Chegando à rua do Ouvidor encontrou Fortúnio macambúzio, a mascar um charuto, encostado à porta da Maison Rouge.
— Que é isso, homem? Estás fúnebre.
— Estou com a morte na alma; e suspirou profundamente: Ai!
— Mas que tens? Fala...
— Recebi uma carta do Norte... Sou um grande desgraçado! Arrancaram-me a alma! Atirou a ponta do charuto à sarjeta e, com os olhos úmidos, fitando, com desprezo, o resto do trabuco que fumegava: E ainda há quem defenda a indústria nacional... Está um homem com o coração alanceado, compra um charuto baiano para distrair-se e dão-lhe uma espiga daquela ordem. Coitado de mim!
— Mas que dizia a carta? Tens algum enfermo na família?
— Não. Eu te digo, vou contar-te a verdade, mesmo porque preciso desabafar senão estouro, estouro, palavra de honra. Estou até aqui! — e pôs um dedo na garganta. Tudo irrita-me — a alegria do céu, a alegria da terra. Eu digo como Job: maldito seja o dia... Que suplício! Um homem com o coração dolorido, com a alma despedaçada, obrigado a estar aqui contemplando a alegria dos felizes. Se eu pudesse agarrava toda essa gente e esganava. Ah! Não poder eu fazer com as minhas lágrimas um dilúvio... Ai!
— Mas conta-me a tua tristeza.
— Conto mesmo. Valha-me Deus!
— Tu não estás muito direito, Fortúnio!
— Como não estou direito?!
— Parece-me que o teu mal..
— É todo moral...
— ... e de espírito.
— Ah! Espírito... Pensas que andei pelas baiúcas. Seja tudo pelo amor de Deus! Pois vou contar-te. Vamos. Quero que me ouças religiosamente.
— Como se fosse o teu confessor.
— Não! — exclamou empertigado; não admito confessores, sou ateu. Meu confessor é o meu amigo. Entraram. Uma garrafa de Guiness...
— Vais tomar cerveja preta?
— Vou. Estou de luto: só como feijão e não bebo bebidas brancas. Já amaste, Anselmo?
— Já.
— E sofreste?
— Muito!
— Então podes compreender a minha dor. Ouve: quando saí de Alagoas deixei minha alma com uma linda moça. Ah! Não imaginas! A morena mais bela que Deus pôs no mundo. Antes de partir, chamei-a e disse-lhe: "Fulana, este meio é muito acanhado para as minhas aspirações, vou tentar a vida em outra parte, vou fazer fortuna para poder oferecer-te, com a mão de esposo, os gozos que só a riqueza dá. Somos ambos jovens. Tu, se me tens amor, como dizes, posto que venhas a sofrer saudade, não me esquecerás. Eu serei teu e, pensando em ti, redobrarei de esforços para abreviar o meu retorno. Se me prometes esperar, parto contente e, por aquela estrela clara, que nos olha do céu, juro que, em breve, estarei a teus pés depondo, não só minha alma como o fruto do meu trabalho." E ela, Anselmo, a pérfida, que é muito versada em romances de cavalaria, iludiu-me com palavras doces e com lágrimas falazes: "Por que não te hei de esperar? Não era maior que o meu o amor das damas de outrora que juravam fidelidade aos cavaleiros empenhados na guerra santa. Muitas, porque os seus noivos não tornavam, fiéis ao juramento feito, vestiam a estamenha e encerravam-se nos claustros. Queira o Senhor que eu não seja forçada a seguir esse destino, mas por aquela estrela juro, meu Fortúnio, que, se por mal do nosso amor, não tornares ou por morte ou porque me hajas esquecido, seguirei o caminho triste de um mosteiro e, na minha cela solitária, direi tanto o teu nome que os próprios muros hão de decorá-lo. Se entendes necessária a partida parte, e que o bom Deus te guie, o meu amor irá contigo. E vai! Certo de que, à tua volta, hás de encontrar-me fiel ao que prometo."
Foi isso no quintal de minha casa, perto da cerca. Selamos essa promessa com um beijo e parti. Não lhe podia escrever; ela, porém, lendo os meus versos, revia-se em todos eles porque, até hoje, outra não foi a inspiração de minha alma e, por um amigo fiel, mandava-lhe recados. Aqui, bem sabes que faço pela vida, procuro acumular fortuna — porque eu não desembarco em Maceió senão com muito dinheiro! — mas ainda não consegui ajuntar o pecúlio conveniente. Por enquanto nada tenho.
