Ambrosina e Laura, chegadas à Bahia, hospedaram-se no hotel Figueiredo. Daí colheram informações sobre a cidade e seus costumes, e logo depois se achavam instaladas na Barra em uma casinha alugada com os móveis.
Levaram uma vida especial as duas belas fugitivas, à qual os sobressaltos e as apreensões emprestavam um capitoso encanto de aventura romanesca. Inteiramente desconhecidas, concentravam só em si toda a atividade dos seus instintos e toda a mórbida curiosidade dos seus sentidos. Laura deixava-se dominar em absoluto pela companheira, não tinha vontade própria, nunca fazia uma objeção aos reclamos de Ambrosina, que em compensação não desdenhava meios de proporcionar à amiga tudo que lhe pudesse trazer alegria, propondo-lhe divertimentos na cidade, excursões ao campo, e oferecendo-lhe jóias, modas e dinheiro.
Laura, porém, começava a enfraquecer. O seu lindo corpo delgado, e outrora tão roliço, principiava a denunciar sinistros ângulos. A pele ia se tornando mais transparente, descorada e seca, os lábios menos vermelhos, as mãos úmidas. De toda ela se desprendia um ar melancólico de sofrimento e resignação, tinha agora o andar vagaroso e os movimentos demorados. Ficava horas perdidas a olhar abstratamente para o espaço, boca ansiosa, respiração convulsa, braços esquecidos.
Dir-se-ia que toda a sua atividade nervosa se lhe havia refugiado nos olhos. Esses, sim, eram agora mais vivos e pareciam maiores na roxa moldura das pálpebras.
Ambrosina, às vezes, a surpreendia nesses êxtases.
— Que tens tu, minha vida?... perguntava-lhe com meiguice; por que ficas assim, a olhar a toa, como quem deixou longe o coração?... Fala, meu amor! conta à tua amiguinha qual a mágoa que te oprime! O que te falta?
— Não era nada!... dizia a outra, entre sorrindo e suspirando. Nervoso...
Ambrosina ralhava.
— Não a queria ver assim triste!... Era preciso ter juizinho!
À mesa, que champanha! Laura torcia o nariz aos pratos e queixava-se de falta de apetite. A companheira fazia então milagres de ternura, afagava-lhe os cabelos! batia-lhe com o dedo na polpa do queixo, e começava a falar-lhe com voz de criança:
— Bebê não faz a vontadinha de Ambrosina?... Ambrosina fica triste!
E Laura, já a rir, tomava nos dentes o bocado que a outra lhe levava à boca.
Assim passaram quase um mês na Bahia. O paquete, que as devia levar para Europa, era esperado dai a quatro dias. As duas viviam a sonhar com Paris.
À tarde, depois do jantar, quando não davam uma volta pelo Passeio Público, ficavam a ler, estendidas no divã.
Estas leituras entravam pela noite Vinha a criada acender o lustre, e as duas amigas permaneciam juntinhas ao lado uma da outra, como duas rolas no mesmo ninho.
Era quase sempre Ambrosina quem lia em voz alta. Laura escutava religiosamente.
Uma tarde, o sol já se havia escondido e a dúbia claridade que precede o crespúsculo da noite entrava pela janela e derramava-se triste no amoroso silêncio da alcova; uma nesga do céu aparecia, lá ao longe, afogada nos últimos resplendores do dia, e um ar morno e pesado agitava preguiçosamente a renda das cortinas; as duas raparigas achavam-se, mais que nunca, empenhadas na leitura. Era um romance de Theophile Gautier, traduzido por Salvador de Mendonça, "Mademoiselle de Maupiu".
Estavam na cena do jardim, e a voz de Ambrosina, muito sonora e levemente comovida, dizia bem e com justeza as frases apaixonadas do grande boêmio fantasista. Mais parecia ela discursar que proceder a uma simples leitura; a expressão, o sentimento, o calor, que punha nas palavras, as faziam suas, ditas e pensadas, ali, na inspiração, voluptuosa e confidencial daquela intimidade.
Laura, de olhos fechados, lábios trementes, corpo abandonado sobre o divã, parecia enlevada num idílio místico. E a noite caía sobre elas como um véu protetor.
Em breve, já não podiam ler. O livro desabara sobre o tapete.
Laura estorceu-se então numa agonia mortal, abraçando-se à companheira, e abriu a soluçar histericamente.
Era um chorar louco, apaixonado, febril.
Ambrosina, sem compreender semelhante crise, procurava inutilmente estancar as lágrimas da pobre moça.
Entretanto, abriu-se a porta do interior da casa, e a criada apareceu, dizendo que um homem procurava por D. Ambrosina Moscoso.
— Um homem?! exclamou esta, erguendo-se espantada.
— Diz que da parte da justiça... explicou a criada, hesitante.
Ambrosina sentiu uma pontada no coração.
Laura correu para dentro, e a outra, logo que recuperou o sangue frio, perguntou à mucama que espécie de gente a procurava.
— É um moço magro, cara lisa, um sinal de bigode, bem vestido.
— Louro?!
— Não senhora.
— Ah! Respiro!
E, tomando uma resolução:
— Que entre, para a sala.
