Três dias depois já estavam instalados no segundo andar da casa da rua Formosa, com independência e ordem.
A sala, recebendo luz por duas largas janelas da frente e por uma outra que abria sobre o telhado vizinho, era clara e alegre, com um papel idílico reproduzindo, de alto a baixo, nas quatro faces, o encontro de amor de um pajem e de uma dama entre ramos de árvores sangüíneas, à beira de uma lagoa muito azul onde nadava um cisne, tudo isso sobre um fundo de campos perdidos com uma choupana e rebanhos. Era romântico.
Ruy Vaz e Anselmo tomaram a sala; Toledo, concentrado e casmurro, escolhendo a alcova recôndita da sala de jantar, arranjara, diante da cama esguia, a sua mesa de trabalho, sóbria e honesta, com os seus graves compêndios de Anatomia, vários ossos, um castiçal de louça, o tinteiro, o pote de fumo e, na parede caiada, muito juntos, os retratos do pai e da mãe encimados por uma gravura na qual se via Beethoven, de olhos extasiados, sonhando entre pautas e anjos com harpas e flautas, a face na mãao, o cotovelo sobre o teclado de um órgão.
A sala tinha aspecto. As duas mesas, fronteiriças, um canapé, repousando sobre surrado tapete onde havia estampada uma cena de serralho, a estante alta, de Anselmo, atochada de livros, duas outras de Ruy Vaz numa desordem de brochuras de vários tamanhos, quatro cadeiras e, ao centro, larga e convidativa cadeira de balanço com estribo para os pés.
A Barricada teve o lugar de honra na parede entre dois originais preciosos representando um burgo-mestre e um pescador, telas que o romancista, com muito acatamento, atribuía a Rembrandt pelo tom obscuro que cercava as cabeças serenas dos flamengos. E um velho relógio acompanhava o trabalho com o seu tic-tac monótono, quando não caía em silêncio à falta de corda.
Falou-se em uma empanada para as janelas a fim de que a luz não entrasse tão vívida na sala, mas razões fortes de ordem econômica fizeram com que desistissem de tal idéia. Na alcova emparelhavam-se duas camas e, entre elas, o lavatório de vinhático, uma maravilha! Na sala de jantar a mesa de pinho solitária e lustrosa. À hora das refeições cada qual tomava a sua cadeira e levava-a de rastos pelo corredor, onde havia um socavão para jornais e ratos.
Dona Ana dirigia a casa ajudada pela filha: Vidinha, morena de dezessete anos, de olhos negros amendoados, cabelos fartos, sempre soltos, rolando pelos ombros até ao colo muito rijo, e pelas costas, chegando à cinta delgada; era a alegria da casa.
O Lins dava-lhe a alcunha expressiva de Míle. Cotovia, porque eram as suas gargalhadas que despertavam os rapazes.
Leonor, negrinha esgalgada, espevitada e zarelha, de colo murcho; órfã, trazida de um recolhimento e João, o filho mais novo da viúva, rapazelho sardento, muito obsceno de linguagem, que trazia a casa em constante alvoroço respondendo à mãe com insultos, atirando-se à irmã às dentadas, numa ferocidade canina, perseguindo a negrinha indecorosamente.
Às vezes traziam-no à casa ensangüentado e imundo das brigas que tivera na rua. Andava sempre armado com um velho canivete que escondia no papo da camisa e descalço, cigarro nos beiços, abalava em farândolas para as praças, para os morros, numa vida devassa e vadia.
Se a mãe o prendia ficava a fazer exercícios de capoeiragem no corredor, cantando dobrados, a gingar, como fazia à frente dos batalhões, com uma gíria sórdida e gestos desempenados. A velha, entanto, trazia a casa asseada. Ela própria, descalça, com as saias arregaçadas, os braços nus, esfregava o soalho; a negrinha, trepada em uma escada, lavava as vidraças. Vidinha cuidava da louça e trabalhava com disposição, contanto que, à tarde, à hora em que tirava os papelotes e vestia os seus casacos enfeitados, a mãe a deixasse debruçada à janela, muito lânguida e faceira, trocando sinais com um amanuense da vizinhança, moreno, de óculos, o rosto picado de bexigas. Tinha fama no quarteirão e, à noite, grupos de rapazes postavam-se na calçada fronteira e, escandalosamente, atiravam beijos, mas Vidinha, para não perder o amanuense, batia com a janela, numa indignação pudica e rompia em impropérios, às vezes atirava cusparadas desprezíveis, mandava o João correr à pedra os galanteadores ou chamava Dona Ana que surgia à sacada iracunda, mostrando vassouras, ameaçando desancar o bando, cobrindo-o de insultos vis e subia ao segundo andar, esbaforida e colérica, para pedir aos rapazes uma reclamação nos jornais contra aquela calaçaria para que um dia ela se não deitasse a perder, quebrando a pau a costela de um daqueles desavergonhados.
