Anselmo, que havia concluído a opereta, obteve do Heller, graças à apresentação de Ruy Vaz, um domingo para a leitura. Com o manuscrito debaixo do braço, o coração em grande alvoroço à idéia de um ruidoso sucesso que, de golpe, lhe atirasse o nome para a glória, entrou no jardim do Sant'Anna.

O empresário teve uma grande e enfadada surpresa ao como se vê-lo se não contasse com aquele sacrifício, mas dissimulando, ofereceu-lhe um banco no tablado, pedindo um instante para dar certas ordens. Anselmo sentou-se orgulhoso, certo de que o Heller fora reunir a companhia para a audição dos três atos da sua opereta que tinha o misterioso título de A Profecia. Mas o empresário tornou, instantes depois, resignado e só, e, tomando um dos bancos, sentou-se, dizendo em voz aveludada e com um sorriso de mártir:

— Podemos começar. Anselmo, ainda esperançado, lançou um olhar comprido para o fundo do teatro, através da platéia deserta e lúgubre, mas o palco estava vazio e escuro, em arcabouço, com os bastidores encostados em pilhas, uma grande concha, rutilante de malacacheta, tirada por dois cisnes e uma velha árvore que, na mágica, então preferida do público, esgalhava-se dando passagem à fada Primavera, uma artista italiana, grossa de corpo que, todas as noites, era delirantemente aclamada por um grupo de admiradores. Não havia viva alma. Resolveu-se a principiar a leitura. Desenrolou o manuscrito e o Heller, vendo a primeira página, fez uma observação lisonjeira:

— Bela letra! ~ sua?

— Sim, senhor. O empresário, arregalando os olhos, acenou com a cabeça admirativamente. Em verdade a caligrafia era magnífica: o título dos atos em caracteres góticos, a descrição dos cenários e as rubricas em fino cursivo à tinta carmim, e toda a escrita uniforme, sem uma emenda, sem uma rasura, limpa e igual. Anselmo começou e, logo às primeiras frases, o Heller, abichornado pela temperatura tépida da hora sonolenta, cerrou os olhos. A cabeça ia-lhe descaindo lentamente; ele, porém, logo a afirmava, olhando quebrantado, com a mão à boca para esconder os bocejos.

Ia começando o segundo ato quando uma atrizinha apareceu muito tesa, em passo miúdo, rebolindo-se, com a sombrinha acolhida entre os braços sob o colo. Fazendo leve cumprimento ao estudante inclinou-se para dizer alguma coisa ao ouvido do empresário que, de olhos altos, ia respondendo: "Sim... Sim... Sim..." Enquanto ela falava Anselmo, que acendera um cigarro, olhava-a e admirava-a. Clara, de olhos garços, pequenos, irônicos, mas de inexcedível vivacidade brejeira, lábios carnudos, cabelos castanhos e colo farto, que ondulava maciamente.

— É uma peça nova? — perguntou lançando um olhar ao manuscrito.

— Sim, disse o Heller.

— Há algum papel para mim? Anselmo afirmou:

— Há a princesa ou, se a senhora preferir, a fada. A atriz inclinou-se sobre o original, que o estudante deixara aberto na mesa, examinou-o, tomou-o nas mãos e, com um sorriso que dava ensejo a que o jovem autor visse duas filas de dentes admiráveis, exclamou enlevada:

— Com efeito! Que letra! Linda letra, hem, Jacinto?

— É verdade, concordou o empresário sonolento.

— Tão certa! Parece impressa. Sim senhor! Esta não precisa ser copiada para o ponto. O senhor escreve sempre assim?

— Sempre; afirmou o estudante.

— É admirável! E ajuntou: Quem tem tão linda letra deve escrever coisas admiráveis. Com licença... Se permite que eu ouça algumas cenas da sua peça... Há muito que começou? Que calor, hem? Em que ato está?

— No segundo.

— O primeiro não é mau, resmungou o Heller: tem vida.