-. Nem casa.
— Nem sapatos, só tenho busto porque, enfim, o meu casaco é quase novo: mas hei de ter calças finíssimas e o resto e, quando tiver... então sim! Dirigiu-se ao caixeiro: Outra garrafa de Guiness. E continuou: Eu confiava nas palavras fementidas da ingrata e, muita noite, com os olhos no céu, contemplando os astros, pedi às estrelas mensageiras que lhe falassem em meu nome. Mas também não sei para que há estrelas no céu que nem para um recado servem. E confiava quando hoje me veio ter à mão esta carta de minha irmã anunciando-me o próximo casamento da ingrata.
— Vai casar?!
— Vai casar e com um inimigo meu. Duas afrontas! Vê como sou desgraçado! Lastima-me!
— E agora?
— Sinto não ter asas. Ah! Se eu pudesse ir a Maceió amanhã, bem cedo. Que escândalo...! Primeiro ia ter com ela, e atirava-lhe em rosto as suas palavras hipócritas, dizia-lhe horrores, humilhava-a, depois então ia ajustar contas com o patife. Dava-lhe tal tunda, Anselmo, tal tunda! Que ele nunca mais se havia de lembrar de pedir moças comprometidas. Mas não tenho asas, nem vintém. Juntou as mãos e, com os olhos altos, suspirou: Mas Deus é grande!
— E que pretendes fazer?
— Vou andar, andar por aí até não poder mais.
— Queres que te acompanhe?
— Não, vou só. Preciso estar só com minha alma. Adeus! És feliz: não amas. Ai!
Levantou-se, acendeu um cigarro e encaminhou-se para a porta. Lá estava o Neiva, num grupo, rugindo, e, mal avistou os rapazes, levantou a bengala:
— Hoje, no Lucinda, a postos!
Eu não vou, disse Fortúnio.
— Por quê? Estás incomodado? — perguntou o Neiva com interesse e meiguice.
— Sou um desgraçado! — e foi-se lentamente rua abaixo, fumando.
— Que tem ele? — perguntou o Neiva a Anselmo.
— Paixão.
— Ah! Também dá para isso? Está arranjado. Logo, porém, mudando de tom: À noite, no Lucinda. Conto contigo.
— É hoje a entrega da jóia?
— Sim, é hoje. E não tenho concorrente. Ah! Todas as noites eu lá estava pedindo a um e a outro. Dei excelência a muito sevandija, mas tenho dois mil e tantos cupons. Não faltes.
— Não falto.
Tratava-se da entrega de um adereço, avaliado em oitocentos mil réis, ao freqüentador do teatro que mais cupons de entrada apresentasse. O Neiva, desde a primeira noite, mal jantava, corria para o Lucinda e, postando-se junto à tábua de anúncio, pedia a todos os espectadores que entravam o cupão que o porteiro havia destacado. Aos conhecidos dizia intimamente: "Dá cá o bilhete para a minha coleção." Aos desconhecidos dirigia-se com cortesia senhoril, de chapéu na mão: "Boa noite cavalheiro... Se V. Exa. não faz grande empenho em guardar esse papelucho ceda-mo." "Pois não..." diziam quase todos, muitos porque ignoravam a utilidade do destacado, outros porque não contavam com a prometida jóia. Raros resmungavam, negando. O Neiva, então, empertigava-se e fulminava o avaro com uma sátira.
Dias antes da contagem dos cupons já era certa a vitória do Neiva, "único campeão que se apresentara para disputar o adereço".
O teatro regurgitava quando Anselmo entrou. Estava toda a "boemia" a postos. De um lado e de outro da platéia, nas alas da feira que ali fora exposta em barracas onde havia a jóia, o brinquedo, a perfumaria, o charuto, a seda, verdadeiros mostradores que anunciavam grandes casas das ruas comerciais do Rio, o povo apertava-se com um zunzum incessante.
Noite quente, de luar. No jardim, a palmeira solitária tinha a folhagem triste prateada e, em torno do seu tronco enfezado, sob as estrelas vivas, ao ar tépido, bebia-se avidamente, com algazarra. As cocottes batiam com os leques nas mesas de ferro, tiniam copos, estouravam rolhas e da platéia apinhada vinha um hausto quente de fornalha.
