E assim passaram lentas duas semanas avaras. Todos os dias, como oração matinal, injuriavam Crebillon que lhes havia mentido e pediam a cólera dos céus para Dona Ana, a inflexível, depois reuniam-se em conselho discutindo meios de conseguir almoço e, como era mais difícil arranjá-lo para todos, tomava cada qual o seu destino, despedindo-se à porta da rua, com tremuras na voz e os olhos úmidos. Toledo, porque tinha o primo, dirigia-se logo para Santa Teresa subindo a montanha penosamente, ao sol, certo, porém, de que ia regalar o estômago com os acepipes do parente, que tinha orgulho em possuir um cozinheiro perito e magníficos charutos. Ruy Vaz seguia a pé para as Laranjeiras e, tonificado pelo bom ar da manhã, saudável e aperitivo, empurrava o pesadíssimo portão do palacete do visconde de Montenegro.
Era um sombrio prédio entre velhíssimas árvores copadas, cujos ramos altos faziam uma abóbada impenetrável ao sol. As paredes, pintadas de um verde amarelado, pareciam cobertas de limo. Os canteiros esquecidos estavam invadidos pelo mato, as aléias eram úmidas e tinham placas lutulentas, de um aveludado fino.
Velho negros, encolhidos pelos cantos, cochilavam preguiçosamente e, dia e noite, como em Scylla, era um uivar dolorido e longo, porque o visconde, grande amador de montarias, quando descia da sua fazenda, em Pinheiros, para passar no Rio os curtos invernos, trazia as suas trelas famosas que davam trabalho a dois negros e a um veterinário, sempre bêbedo e armado de lanceta, contra o qual os animais investiam, apavorados, quando o viam aparecer cambaleando.
Dois cavalos de sangue, altos e esgalgados, passeavam pelas aléias levados por um moço de estrebaria que os preparava, havia anos, para disputarem o grande prêmio, posto que o fidalgo já estivesse resolvido a metê-los nos varais do carro.
Nesse casarão, que tinha a gravidade claustral de um mosteiro antigo, dormindo um sono pacato à sombra quieta do arvoredo, vivia o visconde durante os meses chamados de inverno. Casto e sóbrio desde que, na Alemanha, ganhara certo mal que o trazia constantemente pelos consultórios e sempre a bradar contra as mulheres, observava rigorosa dieta, não indo além da canja, do frango e de um regrado copo de Bourgogne. Era um asceta elegante.
Para que o não vencesse a sedução demoníaca, atordoava-se à mesa, que era lauta e franca. Não queria ouvir rumor de saias; as próprias negras, que passavam como fugitivas sombras pelos imensos corredores reboantes, colhiam cuidadosamente os vestidos para que nem roçassem nas tábuas enceradas. O fidalgo detestava a mulher, tinha horror ao feminino, à sua mesa só homens apareciam e tantos que, dois expeditos copeiros, alípedes e solícitos, eram constantemente reclamados de um extremo a outro e acudiam com as imensas travessas e com as terrinas incomensuráveis. Não raro um conviva desconhecido fartava-se e saía sem ter trocado uma palavra, sem mesmo saber a qual daqueles homens, que chalravam e devoravam, devia a fineza de tão delicado almoço e o visconde, achando aquilo patriarcal, ficava satisfeito, ria, chupando, com ares saciados, a asa loura do frango.
Ah achava Ruy Vaz conforto e fartura. Entrava de fronte alta e os convivas acatavam-no, porque o visconde o considerava, não o dispensando à mesa, querendo-o sempre perto para as tremendas discussões.
O visconde era lido em Cantu e discutia, com ardor, a história, tendo grande simpatia pelos tiranos. Luiz XI era o seu homem. À mesa a sua opinião era como um oráculo. Luiz XI era o homem da mesa e como, entre os comensais, havia um dotado de excelente voz de barítono, não raro o nome do rei carola era retumbantemente apregoado em uma ária escrita expressamente por um músico misterioso para o possante cantor. Só Ruy Vaz condenava o companheiro fiel de mestre Jacques Coictier. O visconde rugia, espumava; o casarão retumbava e os criados, tremendo, juntavam-se à porta, curiosos daquela desusada cena.
Purpúreo, brandindo a carcaça do frango, o fidalgo citava opiniões e Ruy Vaz invocava autores. Às vezes tornava-se necessária a intervenção de amigos para que os dois homens chegassem a um acordo, ficando, porém, o visconde na sua frase: que Luiz XI era o seu homem e insistindo Ruy Vaz em dizer que ele não passava de um grandíssimo patife.
E o visconde adorava o romancista, justamente porque nele encontrava um adversário. Sucedia-lhe com as opiniões o que a Polícrates sucedia com a fortuna — nunca era contrariado, como o tirano nunca teve desejo que não fosse satisfeito. E o fidalgo revoltava-se, tinha cóleras surdas, não podia sacudir a poeira que pousado sobre a sua erudição, tinha de roer em silêncio o seu frango.