— Vamos lá, disse a atrizinha chegando a cadeira para junto do estudante e, sempre com os olhos nele, risonha, ouvia. Ia Anselmo lendo uma grande e enfática invectiva quando se pôs a gaguejar, perturbado: sentira leve pressão no pé e, instintivamente, lançando um olhar interrogativo à atriz, viu que ela o fitava enternecida, com os olhos semicerrados e lânguidos. Quase ao terminar o segundo ato uma voz bradou do palco estentoricamente:

— Ó Jacinto! O empresário, ajustando o pince-nez, levantou a cabeça:

— Que é?

— Anda cá!

— Com licença. É um momento.

— Pois não. Ficaram os dois e o Heller ia ainda perto quando a atrizinha, em tom ardente e discreto, com a cabecinha inclinada, murmurou:

— Que olhos tem você, menino...! Ele sorriu tímido. Fazem mal à gente, palavra; ajuntou. Olharam-se e ela, sorrindo, tornou mais forte a pressão do pé.

— Você é estudante?

— Sou.

— De Medicina?

— Não: de Direito; estudo em S. Paulo.

— Ah! S. Paulo! — disse ela de olhos em alvo, como se aquele nome lhe trouxesse suaves e saudosas recordações. Inclinou-se sobre a mesa e Anselmo sentiu-lhe o contato dos joelhos. Ela examinou o frontispício do manuscrito e, lendo "Anselmo Ribas..." perguntou:

— É teu nome?

— É...

— Que idade tens?

— Dezoito anos. Encarou-o risonha, mordicando o beiço e exclamou de novo:

— Mas que olhos! Você deve ser um homem terrível! Quem é a tua amante?

— Minha amante? Não tenho.

— Não tem!? — fez ela com espanto compadecido: Pobrezinho! De repente, sacudindo uma penugem que pousara na lapela do casaco do estudante, perguntou:

— Vens logo ao teatro?

— Posso vir.

— Então espera-me depois do espetáculo. Onde moras?

— Na rua Formosa.

— Só?

— Com dois outros rapazes: Ruy Vaz e um estudante de Medicina.

— Ah! Moras com Ruy Vaz?

— Moro.

— Bonito rapaz aquele, hem?

— É... Levantou-se, tomou a sombrinha e, estendendo a mão breve ao estudante, enquanto lhe apertava os dedos, disse:

— Então até logo. Olha, espera-me junto do botequim. Vamos cear e depois... riu derreando a cabeça, piscando os olhos. Até logo; e, erguendo a voz: Jacinto, adeus, hein!

— Adeus! Já à porta, acenou com os dedos um adeus a Anselmo, depois, apontando o balcão do botequim fechado: Ali!

— Sim, disse o estudante.

— Até logo! — e atirou-lhe um beijo. O estudante, surpreendido com esse rápido incidente de amor, mal pôde concluir a leitura. Já não se preocupava com os proventos nem com o sucesso da opereta, pensando apenas no encontro noturno com tão formosa rapariga, mas a idéia da ceia aterrou-o. Como havia de a levar a um hotel se toda a sua fortuna reduzia-se a uma velha nota de cinco mil réis? Não havia de conduzi-la a uma tasca para empanturrá-la de iscas e de vinho verde, nem era gentil levá-la a bonde para casa. Mulheres como aquela estavam habituadas a iguarias finas, a champanhe e não se moviam senão em carruagens macias. Como se havia de arranjar para aparecer decentemente à atriz que ficara magnetizada pelos seus olhos felinos?

O empresário aceitou a peça prometendo montá-la logo que tivesse ensejo e Anselmo saiu radiante, feliz nas letras, feliz no amor, antegozando as duas delícias — a noite próxima, sonora de beijos, e o êxito de A Profecia... logo que houvesse ensejo. Quando chegou à casa narrou miudamente a aventura. Ruy Vaz, que conhecia a atriz, quis dissuadi-lo.

— Não te metas com essa mulher, é o diabo. É um escândalo de saias: faz rolos, tem ataques, suicida-se uma vez por mês, um horror! Arranjaste uma complicação, vais ver. Essa mulher vem desorganizar a nossa vida. Estamos aqui tão bem, trabalhando tranqüilamente e vai-se tudo por água abaixo. Já estou a vê-la revolvendo papéis, folheando livros, espalhando notas ou esperneando ali no tapete descomposta, com os tais ataques. Não penses que há despeito da minha parte, falo assim porque conheço a fundo essa ventoinha. Acho melhor que não a tragas para cá.