A uma das mesas o grupo, unido para aquela prova suprema da tenacidade do companheiro, bebia. Mas o pano subiu. O espetáculo correu sem interesse, porque todos esperavam o momento da "jóia".
Foi no intervalo do segundo para o terceiro ato que Furtado Coelho, em cena aberta, anunciou que ia fazer entrega do adereço a quem maior número de cupons apresentasse. Houve um silêncio largo e, de repente, o Neiva saiu dentre os bastidores sobraçando um grosso embrulho. Desatou o barbante que o apertava e, estendendo a mão com solenidade, disse:
— Eis aqui o fruto das minhas economias. Depois, voltando-se para a platéia, acrescentou: Creio que não há concorrentes?! Houve uma estrepitosa gargalhada e o artista, tomando o escrínio, abriu-o para que fosse vista a jóia e, abraçando o boêmio, fez a entrega prometida. Nova gargalhada irrompeu. O Neiva, porém, muito grave, dirigiu-se a Furtado Coelho e, logo às primeiras palavras que pronunciou, todo o público entrou a agitar-se, surpreso.
"Meu caro Furtado. A pilhéria de um mês tem hoje o seu remate. Assiduamente, quer jorrassem aguaceiros, quer a inclemência da canícula entrasse atrevida e indebitamente pelas horas da lua fria, muitas vezes enfermo, todas as noites eu aqui estava, de chapéu na mão, recolhendo os cupons que o generoso público, com raríssimas e indignas exceções, me entregava. Reuni dois mil e tantos, não sei bem o número porque a paciência foi curta para tamanha soma, e sou agora o possuidor do adereço que foi pelos peritos avaliado em oitocentos mil réis. Não o quero para mim: não tenho colo para colares, nem punhos para pulseiras e, se me quisessem furar a orelha para ornamentá-la com pingentes, eu bradaria pela polícia. Enquanto nos divertimos há os solitários que não tiveram o afago maternal, há os anônimos do berço que não conhecem os prazeres do mundo e vivem, como penitentes, guardados pela caridade, no limbo que se chama o orfanato. A jóia que conquistei, a rir, destino-a à órfã que mais se distinguir pela virtude e pela aplicação até ao fim do corrente ano. Que o prazer de muitos, proporcionado pelo teu talento, meu velho Furtado, concorra para a alegria de uma criança infeliz. E tu mesmo Podes encarregar-te de dar o devido destino ao prêmio que conquistei com o suor do meu rosto e com muita zumbaia e algumas descomposturas. Tenho dito."
Furtado Coelho, comovido, estreitou o boêmio ao peito e todo o povo, de pé, saudou com uma prolongada salva de palmas, tão generoso quão inesperado procedimento. Fora, porém, quando o abraçaram, o Neiva irrompeu:
— Eu conheço a cabilda em que vivo! Estava tudo de orelha em pé e rosnava-se que eu, mal recebesse a jóia, correria direitinho para o Leitão ou para o Cahen. Estão enganados! — bramiu com a bengala erguida. Eu não seria capaz de perder as trinta noites de um mês ouvindo declamações enfáticas, humilhando-me diante da imbecilidade para pagar-me uma ceia. Fiz esse grande sacrifício à estética e ao meu orgulho para dar uma lição a esta horda. Pensava que eu ia beber, não é? Pois sim... Garçom, um grogue a crédito. E sentou-se a uma das mesas, esbravejando, furioso, assomado, a brandir a bengala. Anselmo apartou-se do grupo e, chegando ao fundo, junto ao balcão, deu de face com Fortúnio, sempre triste, mordendo os lábios. Duas grossas lágrimas rolavam-lhe pela face morena.
— Ai! Ai!
— Que é isso! Pois ainda estás assim?
— Como queres que eu esteja firme se sou tão desgraçado! — e desatou a chorar. Só então Anselmo percebeu que a dor abalava tanto o poeta que ele mal se podia ter de pé.
— Ó Fortúnio, tu não estás firme.
— Como queres que eu esteja firme se perdi o esteio do coração!
— Só o conde de Matozinhos poderá salvar-te, dando-te uma passagem para o Norte.
— É verdade... Ai! Ai!
Mas terminara o espetáculo, o povo saía atropeladamente e Anselmo convidou o poeta:
— Vamos, anda daí. Onde estás morando?
