tu representas mil contos de réis, e que aquele velho especulador não te deixará passar impunemente por entre as unhas?!

— Não! isso não, coitado! porque ele nem sequer me conhecia!.

— Mas conhece-te agora por intermédio da filha!

— Que juízo fazes dela, então?

— O juízo que faço de qualquer menina inteligente e mal-educada.

Nisto entrou o servente com uma carta para Gabriel.

— Alguma novidade?... perguntou Gaspar ao enteado.

— É uma comunicação misteriosa...

— Cedo principiam!

— Não traz assinatura... Lê.

E passou a carta ao outro.

Era isto:

"Meu amigo. Uma pessoa, que o estima deveras, aconselha-te todas as precauções: O senhor tem um rival formidável, que irá hoje à casa do comendador e não deseja vê-lo ao lado de Ambrosina. Não vá ao baile, se quiser evitar escândalo".

— Isso foi escrito por ela!... disse o padrasto com repugnância.

— Por ela?!

— Sim; para te obrigar a ir... Quer estimular-te o orgulho. Eu, no teu caso, servia-me dessa carta como pretexto para ficar em casa...

— Mas, se a amo!...

— É o que supões; porém a verdade é que mal a conheces.

Juro-te que ...

— ... Que perdeste a cabeça defronte de uns olhos grandes, de uma boca engraçada e de uns cabelos bonitos; que te deixaste enfeitiçar pela garridice de uma rapariga viva que anda à procura de noivo rico, e supões afinal que tudo isso tem alguma importância!... Mas eu te afianço que perderás a cabeça do mesmo modo defronte de outros quaisquer olhos não menos feios, e que em breve, se te afastares de Ambrosina, te esquecerás dela para sempre.

— Duvido!

— Proponho-te uma cousa: metamo-nos num carro fechado, e vamos, antes de te apresentares no baile, espiar cá de fora os passos de tua apaixonada. Talvez colhamos disso alguns esclarecimentos.

— Está dito!

E às onze horas achavam-se os dois em caminho para a casa do comendador.

O sarau principiara às dez. Havia grande concorrência e muito luxo. Como fazia calor, dançavam somente nos sabes térreos do palacete, ao lado do jardim, com as janelas abertas, o que auxiliava à curiosidade dos dois espiões.

Ambrosina sobressaía dentre a multidão de pares como verdadeira rainha da festa. Irrepreensível de elegância e dispendiosa simplicidade, trajava um vestido inteiriço de cassa branca, cujas rendas e bordados de alto gosto pareciam beber a fria doçura das pérolas em que ela trazia agrilhoados cabelos e garganta. A justeza da roupa dizia lucidamente a flexibilidade das suas primorosas formas, fazendo destacar o contorno dos quadris, a volta das espáduas e a delineação rafaélica dos seios.

Nunca estivera tão encantadora. Gabriel não lhe tirava os olhos de cima, enquanto Gaspar bocejava ao fundo do coupé

Ambrosina vinha de vez em quando à janela, e olhava para a rua com a impaciência de quem espera alguém que se demora.

— Conta comigo! dizia Gabriel, apertando as mãos uma contra a outra.

Mas, pouco depois parou à porta do comendador um carro de gosto distinto, puxado por bons cavalos, e em seguida apeou-se um cavalheiro alto, um pouco magro, elegante, barba parisense, lunetas escuras, cabelos muito rentes.

Ambrosina, ao reconhecer o carro, estremecera.

O recém-chegado produziu sensação ao entrar no baile.

O comendador foi recebê-lo com vivo interesse, e apresentou-o logo a vários grupos. Percebia-se que o novo conviva era estranho para a maior parte das pessoas que ali estavam.

Ambrosina não voltou mais à janela.

— Era por aquele maldito sujeito que ela esperava! considerou o pobre Gabriel, cheio de agonia.

O novo personagem de resto, dera o braço à filha do comendador, e percorria as salas. Ambrosina mostrava-se radiante de satisfação.

Dançaram depois uma valsa, acabada a qual, foram ausentar-se ao terraço, conversando.

Gabriel não podia do carro ouvir o que diziam, mas pelos gestos parecia que os dois conversavam animadamente.

