Anselmo estreou na imprensa com um piedoso artigo sobre os velhos negros. Antes de o mandar para a tipografia quis ouvir a opinião do Patrocínio. O jornalista, às últimas frases do escrito patético, atirou-se ao escritor aos beijos, sagrando-o em presença do vesgo que redigia o noticiário, cujas notas um magro repórter ia cavar nas delegacias trazendo-as esparsas pela camisa, nos punhos, no peito porque, com a precipitação, nem tempo lhe sobrava para procurar papel. Anselmo esperou, com ânsia, o jornal e, quando o primeiro rolo apareceu no escritório, avançou, sôfrego, para o balcão, tomou uma folha e saiu triunfante indo para o Pascoal ler aos do grupo, os "períodos dourados".

Justamente nesse tempo a campanha abolicionista chegara à sua maior intensidade. À luz do sol, nas ruas, concitava-se à revolta. Para os lados da Gávea, em frente ao mar livre, no Leblon, havia um quilombo mantido pela Confederação Abolicionista e, no escritório da Gazeta da Tarde, que era o grande homizio de Chan, negros e negras, sentados melancolicamente, fumavam esperando que lhes dessem destino. Eram constantes os conciliábulos, falava-se em furtos de escravos; e gente de todas as castas prova os redatores denunciando crimes de escravagistas despeitados. A polícia punha em campo os seus esbirros mais sagazes mais atrevidos capoeiras para desfazerem as reuniões e interromperem as conferências espavorindo o povo.

Patrocínio, convidando outros chefes da propaganda, resolveu um grande comício no Politeama, à noite. Todos os jornais abolicionistas anunciaram e, no dia aprazado, à tarde, um homem misterioso apareceu na redação para prevenir o intrépido jornalista: "que uma grande malta estava assalariada para invadir o teatro no momento em que o primeiro orador aparecesse na tribuna".

Patrocínio transmitiu o aviso aos companheiros e à noite, com estandartes, seguiram todas as sociedades abolicionistas para rua do Lavradio.

O imenso barracão regorgitava quando assomou à tribuna Quintino Bocayuva, calmo, dirigindo-se ao povo em frase sóbria e ponderada. Repentinamente, porém, uma grita, à porta, alvoroçou o auditório. Eram os capoeiras comandados por Benjamin.

Aos gritos da malta respondeu o povo com assuada tremenda. Anselmo estava em um dos camarotes da entrada e, num ímpeto, tomou uma cadeira arremessando-a no meio da farândola. Foi o sinal da luta. O povo avançou em coluna e começou o combate.

Navalhas reluziam, tiros estrondavam, cadeiras entrebatiam-se, partindo-se no ar, violentamente arremessadas. Em pouco os destroços formaram alta barricada por trás da qual o povo continuava a defender-se heroicamente. Anselmo, já rouco, bradava contra a infâmia. De repente, empunhando um pé de cadeira, atirou-se arrojadamente do camarote caindo no meio do grupo a desancar, amouco. Vários populares seguiram-lhe o exemplo temerário e, na estreita passagem, travou-se uma luta tremenda sendo os capoeiras repelidos.

Só então apareceu a polícia azafamada, atirando os cavalos sobre o povo. Houve protestos, ameaças: por fim, na platéia, uma voz bradou possantemente: "Abaixo o rapa-côco! Morra o escravocrata!" E um clamor tormentoso de duas mil vozes furentes atroou "Morra!" Mas vários "psius" silvaram. Voltaram-se todos para a tribuna: Quintino Bocayuva, calmo, ereto, alisava a barba. Palmas estrepitaram e, o orador, retomando serenamente o fio do discurso, continuou a demonstrar que a causa dos escravizados, que todo o Brasil adotara, havia de vencer, embora a polícia, pactuada com os fazendeiros, procurasse, por meios criminosos, sustar a marcha vitoriosa da idéia. Seguiu-se com a palavra José do Patrocínio que lançou um repto à monarquia: "Ou cede à vontade do povo ou cai. Citou Quinet, reproduzindo a imagem do oceano que se vai impondo a pouco e pouco, subindo degrau a degrau, ameaçador e sinistro e, terminando, anunciou, para muito breve, a Redenção da Pátria Brasileira."

À saída, como circulasse o boato de que a malta estava à porta armada, para desfeitear os oradores, o povo reuniu-se e desfilou arregimentado, levantando vivas aos heróis da noite.

Anselmo, com as roupas retalhadas, sem chapéu, vociferava e, diante do edifício da Polícia, levantou um — morra! desesperado que, por felicidade, não lhe saiu da garganta, tão rouco estava.

Na redação, onde ficaram um momento repousando, Patrocínio e outros chefes abolicionistas, comentaram a bravura do escritor: "Não o julgavam tão valente..." Anselmo estava alucinado: "Queria ir à Polícia! Queria encontrar o Benjamin para quebrar-lhe a cara." E fulo, suado, esbaforido, com os olhos coruscantes, brandindo a bengala lascada, rugia:

— Parto-lhe a cara! Se é homem também eu sou! Parto-lhe a cara! Num salto ágil quis ganhar a porta. Detiveram-no a tempo, ele, então, aos arrancos, falando para o povo que enchia o escritório, contou os seus feitos abolicionistas.