— Não sei, não me perguntes. Não sei nada. Sou um desgraçado!
— Mas onde dormes?
— Eu não durmo: meu coração está tão agitado que me não deixa dormir. Valha-me Deus! Uma menina que se criou comigo, tão falsa!
— Deixa, homem; não te preocupes: há um Deus no céu...
— Qual Deus...! O que há é um grande patife em Maceió, mas palavra de honra! — eu ainda parto-lhe a cara. Ele casa, casa porque, enfim, já estão correndo os proclamas, mas o casamento há de custar-lhe caro.
Saíram. Anselmo queria, à viva força, levar o poeta para o Ravot; ele, porém, resistia:
— Não, tem paciência, preciso de ar; se entro num quarto de hotel sufoco. Ah! Como eu compreendo o Otelo...! E não haver um Shakespeare para mim!... Vou tomar uma canja, depois atiro-me por essas ruas até cair estafado. Quero que ela saiba que morri nas ruas, como um cão! Há de ter remorsos, e, no dia do casamento, quando estiver nos braços daquele grandíssimo sem-vergonha, há de ver-me lívido, abrindo o cortinado para dizer-lhe quatro coisas bem duras e com uma voz...!
Entraram na Maison. O poeta, apesar do sofrimento moral, engoliu, com apetite, uma canja, um espesso churrasco, dois ovos quentes, uma talhada de queijo, vinho, café e conhaque; depois convidou Anselmo para uma partida de bilhar que se prolongou até às quatro da manhã. Foram os últimos a sair da casa, e na rua, ao luar, Anselmo, que sentia os olhos ardidos, propôs de novo que fossem para o Ravot.
— Qual! Eu agora hei de ver o sol: vou para o Boqueirão. Vou confiar as minhas mágoas ao mar. Quero que as brisas levem um dos meus suspiros àquela ingrata.
— Enfim, já agora... É quase dia. Pois vamos!
No grande silêncio soavam fortes os passos lentos dos dois. Ao longe os combustores apagavam-se como se a treva viesse devorando, uma a uma, todas aquelas gotas de ouro. Turmas de italianos desciam a caminho do mercado com os cestos pendentes dós paus e oscilando como duas conchas de balanças; alguns cantavam, outros riam ao ar fresco da manhã nascente.
Todas as casas fechadas, apenas um botequim, com uma luz triste e baça como de vigília, tinha as portas abertas e um negro, de calças arregaçadas, despejava baldes de água pelo soalho, enquanto um caixeiro sonolento ia empilhando cadeiras sobre as mesinhas de márvore.
Uma carroça pesada, rangendo, passou vagarosamente tirada por um touro robusto, cheia de capim que se levantava nos ângulos em pontas e, sobre os molhos, deitado, ia um homem cantando. Os dois seguiam calados, embebidos em pensamentos diversos, quando ouviram uma alegre cantilena, à maneira singela do campo nortista.
— Ai! Ai! — suspirou Fortúnio. Quem me dera a minha terra!
— Ora! A tua terra...! Por que vieste?
— Sei lá!
— Vieste atraído pela vida. Que diabo querias fazer em Maceió? Nós temos muita saudade da terra em que nascemos, por chic: a prova é que nenhum de nós pensa em tornar aos penates natais. A vida é aqui, meu amigo. Também eu tenho saudade do meu sertão, mas que poderia eu fazer se lá vivesse? Estava em plena natureza, nos campos gordos, vendo o gado e vendo as culturas, trabalhando como um campônio. A esta hora, junto do alpendre da casa, o cavalo de sela escarvando a terra e eu, com uma malga de café no bucho, o rebenque enfiado no punho, pronto para partir a galope, pelos campos, ouvindo o mugir dos touros, aspirando o aroma das silvas e ao sol violento idas e vindas do algodoal à malhada, da malhada ao algodoal, até à hora da tarde, para recolher-me estafado à minha rede e procriar bestamente como os rebanhos, como a terra, dando filhos com a mesma regularidade com que o algodoeiro dá o algodão, o arroz dá a sua espiga e a ovelha põe em terra o anho. É hediondo! Aqui não.
— Ora, aqui não! E que diabo fazemos nós aqui?
— Trabalhamos.
— Morremos de fome e de fadiga porque nem cama temos.
— Mas havemos de ter.
— Na Santa Casa de Misericórdia.
