Foi nessa noite que, por intermédio do Freitas, um satírico baiano, ele conheceu Octavio Bivar. Desciam a rua do Ouvidor quando encontraram o poeta diante de uma vitrina admirando os braceletes que faiscavam nos escrínios de veludo. O Freitas atirou-lhe uma palmada ao ombro. O poeta voltou-se repentinamente, espantado, dando, porém, com o amigo, tranqüilizou-se:

— Que fazes aí?

— Admiro. E tu, como vais?

— Bem. Conheces aqui o Anselmo?

— De nome.

— Este é o Bivar, o homem que ouve estrelas. Vamos tomar alguma coisa.

— Podemos ir.

— No Deroche.

— Não, aquilo é impossível; não se pode estar à vontade. Vamos ao Gambrinus, é uma bodega honesta e desconhecida ainda.

— Na rua 7?

— Sim.

Dirigiram-se pausadamente para a cervejaria e, logo que se abancaram, o Freitas atirou-se aos tremoços pedindo ao poeta que recitasse alguma coisa. Bivar desculpou-se: andava atropelado, não tinha tempo para escrever um verso, uma vida de cão, perse

guido por um senhorio inclemente. Podia recitar qualquer coisa antiga...

— Pois sim. O Julgamento de Frinéia, por exemplo. Conheces, Anselmo?

— Não.

— Uma coisinha, disse o poeta, pigarrreando.

Voltou a cadeira, fincou o cotovelo na mesa, lançou um olhar pela casa e, com os dedos enfeixados, disse solenemente, em tom profundo, balançando o corpo:

Mnezarete — a divina e pálida Frinéia - Comparece ante a austera e rígida assembléia Do Areópago supremo. A Grécia inteira admira Aquela formosura original, que inspira E dá vida ao genial cinzel de Praxiteles, De Hiperides à voz e à palheta de Apeles.



Os olhos imensos do poeta saltavam à flor do rosto e rolavam num êxtase divino. Soerguia-se, como que uma força misteriosa o levantava, por vezes, e a sua voz, cava e lenta, tinha um quer que fosse de profética como se viesse de um ádito oracular. O Freitas, embevecido, dava com a cabeça, cerrava os olhos e mastigava tremoços. Anselmo fitava o poeta com admiração. Ao fundo da casa dois homens, em mangas de camisa, falavam alto. O Freitas não se conteve, voltou-se com um "psiu!" e os homens começaram a sussurrar — só a voz do poeta rolava, profunda e grave, num turbilhão de rimas sonorosas.

— Admirável! — exclamou o Freitas quando o poeta, com um gesto largo, repetiu as palavras de Hiperides, arrancando dos ombros da hetera a túnica que lhe encobria o corpo maravilhoso:

"Pois condenai-a agora!"

Não ficaram, por certo, mais maravilhados do que os dois rapazes, os velhos austeros do Areópago.

— Soberbo! — exclamou o Freitas reclamando mais cerveja. Anselmo ficou algum tempo a olhar o poeta, sem dizer palavra, arroubado.

— Agora, o senhor: recite-nos alguma coisa.

— Isto não faz versos, disse, com desprezo, o Freitas. É só prosa chilra.

— Faz muito bem. A prosa; se não tem a nobreza do verso, é mais ampla; o pensamento move-se livremente no período sem os apertos da métrica, sem a preocupação monótono da rima. A prosa! A excelsa prosa! Não imagina como eu amo a prosa, acho-a até mais difícil do que o verso. A prosa marmórea de um Flaubert, de um Saint-Victor... oh!

— Preferes, então, a prosa ao verso?

— Prefiro.

— E por que não fazes, de preferência, prosa?

— Hei de fazê-la.

— Ora, qual!

— Hás de ver.

— Tu és poeta e hás de ser sempre poeta, quer queiras, quer não.

— De acordo, mas poesia não quer dizer rima, poeta não é o que faz estrofes. Há por aí muito animal que faz versos impecáveis e que tem tanto de poeta como eu tenho de cantor de árias. A estrofe é um excipiente, é um meio de expressão, é a plástica. O sentimento é tudo.

— A propósito de poetas: disseram-me que assassinaste aquele poeta que andava contigo?

— Que assassinei...!?

— Sim...

— Perdão... Eu conto o caso. Esse poeta, que era o meu algoz, foi jantar comigo e comeu desbragadamente. Só havia um prato, mas abundante: bacalhau. O homem empanturrou-se e, à sobremesa, que constou de uma penca de bananas, recitou-me o famoso soneto: Dor! que termina por um terceto abracadabrante:

Africana sem fim a marchar sem chapéu Cheia de mágoa e dor a mãe tonitruosa Uiva como uma cobra através do escarcéu...

Quando ouvi tais coisas tive ímpetos de o esganar, confesso, mas contive-me, fui prudente. O homem, porém, depois do jantar, acompanhou-me e quis dormir comigo. Foi. Às duas da manhã acordou ávido, pedindo água. Eu, que estava morto de sono, disse-lhe que não tinha água no quarto. Ele uivou: "Que morria!" Para livrar-me do monstro, disse-lhe, então: Vai ao banheiro, abre-o e bebe no chuveiro... Disse e voltei-me para a parede recaindo no sono. De manhã o homenzinho estava a estourar: arfava, urrava, vociferava:

Africana sem fim a marchar sem chapéu...