— Homero foi uma besta! — exclamava o visconde; e a mesa em coro: "Uma veneranda besta!"
— Shakespeare foi um plagiário! — e o uníssono dos quarenta talheres: "Foi sim, senhor!"
Era horrível. Ruy Vaz indignava-se:
— Besta! Homero...? Besta é quem o chama. E travava-se a resinga, mas o visconde sentia-se aliviado, aquilo fazia-lhe bem. Ruy Vaz era um homem bem diferente do barítono. Ah! O barítono...! Certa vez, depois do jantar, sentindo-se o visconde indisposto, chamou-o e disse-lhe:
— Ó coisa, dá umas voltas aí pelo parque, correndo, para ver se faço a minha digestão, que está hoje morosa. Contava o fidalgo com um protesto enérgico, mas desiludiu-se vendo o cantor atirar-se, pelo parque, às pernadas, como um gamo, bufando, perseguido pelos cães. E o visconde, triste quando o viu roxo e gotejando como um chuveiro, chamou-o:
— Obrigado, meu amigo. Sempre me fez bem essa corrida. Hás de fazer agora o mesmo todos os dias depois das refeições. Os médicos recomendaram-me exercícios. E o barítono, esfalfado, ofereceu-se para fazer mais algumas voltas se S. Exa. quisesse.
Ruy Vaz, não — era um amigo leal e um adversário teimoso como convinha.
Anselmo, esse, sem amigos influentes, lançado no grande desconhecido, passeava com orgulho a sua fome. Enquanto o estômago se lhe contraía, em rodas literárias, no fundo obscuro dos cafés, discutia os dramas de Shakespeare, os poemas de Byron, a prosa sonora e rútila de Flaubert, a fina argúcia de Balzac e o sentimentalismo de Musset.
Em torno dele andavam os caixeiros conduzindo pratos que exalavam suavemente e ele, lançando os olhos para as mesas próximas, só via gente comer e aquelas mandíbulas pareciam trincar-lhe o coração. Eram tenros churrascos, entrecostos com batatas; era o rim, era a costeleta, eram ovos e o generoso vinho que passava com um grugulejo por aquelas voracíssimas goelas... Ah! Como ele continha os ímpetos sanguinários! Engolia em seco e continuava:
... Quando foi representado o drama Romeu e Julieta, Shakespeare... E o estômago a pensar em costeletas enquanto o espírito rememorava episódios da vida acidentada do poeta de Stratford. Consolava-se com certo desvanecimento lembrando-se de quantos, no começo da vida literária, haviam sofrido as mesmas torturas e em climas ásperos, tiritando, tarantulamente, à neve. Ele ao menos, tinha a benignidade do clima paradisíaco, sem invernias que o encarangassem ou congelassem, como acontecera aos soldados de Napoleão na Rússia, e tinha a esperança de vencer grandes prélios literários, impondo-se à Pátria e ao mundo com os períodos da sua pena.
Datam dessas duas famintas semanas os primeiros cantos do "deslumbrante" poema em prosa: Guanabara, mito da criação do mundo americano segundo a tresloucada imaginação de Anselmo.
Num domingo, à tarde, reunindo os companheiros no mirante, o autor procedeu à leitura do poema magnífico, estrondoso de adjetivos. Lins comparou-o à Teogonia de Hesíodo, Duarte colocou-o a par da Divina Comédia. Ruy Vaz, entretanto, desafinou no coro encomiástico, emitindo um juízo severo, que foi a condenação da obra-prima.
Quando Anselmo terminou a leitura, o romancista, acendendo um cigarro, ponderou:
— Acho o teu poema por demais cerebrino; não é propriamente uma concepção, é um delírio intelectual ou antes: não é o produto de uma emoção estética, é a resultante mórbida de uma superexcitação. Em palavras mais claras: o teu protagonista, esse Anhangá merencório, subiu do abismo do teu estômago. Um bife com petits pois bastava para fazer desse revoltado o mais pacífico dos anjos. O cérebro, meu amigo, é escravo do estômago. Do nada só pode sair o nada, disse o velho Lear a Cordélia. A crítica, mais tarde, quando analisar o teu poema, se tiveres fome bastante para o concluir, há de dizer, com azedume, que eras um pessimista da casta biliosa dos Schopenhauers, sem perceber que a tua filosofia sinistra não veio de uma interpretação sistemática, Senão de uma fome implacável e desesperada. Lê Epicuro e aprende os segredos do bem viver. O teu poema tem belezas, mas atordoa.
— Achas que não presta?
— Não, acho-o superabundante: tem a desconexão de um delírio
— E se eu retocá-lo?
— Come primeiro. Antes de tomar o buril procura um talher; em vez do pó de diamante, atira-te à farinha seca. Come. Com a digestão tranqüila estou certo de que hás de ver as agudas arestas do teu poema. Vai a um frege! A inanição alucina. Não tomes por inspiração o que é apenas desvairo de inanido. Vai a um frege.