— Mas se ela quer vir..

— Quer vir! Ora! Quer vir! Mas para onde, se dormimos no mesmo quarto?

— Por isso não: eu falo ao Toledo.

— Pois sim, hás de ver o resultado. É até capaz de fazer-nos perder esta casa, onde estamos tão bem. É assim! Quando começo a pôr ordem na vida... zás! E foi-se para a janela resmungando.

O Toledo cedeu o quarto sem a mínima objeção; apenas retirou da parede os retratos do pai e da mãe e pôs uma vela nova no castiçal. O estudante conseguiu, com alguma lamúria, arrancar dez mil réis ao misantropo para as grandes despesas da ceia.

O dia parecia a Anselmo infindável e, impaciente, às sete e meia da tarde, com quinze mil réis no bolso e a alma radiante, caminhou trauteando a "Canção de Fortúnio" em direção ao Deroche para fazer hora.

Lins lá estava chuchurreando chopes e ouvindo as bravatas de um alentado barbaças que era paginador num jornal. O homem narrava, roxo e inflado, suando, um feito de mocidade. Andava uma noite em serenata, com outros, lá para as bandas da Cidade Nova, quando dois policiais, por birra, lhes tomaram o passo proibindo, com descomposta linguagem, o zangarreio e o descante. Com boas palavras tentaram persuadi-los de que não eram vadios, mas homens pacíficos, de trabalho, que se divertiam ao luar da noite morna, mas os polícias, julgando, pelas falas mansas, que eram poaias, insistiram na proibição e, sem mais aquela, foram desembainhando os rifles. Ele então, em furor de louco, atirou as manoplas à barriga dos intangidos soldados, suspendeu os dois e muito tempo, no ar, esteve a bater um contra o outro até que os sentiu moles; encostou-os, então, a um muro e foi-se pacatamente, fumando. Soube, mais tarde, que os dois policiais, recolhidos de manhã, com as caras amassadas e rubras como dois grandes tomates, estiveram entre a vida e a morte durante um mês, no hospital, bradando, no delírio da febre, contra um gigante, alto como uma torre e armado de cavaquinho, que os esmagava. O gigante era ele. A voz trovejante do paginador, saindo dentre as barbas densas, era soturna e temerosa como a de um oráculo vindo de versuda brenha em escachôos, ecoando. Lins ouvia-o entre assombrado e descrente e pedia mais chopes.

Quando Anselmo entrou o poeta apresentou-o ao paginador que possuía o nome beato de Santos e o colosso, tomando na prensa da destra a mão fraca do estudante, para dar demonstração da sua força, apertou-a. Anselmo, porém, não se deu por sentido, posto que se lhe enchessem os olhos de água.

O Deroche estava quase deserto; além do poeta e do gigante só dois alemães, cachimbando e cervejando, calados como autômatos, recomeçavam partidas de dominó. Anselmo lançava, de instante a instante, os olhos ao relógio moroso. Como lhe pareciam lentas aquelas horas! Que noite vagarosa! Lins não podia acompanhá-lo, ia escrever uma crônica para um jornal de província. Já o caixeiro lhe havia posto diante dos olhos, entre os copos vazios, o tinteiro e um caderno de papel. Anselmo foi-se. A rua do Ouvidor, sem movimento, tinha o aspecto desolado de viela abandonada. As ruas do Rio de Janeiro, como as de Paris, segundo Balzac, têm qualidades e vícios humanos: há ruas estróinas e há ruas pacatas, ruas ativas e ruas negligentes, ruas devassas e ruas honestas, umas cujos nomes andam constantemente em notas policiais, outras que são citadas nas descrições elegantes.

A rua do Senhor dos Passos é imoral e imunda, a sua linguagem é torpe, o seu vestuário indecoroso, as suas maneiras insólitas, o seu cheiro nauseabundo, é uma rua que se enfeita com alecrim e arruda e embebeda-se com cachaça, tem hábitos vis de xadrez e de tasca. Por mais que se arreie vê-se-lhe sempre a imundície e a pústula; por mais que se esfregue sente-se-lhe sempre o fortum.

