Entretanto, Gabriel na Corte levava por esse tempo a vida mais estúpida e ociosa que se pode imaginar. O infeliz atirou-se à desordem dos prazeres brutais como um soldado perdido se lança ao fogo do inimigo.

Nessa inglória batalha o sangue que derramava era o dinheiro, derramava-o a jorros, indiferentemente, alheio às ávidas e obscuras bocas que o sugavam. E semelhante conduta encheu-o logo, está claro, de falsos amigos, que rebentaram em torno da sua dissipação, com a gulosa espontaneidade de fungões inúteis e venenosos.

Difícil seria precisar o perfil de todas essas sombras libertinas; eram indivíduos sem caráter próprio, e sem o mais ligeiro traço original por onde pudessem ser distinguidos. Todo o cabedal das suas habilitações consistia em saberem fumar, beber, jogar e femear como ninguém. Para se não se dizerem vagabundos e filantes, intitulavam-se boêmios, profanando esse poético nome, tão consagrado no meio artístico pela revolta do talento incompreendido ou ainda não vitorioso. Boêmios! como se fosse possível conceber a idéia de boêmia, sem a idéia de sacrifício e de pungente esforço na conquista do ideal e do belo!

Gabriel, coitado, bastante repugnância sentia da nova lama em que se chafurdava agora, mas. não tinha ânimo de romper com ela, porque só nela conseguia atordoar-se um pouco contra os últimos desastres do seu maldito amor. Em menos de dois meses era já conhecido e tuteado em todos os restaurantes ruidosos, em todas as casa de jogo forte, clubes carnavalescos e caixas de teatro. Em torno do seu desperdício ardia em perene incensação esse risinho açucarado e servil, que o prestígio do dinheiro acende no rosto dos exploradores de todos os matizes, desde o grave e condecorado mercador comercial, até à delambida rameira de preço fixo e rótula franca.

As suas pândegas repetiam-se cada vez mais violentas e com mais estrondo. Depois de uma ceia no "Fréres Provençaux", em que ele se viu em estado de não poder ir para casa, tomou aposentos nesse hotel, guardando a seu lado por companheira de desregramento, a mulher que o acaso lhe deu àquela noite, a Rita Beijoca, uma loura vinte anos mais velha que a mesma devassidão; e daí, para o mísero Gabriel, essa deplorável existência cor de goivo e cheirando a morte, bem conhecida de alguns moços ricos do Rio de Janeiro — acordar à uma da tarde, fazer duas de toilette e outras tantas de Rua do Ouvidor, vermutear até ao momento de se abrir na távola predileta a primeira banca de roleta, jantar às horas da ceia, e cear depois da meia-noite.

A ausência de Gaspar favorecia toda essa desgraça. Pelo carnaval, ao domingo gordo, reuniram-se, entre outros, nos aposentos de Gabriel, dois legítimos espécimes daqueles cogumelos de que há pouco falamos — o Costa Mendonça e o Juca Paiva, dois belos rapagões, que ninguém sabia donde tiravam os cabritos que vendiam.

O Costa era bonito e perfumado, tresandando a mulheres; jóias caras, roupa bem feita. Tornara-se falado no seu meio por certas famosas surras que de vez em quando lhe arrumava; em crise de ciúme, a sujeita a quem ele de corpo e alma pertencia desde os seus primeiros passos na vida da pândega fluminense, uma tal Aninha Rabicho, célebre entre os libertinos dos dois sexos por ser proprietária de um prédio e cinco escravos, adquiridos com o produto das suas gloriosas economias.

O outro cogumelo, o Paiva, tinha o ar mais sério e a roupa menos apurada. Nascera de pais abastados, que lhe deixaram uma medíocre fortuna e uma rara ignorância. A fortuna comeu-a ele logo que se emancipou, a outra, porém, é que se não deixou tragar assim tão facilmente, e a cada nova aurora reflorescia mais grimpadora e viçosa. Diziam dele, entretanto, que, para embaricar um bom cágado num lasquenetezinho bancado, não havia no Rio de Janeiro mão mais limpa, nem mais lúcida cultura.

Depois do ardente desfilar das sociedades carnavalescas, seguiram os três e mais Rita Beijoca para o hotel dos Príncipes, onde a bela crápula fervia de portas adentro num inferno de guinchos e risadas em falsete.

O Barros, que era o gerente do hotel, mal os viu entrar, levantou-se a recebê-los com tal risinho açucarado, e mandou pela surrelfa chamar lá em cima, com urgência, a Rosa Cantagalense.