A vida entre os rapazes corria tranqüila e farta. As refeições, a tempo e abundantes, eram gabadas sem reserva pelos inquilinos do segundo andar. Terrinas imensas de sopa, pratarrazes de carne: o arroz sempre corado, subia num alguidar; o assado era uma posta solene e ainda verdejavam saladas e frutas. O café recendente era saboreado no mirante, à fresca.
Era Leonor quem servia à mesa muito delambida, fugindo aos beliscões, posto que andasse sempre a esfregar nos rapazes o seu corpo magro de efebo, tresandando à cozinha. Ao menor aceno, porém, ameaçava:
— Não brinca! Eu me queixo ao juiz de orfe... Veje lá... E saía, com uma pilha de pratos, chuchurreando muxoxos.
Podia-se trabalhar folgadamente posto que, à distância de alguns passos, noite e dia, andassem locomotivas em manobra: trens que chegavam, trens que partiam e as velhas máquinas manobreiras, como cuidadosas donas de casa, indo e vindo, esbaforidas, dispondo os comboios que deviam subir para os subúrbios ou, em mais estirada corrida, para além das serras.
Carroções enormes, carregados, passavam pela rua rangendo, aos solavancos sobre as pedras mal dispostas; às vezes caíam em covas, as rodas chafurdavam, ficavam engasgadas nos buracos e os cocheiros, saltando das boléias, frenéticos, bradando, atiravam chicotadas aos animais que, sangrando, aos arrancos, tentavam safar o veículo sobrecarregado enquanto homens aos urros, agarrados aos raios das rodas, ajudavam com esforço.
Ao lado, numa oficina de carros, ressoavam malhos. Em frente, certa menina ruiva e vesga, muito serelepe, da manhã à noite martirizava inexoravelmente um piano fanho. Eram pregões de quitandeiros, alarido de mulheres e burburinho de farândolas. Por vezes gritos intercadentes confirmavam as atoardas de um crime: história de uma louca que estortegava, esbravejava em fúria seqüestrada em cárcere privado.
À tarde o rumor crescia: trens corriam abarrotados, caminhões vazios iam aos trancos, com estridor de ferragens; bondinhos passavam cheios. Os rapazes refugiavam-se no mirante e, sob a doçura do céu azul, onde a luz esmaecia, fumavam, conversavam, espairecendo os olhos por aqueles telhados vermelhos, vendo, à distância, a massa de verdura do parque da Aclamação, o grande quadrilátero do quartel e torres de igrejas, o zimbório da Candelária e os morros esmaltados de casas, alvas no verdor do arvoredo denso.
Aqui, ali, à derradeira irradiação do sol, uma clarabóia cintilava. Baixando os olhos, viam os quintais com os coradouros coalhados de roupa, cordas vergando, outras atesadas por bambus e, quase por baixo do mirante, o pátio da oficina de carroças, cheio de toros de madeira, rodas em pilhas, um banco de marceneiro sob uma coberta de zinco.
Sons vibrantes de cometas, às vezes de marchas e dobrados, vinham de longe na doçura da tarde. Apareciam estrelas, luzes apontavam nas ruas. A noite caía rápida, e a cidade iluminada resplandecia como uma vasta planície crivada de vaga-lumes.
Recolhiam-se. Só o Toledo ficava muito triste, à noite triste, cantando baixinho, com melancolia, o olhar perdido em cismas. Saíam para os teatros, para a palestra no Garnier ou no Deroche ou ficavam à vontade falando do futuro, formando planos literários — um grande livro de Arte que despertasse a indiferença do público mazorro, uma obra forte, feita com amor e talento, a forma muito trabalhada, a análise muito minuciosa; um livro magistral de estilo que passasse o oceano e fosse ao estrangeiro dizer da Pátria e dos seus artistas.
Ruy Vaz, porém, tinha, por vezes, grandes desalentos: entendia que a língua portuguesa era um cárcere.