A rua Sete de Setembro é uma delambida rameira que estropia a língua do país e escandaliza a moral; o seu colo tem placas, os seus lábios mostram a devastação fagedênica, o seu hálito envenena. Tais ruas são como essas flores noctilucas que só desabotoam à noite e expandem o seu aroma; durante o dia caladas, entorpecidas modorram em flácido e derreado abandono, bocejando.

A rua da Conceição é desconfiada, como que tem sempre o olhar à espreita, a navalha à mão, o pé ligeiro pronto para saltar e fugir. Não fala — murmura, cochicha, em gíria arrevezada. E maltrapilha e zambra, arrasta andrajos e oscila.

A praia de Santo Cristo tem o aspecto sadio de uma varina, criada livremente, à fresca e salitrada aragem marinha, diante da vaga, sempre a coser os panos das velas, abrindo-as ao vento ou compondo as malhas das redes que um repelão mais forte do peixe, no mar fundo, rompera em noite farta. A sua linguagem é rude como o fragor da onda na rocha, o seu olhar é límpido e seguro como o do mareante; tresanda à maresia. A sua força é a do vagalhão. Calma, tem o encanto da água serena em noites de luar, mas quando se insurge alvoroçada, quando se põe de pé, brandindo facas agudas e croques, remos e velhas bancadas de canoas roídas pela onda, esquecidas junto às dunas, apodrecendo ao tempo, tem a fúria irreprimível do mar tempestuoso.

A rua Haddock Lobo, com o seu ar repousado e feliz de velha senhora abastada, que dormita à sombra de árvores, entre crianças gazis e flores recendentes, digerindo, em sossego beato, sem cuidados, sem achaques, é calma e transmite ao espírito suavíssima idéia de descanso espiritual e de corpo, no imperturbável silêncio das suas aléias no frescor das suas finas águas correntes.

A rua do Ouvidor é trêfega. Durante o dia toda ela é vida e atividade, faceirice e garbo; é hilare e gárrula; aqui, picante; além ponderosa; sussurra um galanteio e logo emite uma opinião sisuda, discute os figurinos e comenta os atos políticos, analisa o soneto do dia e disseca o último volume filosófico. Sabe tudo — é repórter, é lanceuse, é corretora, é crítica, é revolucionária. Espalha a notícia, impõe o gosto, eleva o câmbio, consagra o poeta, depõe os governos, decide as questões à palavra ou a murro, à tapona ou a tiro e, à noite, fatigada e sonolenta, quando as outras mais se agitam, adormece. Ouve-se apenas o rumor constante dos prelos nas oficinas dos jornais. É a rua que digere a sua formidável alimentação diária para, no dia seguinte, pela manhã, espalhar pelo país inteiro a substância que compõe a nutrição do grande corpo, cada parte para o seu destino. Para o cérebro: as idéias que são os incidentes políticos e literários e as descobertas científicas, essas ficam com a casta dos intelectuais; o sentimento para o coração, que é a mulher; essa tem o romance e a esmola, o lance dramático e a obra de misericórdia; o movimento dos portos e das gares para o ventre e para os braços do povo que devora e do comércio que abastece e o resíduo que rola, parte para os cemitérios, parte para os presídios mortos e condenados. Outros que analisem a carta completa da cidade, eu fico nesta exposição.

Anselmo seguiu pensando no encontro. No largo de S. Francisco todos os quiosques conservavam-se apagados. Tomou pela rua do Teatro, também escura. Os respiradouros do S. Pedro brilhavam, homens debruçados às janelas fumavam, passavam senhoras despindo capas. Num hotel ressoava a harpa de um pequeno italiano e a rabequinha da irmã desafinava dolorosamente como se, a custo, àquela hora da noite, depois de todo um dia de afã, de hotel em hotel, de esquina em esquina, arranhado insistentemente pelo arco, o instrumento, irritado, recusasse o som.

No largo do Rocio era grande o movimento. Os cafés regurgitavam — era o povo dos domingos: o operário, o caixeiro, o marujo, aproveitando, com ânsia, o dia de folga. Vinham do campo, chegavam dos subúrbios fartos, alegres; uns que haviam apostado, com felicidade, nas corridas; outros que se haviam banqueteado, num canto rústico de arrabalde, à sombra da latada verde e iam acabar a noite no teatro, aplaudindo atrizes, cobrindo o palco de flores, rindo, saciando um desejo refreado durante uma longa semana no quarto estreito do armazém ou no cubículo da oficina.