A Rosa Cantagalense, apesar de simples hóspede no hotel, podia a justo título dizer-se o braço direito do Barros, e tinha por isso, sobre as despesas extraordinárias a que obrigasse os fregueses de boa lá, certa percentagem que lhe era abatida nas próprias contas. Entre as muitas e variadíssimas tosquiadoras do principesco estabelecimento, era ela a única deveras perfeita naquele agronômico e astucioso trabalhinho, a única que sabia a primor tosar uma desgarrada ovelha, sem que desse por tal a paciente, enquanto não estivesse de todo tosquiada.

A Cantagalense não desceu ao chamado do gerente; mando dizer que: "Ainda estava ocupada a despachar o mineiro..."

O Barros subiu logo de carreira a ter com ela.

Veio a loureira falar-lhe à porta do quarto, em meias e roupão de alcova:

— É preciso esperar mais um pouco, segredou, a piscar o olho, no ardiloso tom que as regateironas põem nas suas palavras quando tratam de negócio. Agora é que ele está pegando no sono...

— Fizeste-o gastar mais alguma cousa no quarto?... perguntou o Barros com interesse.

— Fiz, respondeu a outra; creio que ele não deixará menos de uns duzentos mil-réis...

— Bem; mas, avia-te daí, que és necessária lá embaixo. O Gabriel chegou já, e vem de troça! Estão todos meios prontos.

— Eles que se vão servindo; eu já desço!

O mineiro, que se achava recolhido ao quarto do hotel dos Príncipes, havia chegado esse mesmo dia de Minas, com intenção de assistir pacificamente às festas do carnaval do Rio.

Às três e meia da tarde sentiu vontade de jantar, e a desgraça o levou ao hotel dos Príncipes.

O mineiro comeu com apetite e achou até muito bom o que lhe serviram. Mas, enquanto comia, reparou que, de certa mesa, uma mulher bonitona olhava para ele com meiga insistência

Era a Cantagalense, que nessa ocasião acabava de almoçar.

O mineiro não se preocupou com isso, e continuou a atacar as vitualhas com uma considerável energia e um silêncio mais solene.

À sobremesa, porém, a tentadora já havia levantado, e viera assentar-se à mesa imediata à do nosso mineiro.

O bom homem fez-se da cor de uns marmelos em calda que nessa ocasião triturava, e só conseguiu levantar os olhos ao fim de alguns segundos.

— A senhora é servida?... perguntou ele no gracioso sotaque da sua província.

A loureira agradeceu e, com tal mimo lhe pediu que aceitasse um taça do seu vinho, que o amimado não resistiu ao convite.

Para não ficar atrás, fez vir champanha. A moça então por sua conta e risco pediu uma salada de ananás cozido em madeira, um pudim negro e borgonha para destemperar o cliquot. Depois vieram charutos, cigarrilhos café e licores.

Daí a nada, o mineiro recebia uma ardente declaração de amor e correspondia contando francamente a sua vida e os seus negócios.

É inútil dizer que em seguida a isso as cousas foram muito longe, e que a dourada mosca, uma vez prisioneira nas teias da ardilosa aranha, tinha de ser chuchadinha até a última gota de sangue.

O jantar de Gabriel, a que a sugadora do mineiro não faltou do meio para o fim, correu com todas as suas costumadas pândegas; pouco apetite, muita chalaça tola, muito riso forçado e grande variedade de vinhos. Às duas da madrugada, a Cantagalense deixou-se ficar no hotel, e os outros foram carnavalear um pouco aos "Tenentes do Diabo".

Às quatro meteram-se de novo no carro, e mandaram tocar para a Tijuca, no meio de uma terrível gritaria.

O Costa Mendonça, que ocupava o banco da frente com o Paiva, parecia ter pólvora no sangue e não ficava quieto um só instante.

A Rita Beijoca achava-lhe tanta graça, que chegava a chorar à força de gargalhadas.

Gabriel, meio deitado sobre ela, divertia-se em afagar-lhe o queixo.

— Olha que me sufocas! observou a folgazã, tomando respiração com mais força. Não é assim tão levezinho que se possa levar ao colo! Põe-te direito!

Mas Gabriel, prostrado de fadiga, fazia ouvidos de mercador. A Beijoca resignou-se a procurar por si posição menos incômoda.

Mendonça calara-se afinal, e a viagem começava a tomar um caráter triste; agora só se ouvia de quando em quando a voz grossa do cocheiro, que arriscava a sua pilhéria para o carro.

Ia se tornando aquilo aborrecido.

— Champanha! gritou Juca, fazendo saltar a rolha de uma garrafa. Vem aí o dia! é preciso brindá-lo!