— Sim, isso é bom de dizer. Como queres que eu vá a um frege, se nem cigarros tenho?
— Eu tenho, toma; ofereceu o Toledo.
— Grande coisa o talento! — exclamou Anselmo atirando uma baforada ao ar.
— Grande coisa! — repetiu Ruy Vaz.
Toledo arregalou os olhos e meneou com a cabeça.
O céu estava cor de chumbo. Nuvens grossas, pesadas, rolavam com lentidão, amontoando-se; um vento morno soprava e, como se não bastasse aos pulmões, tinha-se uma sensação abafada de asfixia como se aquela abóbada viesse caindo pouco a pouco, sufocando, oprimindo.
Nuvens de poeira encobriam a cidade sob um véu denso. Pombos voavam atordoados, fugindo à tormenta próxima. Os silvos das locomotivas vibravam com maior intensidade. E surdos, longínquos, ameaçadores, trovões roncavam.
A Tijuca estava nublada, nuvens fluíam em névoa tênue como fumo esgarçado e a montanha ia aos poucos desaparecendo como se o céu houvesse baixado sobre ela.
Coriscos zebravam a densidão do espaço e escurecia rapidamente em crepúsculo sinistro. O ar tornava-se mais pesado, rarefazia-se, posto que, de ponto em ponto, em revoluteio, uma tromba de poeira espiralasse.
Vinham, de muito longe, os sons de um sino. Pelos quintais mulheres recolhiam, à pressa, a roupa que espadanava nas cordas. A cidade foi desaparecendo encoberta por uma bruma pesada que vinha avançando rápida. Toledo, com os olhos alongados, estendendo a mão, anunciou:
— Aí vem a chuva.
Ouvia-se como um ruflo e, quase no mesmo instante, grossas gotas bateram nos telhados secos, depois a chuva caiu a jorros, com rumor e um cheiro forte de terra ardente subiu.
Os rapazes precipitaram-se para a sala borrilados e um formidável trovão estrondou reboando longamente. Rajadas violentas batiam nos vidros, invadindo a sala. O vento rugia.
Toledo, mais cuidadoso, correu a descer as vidraças da sala da frente e a tempo porque já andavam papéis voando.
Dona Ana, em baixo, bradava à Leonor, que limpava o ralo do quintal para que as águas não empoçassem e a escuridão fez-se mais densa, alumiada, de quando em quando, pelos lívidos relâmpagos.
As gárgulas jorravam com ímpeto, a rua começava a encher-se quando Anselmo, encostando o rosto aos vidros empanados pela chuva, pôs-se a pensar na terrível noite que lhe estava reservada. Como havia de ficar sem uma xícara de café, ao menos, e adoentado, febril, sentindo tamanha fraqueza que as pernas tremiam-lhe e um suor viscoso ressumbrava-lhe das mãos?
Olhava, mas não via aquela torrente que desabava do céu, não via os córregos que rolavam precipitados e imundos pelas sarjetas, não via os homens que, de calças arregaçadas, com as pernas atafulhadas na água lodosa, iam e vinham sob o aguaceiro violento.
Pensava nos tempos felizes em que vivera acariciado entre a mãe e o pai, velhos ambos: ela, cantarolando baixinho modinhas sertanejas, à luz do lampião, enquanto cerzia a roupa branca, lavada e cheirando a ervas da campina; o velho, estirado no canapé, enrolando a barba, a pensar nos afazeres do dia seguinte. A um canto, sobre uma cadeira, o gato doméstico, um gordo maltês, dormindo tranqüilamente e ele, com os livros abertos, a tomar notas, mas já perseguido pela imaginação, já arrebatado por essa sedutora, que, numa página de história antiga, como se animasse as letras dos livros, fazia saltarem exércitos de bárbaros, mostrava cidades em chamas, dava uma vida de sonho a todas as passagens descritas concisamente pelos historiadores.
— Ah! Tempos idos! Então não conhecia a fome nem julgava que pudesse um dia conhecê-la. Nada lhe faltava: tinha a cama Sempre feita, os seus livros sempre em ordem, o melhor prato à mesa e, se lhe achavam o pulso um pouco agitado, se lhe sentiam a fronte mais quente, quantos cuidados, e que sobressaltos: a mãe aflita, o pai indo ver o médico, e tudo quanto queria, até aquela caixa de música que lá estava calada, sobre a sua mesa, que lhe fora dada, para distraí-lo, quando uma febre o prostrou na cama.
Ah! Tempos... E via-se ali sozinho, com fome, com febre e sem esperança de poder sair, porque o mesmo Deus parecia querer martirizá-lo com aquela tormentosa noite de aguaceiro e raios.
Quando se retirou da janela tinha os olhos úmidos. Borrifos da chuva, talvez...