O sujeito era Melo Rosa, que se fez reconhecer desde o corredor com a sua alegria espalhafateira e artificial.
— Ora, finalmente! gritou ele com uma gargalhada, quando se achou defronte de Ambrosina. Não contavas com esta surpresa, hem, minha bela espertalhona?
— Confesso que não, e até mais, que ela depõe largamente contra o seu espírito!...
— Isso agora é que é de mau gosto, e não parece vir de ti. Concordo em que não estimes a minha visita, mas não em que o declares! E a primeira vez que te vejo denunciar pela fisionomia uma contrariedade...
E dizendo isto, o Meio se havia instalado comodamente em uma cadeira de braços. Ambrosina, assentada defronte dele, inspecionava-lhe a cor das meias, o feitio do casaco e a extravagância da gravata. — Onde teria aquele tipo arranjado dinheiro para embonecar-se daquele modo?... dizia ela consigo.
— Mas, enfim?... perguntou. Qual é o motivo da sua visita? o que o traz aqui?
— Pois não percebeste ainda?
— Juro que não.
— Estás a fazer-te esquerda, meu amor!
— É birra!
— Mas, que diabo! não percebeste, filha, que fui logrado por ti e procuro chamar a mim o que me pertence de direito? Olha que sempre me obrigas a umas franquezas!...
— Pois ainda o não entendi... Explique-se!
— Mas, como não entendeste?.
— Decerto! sei que o senhor quis defraudar em certa quantia o homem com quem eu estava, e eu não consenti... Aí tem o que sei!
— Perdão; não é isso o que tu sabes! O que tu sabes é que nós combinamos os dois passar a perna ao Gabriel em vinte contos de réis, e pôr-nos ao fresco, deixando o pato com cara de tolo! Queres franqueza, toma! Ora, tu sozinha não darias conta da marosca e solicitaste o meu concurso. Eu formei o plano do ataque, e os resultados foram excelentes; apenas, em vez de ser para nós ambos, foram unicamente para ti....
— E daí?...
— Daí é que não estou absolutamente disposto a deixar-me lograr! Quero a minha parte!
— Quem rouba a ladrão...
— Terá os anos de perdão que quiseres; mas, ou divides o bolo comigo, ou vou daqui mesmo denunciar-te à polícia, e corto-te todos os vôos... Escolhe!
— Ora, vá pentear monos! disse Ambrosina, erguendo-se e afetando serenidade.
— Ah! não queres? Pois fica então sabendo que estás presa.
— Ora, moço, outro ofício!
— Zombas, hem? Pois já devias saber que sou empregado secreto da polícia!...
— Devia tê-lo desconfiado, isso é verdade!
— Mas, enfim? Ainda uma vez: Queres?!
— Não!
E Ambrosina acompanhou com surpresa os movimentos de Melo Rosa.
Ele ergueu-se, foi até à janela e fez sinal para a rua.
— O que significa isto?!
— Saberás depois... A autoridade competente te dirá!
— Olha que peste!
— Filha, é o mundo! Vais comparecer em presença do chefe de polícia!
Ambrosina, que correra à janela, viu espantada três praças lhe invadirem a casa.
— Mas, você é muito ordinário! exclamou ela com os dentes cerrados.
— Podes bramar à vontade!
— Um canalha! um valdevinos! um gatuno!
— Dize o que quiseres! Só me não podes chamar uma cousa, que é o que tu és!
E disse o nome.
Ambrosina estremeceu até à raiz dos cabelos. Olhou de frente para o Melo, e teve ímpetos de matá-lo; mas um rumor na escada a pôs em sobressalto. Os soldados iam penetrar na sala.
Com a subida dos praças, Laura acudiu de dentro e atirou-se aflita nos braços da amiga.
Ambas romperam em soluços.
— Ah! Ah! já quebraram de força? Pois é aviar, que tenho mais que fazer!
— Mas, o que quer você que lhe faça, homem dos diabos?!
— Ora, filha! quero que me entregues a metade do que nos pertence!
— É melhor! aconselhou Laura. Dá-lhe a metade
— Mas é que já não tenho senão metade!... se a der, fico em completa miséria! Paguei dividas no Rio!...
Melo sorriu incredulamente.
— É um pouco dura a pílula! resmungou ele; mas, enfim, sujeito-me a um descontozinho...
— Dou-lhe cinco contos de réis!
— Ora, vê bem se tenho algum T na testa!
— Pois é se quiser! Dou cinco! Se não quiser, proceda como entender!
E chegou-se para a porta da sala.
— O camaradas! chamou ela.
— Os soldados mexeram-se no corredor, como uma ninhada de bichos.
— Entrem para cá!
— Você o que vai fazer? perguntou o Melo.
— Entregar-me... Já lhe disse que não posso dar mais de cinco contos de réis... Estou resolvida a deixar-me prender!
E gritou para o corredor:
— Esperem aí, camaradas!
Ambrosina entregou-lhe cinco contos de réis.
— Bem, dá-me as tuas ordens!...
— Adeus, disse ela.
— Pergunta-lhe por meu pai, recomendou Laura.
Melo parou na porta e disse hesitando:
— Seu pai... morreu... minha menina. Boa noite!