Encheram-se as taças. A Rita, com o Gabriel ao colo, derramava-lhe o vinho na boca como se desse de beber a um pássaro. Ele, todo derreado, sorvia o líquido, indiferentemente. Costa Mendonça, que se queixava de suores frios, vomitava nessa ocasião, amparado pelo cocheiro. A sujeita e o Juca fingiam beber. Parecia haver entre os dois qualquer tácito concerto.

— Ah! agora sou outro homem! exclamou Mendonça, erguendo-se, com o rosto sumamente lívido. Posso recomeçar... disse ele em tom sinistro.

E emborcou uma taça de vinho.

— Eu também sou filho de Deus! lembrou o cocheiro, vendo que lhe não ofereciam de beber.

Passaram-lhe uma garrafa.

Mendonça havia criado novo ânimo, mas foi por pouco tempo; dentro de meia hora caiu prostrado sobre as almofadas. A rapariga então, ajudada pelo Juca, pousou Gabriel sobre ele, deixando-os que dormissem à vontade, e em seguida, voltou-se para o outro e pegaram-se a beijos.

Entraram no campo. De todos os lados surgiam as árvores banhadas pelos primeiros raios de sol; os pássaros principiavam a cantar, e a natureza parecia ir pouco a pouco despertando de um sono grato e consolador.

Juca e a rapariga não trocavam palavra. Devorador pela insônia, entorpecidos pelo álcool, pareciam cumprir ali um destino de condenados.

Rasgou-se a aurora, inundando de luz os caminhos orvalhados pela noite.

— Gabriel! Mendonça! exclamou Juca, sacudindo os companheiros. Acordam! Aí está o dia!

Os dois apenas resmungaram.

— Agora o que sabia era um gole de café quente observou a Rita, vendo que o cocheiro abria uma nova garrafa.

— Pois descanse! Ali mais adiante teremos café, disse ele, apontando para uma casinha ao longe.

A rolha da garrafa saltou com estrondo.

Mendonça abriu os olhos.

— Acorda, homem! vamos brindar o sol!

Gabriel foi arrancado do sono à pura força. Distribuíram-se novamente as taças.

— Hurra! gritou Juca levantando o braço. E os outros três responderam clamorosamente, a prolongar os hurras com bocejos.

O repousado aspecto da natureza contrastava com a feição dissoluta daquela libertinagem ao ar livre.

O carro havia parado, e o cocheiro apeara-se para ir buscar o café. Estavam perto da raiz da serra, numa encosta em que velhas árvores tranqüilas pareciam reunidas em concílio para uma deliberação religiosa. Juca descera do carro e passeava pela relva; Mendonça, de taça em punho, cantava um copia de opereta bufa; a sujeita acompanhava-o com uma pobre voz de falsete, e Gabriel, sombrio, assentado ao fundo do carro, com a vista embaciada, entretinha-se a olhar fixamente para um grupo que a pouca distância havia parado no caminho.

A cabeça andava-lhe à roda.

Depois de pequena pausa, o grupo continuou a andar, subindo a estrada em tardio e pesado passo.

Gabriel pôde então distinguir melhor de que o grupo se compunha. Era sem dúvida algum enfermo acompanhado pela família, que demandava a serra da Tijuca em busca de ar puro. Vinha na frente uma cadeirinha carregada à moda antiga por dois negros, guardava-lhe a portinhola um homem idoso acabrunhado pela dor, e logo atrás uma velha carruagem de aluguel com a cúpula fechada.

O grupo parou de novo quase defronte do carros dos folgazões.

Mendonça e a loureira calaram-se instintivamente, Gabriel ergueu-se sobressaltado; através das sombras da sua embriaguez, lhe pareceu haver reconhecido aquele homem que guardava a porta do palanquim, e por ele podia calcular com segurança quem era a infeliz criatura que ia ali enferma ou talvez moribunda. O coração saltou-lhe por dentro, na medrosa previsão de remorsos e íntimas vergonhas.

Os negros depuseram no chão a cadeirinha; desviaram dos varais os ombros ratigados, e afastaram-se para descansar um instante.

Moveu-se então a cortina da portinhola; débil mãozinha arredou-a de dentro com dificuldade, e uma feminil cabeça loura surgiu à luz dourada da manhã. No seu rosto, mais pálido que o de uma santa de cera, fulguravam-lhe os olhos com estranho brilho.

E esses olhos deram com os olhos que a fitavam do outro grupo, cintilaram mais forte, num relâmpago seguido de um grito, que a cortina do palanquim abafou logo.

Era de Eugênia.

Gabriel caiu sobre as almofadas do carro, a soluçar, enquanto os companheiros davam vivas ao cocheiro que chegava com o café.