Rapazolas passavam em turmas com grandes ramos ao peito, chuchando imensos charutos, fazendo algazarra. E triste, encostado a uma esquina, com uma pequenita sonolenta ao lado e um cão estirado aos pés, um velho cego, de compridas barbas brancas, com um realejo suspenso ao pescoço, tendo sobre a tampa um pires, voltava maquinalmente a manivela, moendo a Marselhesa.

Anselmo parava à porta de todas as casas, espiava e via um povo diferente do que ali costumava aparecer nos dias comuns. Nem um só dos rapazes: era uma gente nova, desconhecida, como se houvesse chegado de longe, caminhando, logo ao pisar a terra, em grande necessidade de expansão e de movimento, para as casas de prazeres onde bebesse e, calmamente, seguramente, comentasse os perigos de que saíra, os sustos que havia sofrido, as privações por que havia passado.

O homem das empadinhas urrava desesperado: "Empadinhas de camarão... estão quentes!" e, à porta do teatro, o povo apinhava-se, apertava-se, avançando arrastadamente, comprimido. Entrou.

O porteiro ruivo pediu-lhe o bilhete; ele, porém, lembrando-se do que lhe havia dito Ruy Vaz, atirou, com orgulho, o título de um jornal e passou.

Havia enchente. O jardim fervilhava e era um rumor confuso de vozes altas, estrondosas gargalhadas, estouros de garrafas. Cocottes, às duas, às três, de braço dado, iam e vinham; na platéia e nas torrinhas, era um bater estrepitoso de pés e de bengalas. Na orquestra os músicos afinavam os instrumentos quando a campainha retiniu e houve como uma inundação de luz e um grande "oh!" encheu o teatro com a expansão de todas aquelas almas ansiosas.

Subiu o pano. Anselmo, junto à orquestra, entalado entre os curiosos, muito espichado, procurava descobrir Amélia, mas a atriz não havia ainda aparecido, o coro apenas vozeirava. Rompeu uma salva de palmas... Seria ela? esticou-se: não, era o Vasques, todo de amarelo, com um girassol à cabeça. Mas uma pancada metálica de gongo vibrou sonoramente, espiou e sorriu, com o coração à boca. Era Amélia, de fada, iluminada por um jorro de luz, num carro tirado por dois cisnes. Vestia túnica recamada de pedrarias, à cabeça o diadema encimado por uma estrela que cintilava, em punho a vara mágica, braços nus, as pernas no maiô muito justo, coturnos nos pés... Divina!

Ele esforçava-se por conseguir tomar a frente ao grupo para que ela o visse, mas não podendo vencer a barreira humana, resignou-se a ficar em pontas de pés, angustiado, suando, a ouvir, com delícia, as palavras proféticas que ela ia dizendo aos da corte do rei, um monarca pançudo e ridículo, que caminhava aos saltinhos agarrado aos ministros... E com outro estrondo metálico Amélia desapareceu.

Que mais tinha ele a fazer ali naquela espécie de lugar? Retirou-se, com a mão no bolso, apalpando o dinheiro, receoso de que algum gatuno astuto o levasse, deixando-o desprevenido para a ceia.

No jardim encontrou o Duarte, a rir, num grupo de mulheres. Chamou-o à parte e, narrando-lhe a aventura em que estava empenhado, pediu o seu auxílio, mas o poeta estava in albis, tinha apenas o níquel da passagem. Olharam-se; de repente, porém, o autor das Boêmias disse com segurança:

— Espera-me aqui. Vou ver uns casos. E foi-se. Anselmo, posto que ardesse em sede, não se atrevia a tocar no dinheiro que reservava avaramente para a ceia. Foi ao balcão e, não sem vexame, pediu um copo de água. Começava o terceiro ato. O estudante já estava resignado à sua fortuna módica, quando o Duarte reapareceu esbaforido:

— Ah! meu amigo, que trabalhão! — e passou-lhe um rolinho sorrateiramente, segredando: Tens aí dez. Mas não te metas mais em complicações aos domingos. O domingo é um dia impossível: as nossas carteiras não aparecem, ficam repousando nas chácaras, de paletó branco e chinelas. Faze tudo quanto quiseres da segunda-feira ao sábado e descansa ao domingo, porque o Senhor mandou e porque não há meio de arranjar-se um níquel. Suei para conseguir essa miséria: tive de ir à rua da Candelária recorrer a um amigo. Felizmente encontrei-o à porta tomando fresco.