— Para que morrer sobre as páginas de um livro se ele nunca chegaria ao conhecimento universal, por mais nobres que fossem os seus conceitos, por mais sutil e arguta que fosse a sua psicologia, por mais que lhe repolissem a forma? Não valia a pena. A língua portuguesa é ingrata e avara: guarda os seus mais belos poemas como um usurário esconde os seus tesouros. Anselmo, porém, sempre a rebuscar nos clássicos novos termos, tinha assomos de entusiasmo e proclamava o seu vernáculo o mais belo, o mais rico, o mais soante. E lia altissonantemente estrofes de Camões, trechos de Bernardes, de Fernão Mendes, de Lucena, os sermões e as cartas de Vieira, apontando as belezas e os grandes recursos dos mestres, e ia assim formando o seu vocabulário.
Só o Toledo, sempre sorumbático, parecia indiferente àquelas pesquisas literárias. Olhava e, se o estudante saltava mostrando nas páginas dum clássico um adjetivo sonoro e expressivo, sorria o seu olhar morno tinha alguma coisa de enternecida piedade, se lhe parecesse ridículo, digno de lástima, contentamento tão grande por tão fútil descoberta. Levantava-se suspirando e, vagaroso, de mãos nas costas, arrastando os passos, ia-se pelo corredor a mascar o cigarro, ou de cabeça baixa, cantarolando trechos de óperas.
Como em todas as venturas da vida há sempre um "mas" impertinente, a adversativa do período sereno dessa existência amável era o banheiro.
A casa não possuía essa dependência indispensável à higiene e ao gozo. Dona Ana esfregava as suas banhas flácidas, de tempos a tempos, em imensa bacia de ferro onde Vidinha, aos sábados, com algumas gotas de água Florida e sabonete Windsor, tirava as gorduras do corpo alambreado.
Leonor, quando começava a tresandar, era impelida para o tanque e a bica golfava grandes jorros sobre as costas da negrinha, que tiritava clamando contra a barbaridade e pedindo que a mandassem para o recolhimento. Logo, porém, que se enxugava, a cólera caía e, satisfeita e inodora por algum tempo, saía a anunciar a barrela com justíssimo enlevo e restos de sabão na carapinha. Só o João se conservava a respeitável distância da água, esbravejando e referindo-se à falecida avó com descabida infâmia quando a mãe investia com a vara para o levar à barrela.
Os rapazes, logo que se instalaram, fizeram uma representação em forma à viúva reclamando um banheiro. Dona Ana achou "muita exigência" e fez-se surda, indo para a cozinha resmungar contra o "luxo dos fidalgos".
Ruy Vaz e Anselmo, vendo que ela desatendia, desceram uma manhã, às dez horas, quando Leonor esfregava no tanque e Vidinha arranjava os vasos de violetas à janela da sala de jantar. Despiram-se atirando a roupa para a corda e, nus, cantarolando, auxiliaram-se mutuamente revesando-se ao regador que um derramava sobre a cabeça do outro, trepando, o que fazia de aquário, sobre uma tina emborcada para que a água jorrasse do alto.
Leonor, em grande pânico, aos gritos, fugiu bradando o escândalo: "Que os moços estavam nus em pêlo, tomando banho no quintal." Vidinha debruçou-se à janela e rompeu a rir. Dona Ana acudiu e, vendo os dois inquilinos como anabatistas que se batizavam, uivou enfurecida contra a pouca vergonha.
Anselmo, porém, com a cabeça branca como um casulo de algodão, o corpo enflocado de espuma, de pé na tina, pronunciou um discurso demonstrando as excelências da água fria para a limpeza do corpo e para a resistência moral dizendo, na peroração, que se ela não desse imediatas providências, todos os dias àquela hora fúlgida, desceriam do Empino com as toalhas e o sabonete e, núcegos como dois atletas gregos, fariam a ablução indispensável.
Dona Ana vociferou invocando o pudor de Vidinha, a inocência de João, a candura de Leonor e a sua viuvez, mas no dia seguinte mandou vir da venda uma grande pipa, serrou-a e, suspendendo a um barrote um pequeno reservatório com chuveiro, mandou anunciar aos do segundo andar que podiam tomar banho com decência, mas que haviam de pagar o banheiro, porque ela não estava disposta a sustentar os luxos de ninguém.
E a cuba foi estreada, com alarido e cantos e, como o sítio do banheiro era escuro e infestado de bichos, desciam sempre com uma vela, e a hora do banho, por causa da lanterna e da tina, foi chamada com propriedade, "a hora de Diógenes".
O Lins aparecia freqüentemente a horas altas da noite e, da rua silenciosa, bradava para que lhe fossem abrir a porta. Entrava pé ante pé para não despertar a Cotovia e o Dragão e, vestindo um imenso robe de chambre do Toledo, estirava-se no canapé, com a cabeça sobre dois dicionários, e dormia como um justo alarmando a casa com os seus tremendos pesadelos.