— Também acoitei escravos! Estão aqui oito que mandei de S. Paulo... e hei de acoitar. Canalhas! Parecia louco.

— A escravidão é um roubo! — esgoelou um velhote agitando o guarda-chuva.

— Apoiado! — bradaram todos e o velho, inspirado, pôs-se a esganiçar do meio da turba, espichando a cabeça, sacudindo em uma das mãos a cartola e na outra o guarda-chuva:

— Patrocínio, teu nome há de ficar gravado no Panteon da História do Brasil. Tu és a nossa esperança... Não desanima, Patrocínio, meu velho, e, no dia em que for necessário um homem para combater a teu lado, conta comigo! O Januário, Patrocínio... O Januário calafate! O guarda-chuva e a cartola dançavam acima cabeças e o velhote, frenético, energúmeno, já rouco, urrava: Conta comigo... E estentorou: "Viva José do Patrocínio... gente!" Todos bradaram. "Oôôôh!" Mas a reunião começava a tornar-se inconveniente. Gritos sediciosos rompiam por vezes: "Morra o carrasco!... Viva a República!" Patrocínio dirigiu-se povo pedindo calma. Vários vivas atroaram e a multidão foi escoando até que recaiu o silêncio. A patrulha passeava rua abaixo, rua acima.

— Menino, você é uma fúria!

Anselmo procurava compor o casaco estraçalhado.

— O diabo é que não tenho outro casaco e perdi o chapéu.

— Não tens outro casaco?

— Não.

— Quem não tem roupa não se mete em camisa de onze varas, disseram.

— Oh! És tu, Lins?

— Sou eu. Venho oferecer-te o meu braço forte.

Num rápido olhar Anselmo compreendeu que o poeta não estava em estado de lhe oferecer socorro.

— Amanhã mando levar um casaco à tua casa, disse o Patrocínio.

— E um chapéu, ajuntou Anselmo.

— Queres tomar um tílburi?

— Acho melhor.

— Toma. Tenho aqui pouco, mas chega. Não estás ferido?

— Não.

— Então vai.

— Até amanhã. Olha o casaco.

— Não há dúvida.

À porta, o Lins, agarrado ao braço de Anselmo, oscilava, risonho e baboso, oferecendo-lhe o braço forte:

— Estou danado! Sou capaz de agarrar um permanente por uma perna e bumba! Abaixo do cavalo! Não imaginas! Quando eu tinha quinze anos derrubava touros a murro. Estou danado! Perdeste o chapéu?

— Perdi.

— Queres o meu?

— O teu? E tu...?

— Eu? Já estou de touca, não faz mal. Rompeu a rir, às guinadas, pendurado ao braço de Anselmo. É isto: não posso comer feijoada, fico logo assim.

— Foi então a feijoada que te pôs nesse estado...?

— Foram os pertences. Vendo, porém, que Anselmo encaminhava-se para o meio do largo, fez um esforço e deteve-o: Onde vais?

— Vou tomar um tílburi.

— Qual tílburi! Vamos tomar outra coisa: um conhaque, por exemplo.

— Não, não posso. Olha como estou. Queres que me vejam assim roto?

— Que tem? Há razões gloriosas. Eu hoje estou danado! Vou dormir contigo. Há espaço na tua cama?

— Pois não.

— Então vou. Não posso dormir no meu quarto: é cada mosquito que parece um frango. Quando ouço a zoada vou devagarinho com a mão, agarro o bicho pelas pernas e zúquite! Dou com ele na parede e esborracho-o. Vamos tomar alguma coisa.

— Não, Lins; estou fatigado. Vamos ver se o cocheiro nos leva no mesmo tílburi.

— Eu não peso nada. Posso ir ao colo.

Felizmente Anselmo encontrou um cocheiro amável. Mas que trabalho para acomodar o Lins!

— Para onde vamos?

— Rua do Riachuelo.

— Olhe, cavalheiro, vá devagar porque a rua está jogando muito. Decididamente não posso comer feijão. Estou danado! Que morro é aquele alto?

— Onde?

— Ali! Não estás vendo as luzes?

— Que morro? Que luzes? Não vês que são estrelas?

— Estrelas?! É verdade! Estrelas... Mas como o céu é alto, hein...! Que horror! Mais devagar, cavalheiro. Queres saber? Há dias, quando eu voltava para casa, às cinco da manhã, encontrei um cavalo de tílburi deitando fumaça pelo nariz. O seu cavalo fuma, senhor? Mais devagar... Homem, tu moras na rua do Riachuelo ou na estação do Riachuelo? Parece que estou andando desde o princípio do mês.

— E tu pesas, Lins!

— Não sou eu, filho, é a cabeça... Uma feijoada completa, imagina!

— Aí! Pare.

Que trabalho para descer o Lins e para deitá-lo, que trabalho!