— Achas que com vinte e cinco posso fazer alguma coisa? — perguntou Anselmo.

— Isso é uma fortuna, homem de Deus! Podes até mandar abrir meia garrafa de champanhe e comprar um maço de cigarros para mim. Vou contigo.

— Tu! — exclamou o estudante aterrado.

— Tens ciúme?

— Não, não é ciúme, mas a quantia... para três.

— Mas eu vou justamente para garantir-te. Fico a teu lado e, se vir aproximar-se alguém com cara de canja ou de grogue... porque eu, pela cara, sei o que os manos farejam, dou o brado, compreendes? Fico de guarda e, mesmo, sendo necessário, podes deixar-me como refém.

— Então sim.

— Olha, acabou. Efetivamente o povo saía em massa. O estudante respirou e foi postar-se junto ao botequim que os caixeiros fechavam. Apagaram-se todos os bicos de gás, o pano de boca subiu e o palco apareceu nu e sombrio. Começaram a sair os atores e Anselmo, sempre que via aparecer, ao longe, uma mulher, movia-se como para ir-lhe ao encontro, mas o Duarte detinha-o:

— Não! Não é. E, intimo dos artistas, dirigia cumprimentos a todos que passavam: "Adeus, Chico! Boa noite, Guilherme! Como vai isso, Lisboa? Bravos à comadre."

— Aí vem ela...! disse, por fim. Era Amélia, muito tesa, com o seu passo miúdo e sacudido. Encaminhou-se para o botequim e, com meiguice, roçando pelo estudante como uma gata amorosa, perguntou: "Se ele havia aturado aquela estopada...?"

— Por tua causa... murmurou ele apaixonadamente e ela, lânguida:

— Hei de pagar-te o sacrifício.

O Duarte curvou-se dizendo em tom irônico:

— Muito boa noite, senhora duquesa!

— O Duarte! Estavas aí? Se fosses cobra.

— Não mordo, madame.

— Nem eu sou mordível, respondeu ela a rir e, tomando o braço de Anselmo, muito aconchegada, sussurrou:

— Fazes muito empenho em cear?

— Eu? Se quiseres. Estou por tudo.

— Então vamos para casa.

— Isso não! — exclamou o Duarte; vamos festejar o himeneu com uma Einbek gelada, já que não podemos regar o epitalâmio a champanhe.

— Pois vamos, disse Anselmo passivamente.

— Eu entendo que vocês devem tomar uns ovos quentes e um cálice de Porto. Eu cá sou assim: não embarco para Citera sem levar copiosas provisões. A viagem é longa e fatigante.

— Pois vamos tomar uma garrafa de cerveja. Mas eu não como, jantei tarde, disse Amélia.

— Como vai o Moreira? — perguntou o Duarte.

— Não me fales nesse idiota! É um homem impossível: chora, vive sempre ajoelhado a meus pés, a beijar-me as mãos. Ridículo! Eu gosto de homem, homem...! De maricas não venhas! — exclamou em tom brejeiro. Entraram na Maison Moderne e Anselmo ainda insistiu por um pouco de foie gras, uma salada de arenques com vinho do Reno. Amélia fez um momo: "Aceitava apenas um copo de cerveja para não se fazer rogada."

Estavam os dois enlevados, enquanto o Duarte dava conta de um picadinho à baiana com farofa, quando uma voz rouca estrugiu:

— Correto!

— Olha o Neiva, disse Amélia voltando-se. Era efetivamente o boêmio. Vendo o grupo, dirigiu-se à mesa, e arrastando uma cadeira, pediu, num berro:

— Porto! Depois, muito terno, sorridente: Então que é isto? Que armação é esta? Temos amores?

— Já viste olhos mais ardentes do que os deste menino, Neiva? — perguntou Amélia.