De tempos a tempos o Duarte mandava um garrafão de vinho e ia também bebê-lo. Os jantares tinham, então, a grandiosidade de banquetes, trocavam-se brindes. Lins ia ao mirante com um copo cheio e bebia ao astro noturno e à maravilha das constelações; nas noites taciturnas, sem lua, bebia a S. Sebastião, o padroeiro da cidade ou a alguma mulher formosa e, mesmo uma noite, como enchesse o copo oito vezes, bebeu aos seus credores.
O trabalho progredia. Ruy Vaz acumulava observações para um romance de análise, estudo sutil de mulher; Toledo estudava os ossos do crânio e Anselmo terminava uma opereta quando se declarou a epidemia do amor.
Vidinha, graciosa e bela, parecia ter esquecido o amanuense e arrancava do peito recavados suspiros andando pela casa triste, com o croché entre os dedos, penteada, engomada, de meias e, à noitinha, debruçada à janela da sala de jantar, à hora em que, do mirante, os rapazes contemplavam os astros, cantava com muito sentimento:
O Lins achava-a encantadora com aqueles ares melancólicos de Ariadne esquecida, falando de morte; e pensava em desposá-la.
É digna de um artista de raça. É mulher para ter um templo feito com alexandrinos imperecíveis. Mulher nervosa, mulher ardente... só mesmo para um artista como eu. Sinto-me capaz de a fazer feliz. E travavam-se duetos estranhos no escuro: Vidinha embaixo, debruçada à janela, a suspirar:
Quando eu morrer não chorem minha morte...
e o poeta do mirante, com o comprido robe de chambre de rastos, a recitar Camões:
— Se me vem tanta glória só de olhar-te É pena desigual deixar de ver-te; Se presumo com obras merecer-te Grão pago de um engano é desejar-te...
Mas Vidinha, logo que ouvia o poeta, retirava-se atirando bem alto, para que ele ouvisse, uma frase de ferino desprezo:
— Diabo do capenga não se enxerga! Não era ele então o preferido? Quem seria pois? Anselmo? Ruy Vaz? O sombrio Toledo? Duarte? Mistério! Os rapazes interrogavam Leonor, davam-lhe gorjetas procurando subornar a negrinha para que denunciasse o segredo que trazia contristada a formosa morena. A negrinha entesourava as moedas e respondia sempre com inflexível teimosia: "Não sei... Não sei..."
O amor fervia em todos os corações. Lins, desprezado, mas não desiludido, agarrava-se ao velho prolóquio: "Quem desdenha quer comprar..." e dava tratos à Musa escrevendo copiosas e alambicadas líricas nas quais cantava a criatura indiferente que o torturava. Uma manhã, à "hora de Diógenes", descia Anselmo para o Cranium, que era o sítio tenebroso do banheiro, com a toalha ao ombro, o castiçal e o sabonete quando, na escada, encontrou Vidinha. Trocaram um olhar afogueado e as faces da menina coloriram-se, indício infalível de que o coração se lhe havia sobressaltado.
— Bom dia, Vidinha.
— Bom dia, respondeu ela de olhos baixos, agarrada ao corrimão.
— Estás zangada comigo? — perguntou baixinho o estudante.
— Zangada com o senhor! Por quê? Hom'essa... Olharam-se e iam, talvez, sair os grandes segredos do coração da donzela quando uma voz estrondou no alto da escada:
— Passa pra cima, descarada! E o senhor fique sabendo que eu não quero cenas aqui em minha casa. Os senhores pensam uma coisa e ela é outra.
Vidinha, assomada, respondeu:
— Não me amole! — e enfarruscou, alisando o corrimão.
Anselmo, melindrado, repeliu a insinuação.
— Que pensa a senhora de mim?! Julga que eu estava aqui a dizer galanteios à sua filha? Está enganada. Eu perguntava simplesmente se a Gazeta já havia chegado. Não é verdade, Vidinha?
— É, sim.
— Eu sei! Os senhores são bons, mas a mim é que não embaçam. Eu bem sei como o diabo as arma. Anda pra cima, Vidinha.
— Não vou!
— Sem vergonha! Ficaram as duas discutindo e o estudante desceu indignado, mas convencido de que era o venturoso. Na manhã seguinte, porém, Ruy Vaz subia do Cranium quando encontrou a menina. Dona Ana estava à porta comprando verduras e sorte que o romancista pôde dilatar o encontro.
— Adeus, belezinha. Ia fazer-lhe uma carícia no rosto, mas Vidinha repeliu energicamente a mão atrevida.