Alguém foi para o piano e cantou; dançou-se depois nova quadrilha, depois uma valsa. E os dois conversavam ainda no terraço.

Gabriel arquejava.

Entretanto, o belo par de Ambrosina levantou-se, e conduziu pelo braço a sua dama para o jardim.

Gabriel espichou o pescoço, e viu afastarem-se os dois, a passo descansado, por entre as árvores frouxamente tocadas de luz. Havia iluminação em torno das estátuas e dos floridos canteiros.

O venturoso par ia desaparecendo cada vez mais.

Só Gabriel percebia ainda, de vez em quando, o vulto indeciso de Ambrosina, que alvejava por entre as moitas de roseiras.

Não se pôde conter por mais tempo; apeou-se do carro, com a necessária cautela para não acordar o padrasto que dormia sobre as almofadas, e daí a pouco penetrava no jardim do comendador por um portão que havia aos fundos da casa.

Ambrosina assentara-se afinal com o seu invejado par debaixo de um caramanchão; Gabriel, donde estava podia observá-los à vontade.

Falavam de amor os dois. Ela enlevada, e ele cheio de entusiasmo; o casamento entrava na conversação como assunto já resolvido.

— És minha vida! dizia o rapaz; és toda a minha esperança! Ardia por tornar a ver-te!

— Leonardo! murmurou Ambrosina. Olha que nos podem ouvir, meu amor...

— E a mim que importa? Não tenciono porventura ligar o meu destino ao teu? Não és quase minha esposa, ou mudarias tu de intenção durante a nossa ausência?

— Bem sabes que não, mas é que ainda somos apenas noivos, e tu me perturbas com essas palavras!...

— Não me recrimines, amada de minh’alma! Há tanto tempo que não estávamos a sós!... deixa que aproveite estes fugitivos instantes para te falar de nossa felicidade.

E Leonardo, puxando para si Ambrosina, passou-lhe o braço na cintura.

Ouviu-se em seguida estalar um beijo. Um? não; era a harmonia de dois: o dele e o dela.

Gabriel, com um doido arranco, afastou a moita de roseiras que lhe ficava em frente, e de chofre se precipitou entre ambos.

— Miseráveis! exclamou.

Houve nos dois amantes um espasmo de surpresa. Ambrosina em seguida soltou um grito, fugiu para a sala.

— Quem é o senhor?! perguntou Leonardo, medindo.

— Sou o homem que ama aquela mulher! respondeu este, pálido de raiva.

— O homem não: a criança! Já tinha noticias suas. Chama-se Gabriel, é rico, deseja casar com Ambrosina e...

— E não meço obstáculos quando quero realizar qualquer cousa!

— Bem; mas nada disso o habilita para dizer-me insolências. Chamo-me Leonardo Pires de Andrade, há muito amo Ambrosina; não sou tão rico como o senhor, mas antes de partir nesta minha última viagem, fui autorizado a pedi-la em casamento. O comendador cedeu-ma ontem...

— É falso!

— Contenha-se! O senhor está fora de si. Ambrosina já me tinha prevenido dos seus rompantes...

— Senhor!

E Gabriel deu um passo para o outro.

— Ela não o quer, continuou Leonardo; disse-me com franqueza. A mim, como homem de juízo cabe-me, todavia, evitar qualquer conseqüência má do passo imprudente que o senhor acaba de dar. No fim de contas, não tenho obrigação de explicar as minhas intenções; elas são conhecidas já da família de minha noiva. É a essa família que o senhor se deve dirigir para denunciar o que acabou de colher da sua espionagem. Boa noite, meu caro senhor!

E, dizendo isto, Leonardo afastou-se rapidamente.

Gabriel voltou ao carro, e entre soluços de dor e de cólera contou a Gaspar o ocorrido.

— Nada disso me surpreende. Era caso previsto. Creio que agora mudaste de intenção a respeito de Ambrosina...

— Amo-a cada vez mais!

— Ora! isso já passa de loucura!

— Talvez, mas é a verdade!

No dia seguinte, Gabriel leu, por um prisma de lágrimas, a participação do casamento de Ambrosina, que ela própria lhe remetera.

Seria efetuado daí a dois meses, fora da cidade.