— Não, nunca vi... Mas que tenho eu com isto? Pensa você que sou fiscal da iluminação do amor? Pôs-se de pé, ameaçador e trágico: Menina, cuidado! Este meu amigo é um Otelo de paletó saco!

— Mas eu não sou Desdêmona.

— Isso sei eu. Tu és como a Misericórdia: estás sempre de braços abertos. Honesta como fiel de balança. E, com os olhos imensos, a cabeça enterrada nos ombros, rugiu: Fazes muito bem! Saltou para o meio da sala repetindo: Fazes muito bem! E, chegando-se à atriz: O amor tem asas para voar... volúvel! Volúvel! Nada de ficar amarrada a este ou àquele sujeito. Amar é desejar; depois de saciado o desejo vem o tédio e, quando o tédio chega... só o divórcio.

— Pensam assim os inconstantes como tu, disse a atriz. O Duarte, cruzando o talher, tomou um sorvo de cerveja e, depois de limpar os beiços, suspirou:

— Só eu não sou amado! Se me impressiono por alguma menina, no dia seguinte é pedida em casamento. Eu sou o Himeneu.

— Qual Himeneu. Jetabore é que és.

Ou isso. Comecei a amar uma viúva com todas as veras da alma, com todo o fogo do coração, pois...

— Vai casar, adiantou Anselmo sorrindo.

— Não, nasceu-lhe um filho.

— Como! — exclamaram os três.

— Ora, como! Vai perguntar ao marido.

— Então é um filho póstumo?

— É verdade! O homem antes de morrer... É assim, hei de sempre encontrar um tropeço no meu caminho.

— Por que não tiras privilégio dos teus namoros?

— Já pensei nisso. Garçom, mais cerveja! Anselmo lançou um olhar apavorado ao Duarte que, percebendo, disse calmamente:

— Descansa homem; estou aqui com o prumo. O Neiva, fazendo uma careta, repeliu o copo enjoado.

— Não bebes mais? — perguntou Amélia.

— Não, filha; aqui onde me vês estou saindo do dique. Ceei ontem em casa da Melania e foi um estrupício! Só hoje, às duas da tarde, achei a minha cabeça. Ah! Vocês não imaginam: eram umas vinte mulheres e belas! Divinas! Encantadoras e estúpidas como a Vênus de Milo. Havia lá uma Hortênsia, de Guaratinguetá, deliciosa! Quando viu as alcachofras rompeu a rir, dizendo que aquilo nem parecia repolho e pediu queijo para os espargos tomando-os por macarrão. Um encanto!

— E as outras? — perguntou Anselmo.

— Tudo besta! Foi entre a ignorância e a beleza que passei a noite e estou cheio de solecismos e de pecados. Já li uma página purificadora e agora... Tomou um ar beato, espalmou a mão no peito, baixou a cabeça e murmurou: Pretendo amanhecer no Castelo para purificar-me no seio de um capuchinho. Depois da confissão atiro-me ao Gibert. Bem com Deus e com o Gabiso, este é o meu programa. Bramiu: A mitologia está errada! Vênus teve dois filhos gêmeos: Amor e Mercúrio. Estirou-se, amolecido:

— Estou morto! Mas logo, sungando o corpo, dirigiu-se a Anselmo:

— E você previna-se, meu amigo: saia dos braços dessa criatura e mergulhe num Jordão de iodureto.

— Não é preciso, disse Amélia erguendo-se irritada.

— Quê? Estás zangada? Neiva está brincando. Então Neiva não pode brincar...?

— Sim, mas eu não gosto de brincadeiras dessas..

— Está bem, rasgo a receita. Adeus! Vou dar um dedo de prosa ao Vasques. Até amanhã! Foi-se.

— Vamos? — convidou Amélia.

— Vamos.

— Eu fico, disse o Duarte. Sejam muito felizes. E, como o caixeiro apresentasse a nota, ele segredou ao estudante:

— Então? Viste como se manobra? Ainda podes almoçar e jantar amanhã, com vinho. Adeus!

— Boa noite! E os dois saíram aconchegados.

Anselmo propôs tomarem um carro. Amélia, porém, preferiu o bonde e foram, como um casal de noivos, muito juntos, extasiados, de mãos unidas, fazendo protestos de amor até a morte.