Foi transportado para a casa da família em carro e curou-se. Ainda, depois disso, ouvi o soneto tremendo. Ele morreu depois, de uma febre. Era hediondo!

Levantaram-se. A noite negra ameaçava.

— Parece que vem muita chuva. Parece.

— Vou já para casa, adeus! Vocês ficam ainda por aqui, não?

— Ficamos, disse Anselmo. Com uma noite destas não me atrevo a ir para a Cascadura.

— Está em Cascadura?

— Estou, mas desço amanhã. Não posso morar tão longe trabalhando em um jornal da tarde. Entrei para a Gazeta.

— Ah!

— Bem, adeus, rapazes! — disse o Freitas.

— Adeus! E nós?

— Vamos dar uma volta por aí. Adoro esta cidade à noite.

Seguiram lentamente. Fulvos relâmpagos fremiam encandecendo o céu. Raros transeuntes, pressentindo a tempestade, apressavam o andar. De espaço a espaço uma rija lufada levantava colunas de poeira; batiam janelas e rumores longínquos de trovões rolavam surdamente.

— Em que jornal trabalha? — perguntou Anselmo rompendo o silêncio.

— Eu? Não trabalho em jornais. Considero a imprensa uma indústria intelectual. Entra a gente para o jornalismo com um bando de idéias originais e retalha-as para o varejo do dia a dia. Quando vejo um poeta ou um prosador a fazer notícias, tenho piedade. Que diria você se encontrasse o Dalou, o grande Dalou, em casa de um marmorista da rua da Ajuda, com um gorro de papel à cabeça, talhando, no mármore industrial, anjos funéreos para as sepulturas de Catumbi? É ignóbil! O jornalismo está para a Arte como um desses anjos bojudos de cemitérios estão para o Laocoonte. Eu, se me metesse a fazer notícias, enlouquecia. Sinto-me incapaz, a local aterra-me. Tentei, uma vez, redigir a mais simples das notícias: um caso banal de polícia. Pois, meu amigo, saiu-me um substancioso artigo político. Quem pode compor um período perfeito numa sala de redação, interrompendo-se, de instante a instante, para acudir à reclamação de um sujeito que pede providências contra a falta d'água? É hediondo!

— Pois eu vou trabalhar na Gazeta.

— Vai escrever crônicas...

— Não sei ainda.

— Não faça notícias; a notícia embota. Ataque as instituições, desmantele a sociedade, conflagre o país, excite os poderes públicos, revolte o comércio, assanhe as indústrias, enfureça as classes operárias, subleve os escravos, mas não escreva uma linha, uma palavra sobre notas policiais, nem faça reclamos. Mantenha-se artista: nem escriba nem camelote. Havemos de vencer, mas, para isto, é necessário que não façamos concessões. O redator não quer saber se temos ideais ou não: quer espremer. Quanto mais suco melhor. O prelo é a moenda e lá se vai o cérebro, aos bocados, para repasto do burguês imbecil e, no dia em que o grande industrial compreende que nada mais pode extrair do desgraçado que lhe caiu nas mãos sonhando com a glória literária, despede-o e lá vai o infeliz bagaço acabar esquecidamente, minado pela tuberculose.

Um homem de talento que se mete em jornais suicida-se. Já se vê que não me refiro aos agitadores da opinião, aos que fazem o fluxo e o refluxo das marés sociais, esses não têm outro campo senão o jornal. Os políticos que escrevem sobre a emoção efêmera do momento não devem fazer livros. O livro fica, o jornal passa e raramente deixa vestígio. O artigo do dia mata o artigo da véspera, a opinião de hoje prevalece, a de ontem morre, mas com o artista consciencioso, não. Demais, meu amigo, egoísmo antes de tudo: o jornal é o redator político, o mais... que vale? Fica-se sempre à sombra, por mais que se faça. Não vale a pena. O trabalho de um ano no jornal não vale uma página requintada de um livro de Arte.

— Mas que se há de fazer?

— Escreva livros.

— Para quê, se não há quem os edite?

— Escreva contos, fantasias, crônicas.

— Não pagam. Fazem ainda grande favor quando os publicam.

— Pois, meu amigo, que me venham pedir versos ou prosa de graça. Quer saber? Os culpados da depreciação literária são os próprios literatos: Alencar vendia os seus romances ao Garnier por quatrocentos mil réis. Quantas edições tem O Guarani? Está ainda na primeira e é conhecido em todo o Brasil. O editor fez com o romance o milagre de Tiberíade: multiplicou-o. Se houvesse fiscalização a coisa seria outra.

Chegaram ao largo do Rocio justamente quando caíam as primeiras gotas grossas da chuva. O povo corria, metendo-se pelas casas. Tílburis passavam à disparada e a chuva ruflava, tocada pelo vento áspero, que atirava bátegas das lojas.

— Que tempo! — exclamou Bivar levantando a gola do casaco.