— Eu não gosto de lambanças, sabe?
— Que é isto? Então é assim que se trata o queridinho?
— Queridinho quê, seu bobo!
— Ah! Não sou eu o queridinho? Então por que anda você mexer comigo?
— Mexendo com o senhor? Eu! O senhor está sonhando...
— Ah! Estou sonhando? Pois sim.
A menina fez um momo e disse abandonadamente:
— Eu dos senhores só quero o descanso.
— Má! — atirou-lhe em face o romancista.
— Mau é o senhor.
— Eu? Por quê?
— Não sei...
— Diga!
Ela encarou-o sorrindo e, com um meneio gracioso da cabeça, em voz expressiva e mole:
— O senhor é tolo! Nossa Senhora!... É melhor que tire fiapo do bigode, que até parece um cabelo branco.
Ruy Vaz apresentou a face, muito terno:
— Tira, meu anjo. Eu não vejo... E Vidinha, com um muxoxo, foi com dois dedos delicadamente, tirou o fiapo e mostrou-o ao romancista; e ele, trêmulo:
— Então eu sou mau?
— É, sim... Mas os tamancos de Dona Ana abalaram a casa.
— Olha mamãe! — disse ela assustada e Ruy Vaz precipitou-se, escada abaixo, o caminho do Cranium. Mas da cena capital foi herói Toledo, o casmurro. Os companheiros haviam saído, era quase noite, ele estava só no mirante quando Vidinha, debruçada à janela, disse:
— Que tristeza, meu Deus!
— Como? — inquiriu o misantropo.
— Que tem o senhor que anda tão triste?
— Nada, sou assim mesmo.
— Qual? Não creio: o senhor tem alguma coisa que não quer dizer à gente. Paixão, com certeza...
— Eu? Não tenho tempo para essas coisas, Dona Vidinha.
— Faço idéia...! Os mais sonsos são os piores.
Houve um silêncio e Toledo já não se lembrava de Vidinha quando ouviu:
— Boa noite!
Respondeu como em sobressalto:
— Boa noite, Dona Vidinha
E ela, em voz trêmula e surda, ajuntou:
— Sonhe comigo... e desapareceu. O anatomista ficou atordoado, assombrado como se, lá da altura, a lua, muda e branca, lhe houvesse perguntado pela família.
Foi num dia borrascoso de aguaceiro e vento, dia insípido de tédio, que Ruy Vaz contou, com requintes de vanglória, o seu encontro com a menina dando-se pelo preferido, mas Anselmo referiu o episódio da escada e Toledo narrou a cena teatral do mirante. Os três, pasmados, romperam a rir.
Toledo, porém, disse com lástima e sabedoria: "Que era uma doente..." Ruy Vaz declarou: que era um caso. A pequena atirava-se a todos para apanhar um, indiferentemente. Não havia amor, senão astúcia e interesse. Toledo entendia que o melhor era darem a perceber que a estimavam, sem intenção, para que se desvanecessem as idéias absurdas que ela afagava com prejuízo do futuro, porque estava talhada para ser a esposa fiel do amanuense. Mas Anselmo, com os olhos fuzilantes, protestou enérgico:
— Isso não! Pois a pequena presta-nos tão alto serviço intelectual e havemos de desprezá-la? Isso nunca! Vidinha é um excitante e um alvo. O coração precisa de um ponto de mira, meus amigos. Os marinheiros guiam-se pelas estrelas, os poetas não podem trabalhar sem um ideal qualquer. Vidinha presta-se magnificamente.
Toledo ponderou com gravidade:
— Tomem cuidado! Essa menina é um perigo.
— Qual perigo! E, sem darem atenção aos conselhos do macambúzio, Ruy Vaz e Anselmo continuaram a cultivar a flor de alambre dirigindo-lhe frases incandescentes e ela a mandar-lhes flores, anéis de cabelo, marcadores de livros e, quando saíam, avisada pela negrinha, subia em visita curiosa ao segundo andar, corria os quartos, arranjava as mesas e, uma noite, ao deitar-se, Anselmo descobriu debaixo do seu travesseiro um lenço perfumado a Kananga que a menina ali havia escondido, para atordoá-lo, sem dúvida. O estudante dormiu com o trapo apertado ao coração e teve sonhos deliciosos.
Ruy Vaz, ouvindo os estrondos e suspiros do companheiro, começava a recear quando um incidente providencial fez com que o estudante evitasse o abismo que o atraía com lenços perfumados e cantares langorosos à janela da sala de jantar.