Eugênia, depois que Gabriel se ausentou totalmente da casa dela, ia contando os dias pelos progressos da mágoa que a devorava. A melindrosa suscetibilidade do seu frágil organismo exigia, para o milagre da vida o milagre do amor.

Como toda a moça casta, sem o brilhante prestígio do ouro ou da beleza, fora sempre concentrada e retraída. Não dividia com outros os seus tímidos desgostos de donzela e as suas humildes decepções de menina pobre. Um como íntimo recato de orgulhosa fraqueza, associado ao pudor da sua imaculada inferioridade e ao decoro da sua virtude inútil, a faziam reprimir os soluços diante da família e das amigas, recalcando em segredo as lágrimas vencidas, que lhe subiam do coração e para o coração voltavam, sem que ninguém as visse ou enxugasse.

Nunca lhe ouviram a sombra de uma queixa. Todavia, na sua angelical credulidade, chegara a crer houvesse, no círculo ginástico da vida, alguma cousa entre os homens que não fosse egoísmo só e vaidade; chegou, pobre inocente! a supor que o fato de ser meiga, dócil, virtuosa e pura, lhe valeria o amor do moço pelo seu coração eleito; e, uma vez desiludida, a sua feminilidade, em lugar de expandir em flor o aroma dos vinte anos, fechou-se em botão para nunca mais rescender, vencida, como foram vencidas as suas lágrimas.

E também nunca mais lhe voltavam às faces as rosas, que a natureza aí lhe tinha posto, para atrair as asas dos beijos amorosos; nem aos olhos tampouco lhe voltaram as alegrias, com que dantes esperavam sorrindo o "Amo-te" sagrado.

Enfermou de todo. Afinal, a sua existência era já um caminhar seguro para a morte. O pai estalava de desespero, sentindo fugir-lhe irremissivelmente aquela vida estremecida, pouco a pouco, como um perfume que se evapora. Ela sorria, resignada. Estava cada vez mais abati da, mais fraca; parecia alimentar-se só com a muda preocupação da sua mágoa sem consolo. O pai levou-a a princípio para Santa Teresa, depois para o caminho da Tijuca, o médico, porém, à proporção que a moléstia subia, ordenou que fossem também subindo sempre, em busca da ares mais puros.

E lá iam eles, como um bando de foragidos, a fugir da morte. Só a doente parecia conformada com a situação, os mais se maldiziam e choravam. Ela sorria sempre, sempre triste, com o rosto levemente inclinado sobre o ombro.

Já quase se não distinguiam as suas falas, e só pelos olhos verdadeiramente se exprimia, que esses, como a estrelas, cada vez mais se acendiam à proporção que as trevas se aproximavam.

Às vezes, nem que pretendesse desabituar-se de viver, fugia para um profundo cismar, de que só a custo desmergulhava estremunhada. Pedia nesses momentos que lhe abrissem a janela do quarto, e o seu olhar voava logo para o azul, como mensageiro da sua alma, que também não tardaria, com o mesmo destino, a desferir o vôo.

— Ao amor! Ao prazer! Hurra! blasfemou o eco à fralda da serra da Tijuca.

E o carro dos libertinos sumiu-se na primeira dobra da estrada.

O campo recaiu na sua concentração

A cadeirinha continuava no ponto em que a depuseram. O sol, ainda brando, derramava-se como uma bênção de amor, e nuvens de tênue fumo brancacento desfiavam-se no espaço, subindo dos vales como de um incensório religioso. O céu tinha uma consoladora transparência em que se lhe via a alma, pássaros cantavam em torno da tranqüila moribunda, ouvia-se o marulhar choroso das cascatas, a súplica dos ventos, a prece matinal dos ninhos. Toda a natureza parecia em oração.

A moça pediu que lhe abrissem a porta do palanquim e, reclinada sobre o colo do pai, fitou o espaço com o seu olhar de turquesa úmida. O azul do céu compreendeu o azul daqueles olhos celestiais. Houve entre eles um idílio mudo e supremo.

Ninguém em torno dava uma palavra, só se ouviam os murmúrios da mata, acordando ao sol, e os esgarçados ecos da música dos Meninos Desvalidos, que para além da serra tocava alvorada. A moça continuou a olhar para o azul, como se se deixasse arrebatar lentamente pelos olhos. Encarou longo e longo tempo o espaço, sem pestanejar. Depois duas lágrimas lhe apontaram nas pálpebras imóveis e foram descendo silenciosas pela palidez das faces.

Um sorriso que já não era da terra pairou um instante à superfície dos seus lábios puros.

Estava morta.