— Para onde vamos nós? Se fôssemos à Maison? Estamos encharcados.

— Queres afrontar a rajada?

— Vamos.

— Então vamos.

Encolhidos, rente das casas, saltando sobre os jorros das gárgulas, foram apressadamente até a rua da Carioca e detiveram-se na esquina, indecisos, sem ânimo de atravessar a rua. Já pelas sarjetas rolavam córregos grugrulhando nos ralos dos escoadouros. Relâmpagos flamejavam e os trovões, mais próximos, reboavam num canhoneio incessante.

— Um! Dois!... E Bivar atirou-se, a grandes pernadas, atravessando a rua seguido de Anselmo.

A Maison transbordava. Os dois, escorrendo, relanceavam olhares pesquisadores quando ouviram um "psiu" e logo descobriram Patrocínio, num grupo, a uma das mesas do centro.

— Eh! Cheguem-se ao Ararat.

— Ora! Apanhamos esta carga de água nas costas.

Eram do grupo o Lins, o Neiva, Ruy Vaz, o Duarte e um rapaz alto e claro, de olhos miúdos e espessos bigodes negros, muito reluzentes; largo feltro desabado escondia-lhe a fronte.

— Conhecem o Luiz Moraes? O grande poeta republicano? Anselmo Ribas, Octavio Bivar.

O poeta dos grandes bigodes entendeu a mão aos rapazes e resmungou uma amabilidade. Sentaram-se. Os caixeiros substituíam os copos e as garrafas. Patrocínio estava com a palavra.

— Falávamos do jornal...

— Novos planos?

— Novos e verdadeiros. Dizia eu que se pudesse contar com todos vocês faria o primeiro jornal da América do Sul. Com dois anos de trabalho estávamos todos ricos, fretávamos um vapor e partíamos para a Europa.

— E a abolição, José?

— A abolição está feita. E questão para mais uns meses.

— Pois sim!

— Pois sim? Mas que há de fazer o governo constrangido, como está, pela opinião pública? O Norte já se manifestou e o Sul há de acompanhá-lo. Demais, meu amigo, o escravo já não é um submisso, é um revoltado. Nas fazendas cada negro é um combatente e o êxodo aí vem. Quando começar o abandono da terra, não um a um, mas aos bandos, ostensivamente, em face dos senhores que não hão de querer jogar a vida, que há de fazer o governo? Mandar contra os que defendem um direito sagrado a tropa armada? Não! E ainda que mande: conheço o exército, sei que nenhum soldado se prestará a exercer o ofício miserável de capitão-de-mato. A abolição é uma questão vencida.

— Deus queira!

— Depois da abolição a república, rosnou Moraes.

— A república! — exclamou o Lins, assombrado.

— E por que não? A república, sim! — afirmou o poeta assomado. Quer você que continuemos com um rei de burla e com uma freira melomaníaca? Está enganado. Pego em armas, se for preciso.

Ora, Luiz... ia a dizer o Neiva, contrariando o poeta; ele, porém, atirou um murro à mesa e, erguendo-se, com os bigodes arrepiados, os olhos fuzilantes, bufou:

— Pego em armas e em você também, pelo cós das calças, está ouvindo? Em você mesmo!

Ruy Vaz interveio:

— Que é isto? Já vocês começam.

O Neiva levantou-se, distribuiu apertos de mão:

— Boa noite... boa noite. E encaminhou-se para a porta.

— Pois não! Este senhor entende que há de sempre impor a sua opinião. Onde ele está ninguém mais fala. Pego em armas! Que tem ele com isso? E se me aparecer pela frente, quando estiver defendendo os direitos do Homem, prego-lhe uma bala no fígado.

— Mas Luiz...

— No fígado, já disse. Em política e em Arte sou intransigente. Mas o Neiva voltou:

— Se não estivesse chovendo tanto eu mostrava. Sentou-se.

— Mostrava... mostrava o quê? Homem, você não me aborreça.

— Mas quê é isto, gente...

— Ó Luiz, pelo amor de Deus, deixa-me em paz.

— Pois é isto! Não me contrarie. Tome a sua cerveja muito quieto e deixe-me cá com as minhas idéias. Eu sou pior que Cimourdain. Estendeu o braço sobre a mesa e, com uma voz cavernosa, disse: — Prestigio a lei! Mas esta gente não estuda. Fala-se em evolução e ficam todos embasbacados. Leiam Spencer.

Mas o Patrocínio conseguiu desviar a conversa para a literatura, e, à meia noite, tendo cessado a chuva, quando se levantaram, o Neiva, muito misterioso, de braço com o Moraes, oferecia-se para levantar uma barricada na rua do Ouvidor, esquina do largo de S. Francisco e o poeta respondia:

— E lá me hás de achar com as armas na mão.

— Correto! Então está feito?

— Está feito, por que não? E pôs-se a cuspinhar.

— Para a vida e para a morte!

— Para a vida e para a morte!

E despediram-se. Anselmo seguiu só para o hotel, pensando nas palavras de Bivar: "Não faça notícias, a notícia embota."

Uma lua sinistra rolava entre grossas nuvens e as goteiras pingavam lentamente.