— Qual Santa Casa! Então não esperas vencer?
— Eu, não. Que público temos nós? Pensas que se prepara um povo em dez ou vinte anos? Qual! Havemos de viver sempre como vivemos. Quando vierem os cabelos brancos, se a morte não tomar a frente ao tempo, aquela estrela que lá está no céu há de ver-nos como agora nos vê: caminhando sem destino e rimando sonhos.
— Não há de ser tanto assim.
— O Brasil nem daqui a cem anos compreenderá a obra de Arte.
— Ora!
— Ora?! Queres fazer uma aposta?
— Para daqui a cem anos? Não. Espero não viver tanto.
— Dizem que a população do Brasil é de treze milhões.
— Mais ou menos.
— Pois bem: doze milhões e oitocentos mil não sabem ler. Dos duzentos mil restantes, cento e cinqüenta lêem apenas jornais, cinqüenta lêem livros franceses, trinta lêem traduções, quinze mil lêem a cartilha e livros espíritas, dois mil estudam Augusto Comte e mil procuram livros brasileiros.
— E os estrangeiros?
— Não lêem livros nacionais.
— Ora, não lêem.
— Não lêem! Isto é um país perdido.
Chegaram ao Largo da Carioca. Em torno de um quiosque iluminado homens apinhavam-se e discutiam alegremente chuchurreando café. Uma negra, sentada nos degraus do chafariz, apregoava, em voz lamentosa, prolongando muito as palavras: "Miiingau de ta... pioca... tá... quentinho, freguês." Homens dormiam estirados na pedra, de papo para o ar. Dois cães corriam polo largo perseguindo-se. Longe, em tons finos, vibrantes, uma corneta soava.
O dia raiava. Uma luz tênue vinha caindo do céu largo e puro e, como se um véu se fosse afastando da terra, descobrindo as casas e as montanhas, tudo ia aparecendo indistintamente, vagamente a princípio.
Chilros vibravam no ar. Passavam, chalrando, os banhistas que se dirigiam à praia, aos casais, famílias completas, com cestas, os olhos ainda empapuçados de sono. Os bondes desciam cheios, transbordavam no largo; subiam quase vazios.
Na esquina da rua de S. José um pequeno, ajoelhado na calçada diante de uma pilha de jornais, dobrava folhas, às pressas, amontoando-as, e a casa da Ordem, alta, enorme, como uma imensa e formidável muralha, tinha ainda uma luz, a claridade passava por entre as frinchas da persiana de uma das janelas: alguém que morria, talvez.
E no alto, muito branco, como um castelo antigo no seu rochedo, o mosteiro dormia.
Seguiram e, quando chegaram ao Boqueirão o céu, ao longe, estriado sangüineamente, estava cor de bronze. Na praia branca, o mar liso, metálico, rutilava.
Uma multidão chapinhava na areia úmida que guardava a pegada funda até que a onda, subindo preguiçosamente, a desmanchava. Havia barracas de lona como brancas pirâmides, mas a maioria dos que mergulhavam vinha já pronta nas roupas de flanela dos estabelecimentos balneários.
As senhoras, sorrindo, esfregando as mãos, iam timidamente para o mar que mandava à praia as suas ondas como para buscá-las, curvavam-se, tomavam nos dedos um pouco de água, como se se benzessem naquela imensa pia verde e, friorentas, dando-se as mãos, entravam, aos saltinhos, quando a onda rolava cheia, espumosa, desdobrando-se na praia com suave marulho.
Cabeças apareciam longe e gente saía gotejante, gente entrava a correr e todo o mar fervilhava de banhistas. Ao longo da praia e no terraço do Passeio apinhavam-se curiosos. Um bote negro, remado lentamente, bordejava. Tresandava a maresia. De repente Anselmo gritou:
— Olha, Fortúnio! Era o sol, o grande, o magnífico, o esbraseado sol americano que subia. O céu estava encandecido, era de ouro líquido, e, quando o disco do astro, imenso e translúcido, fulgindo como uma pátena polida que girasse vertiginosamente, apareceu acima dos montes longínquos de Niterói, houve uma chuva mirífica e dourada, todas as eminências foram polvilhadas, o espaço e as águas ficaram como Danae na hora amorosa do lentejo do ouro; mesmo para o fundo a serra, acidentada de Teresópolis que, de tão azul, quase se confundia com o céu, teve a áurea bruma da manhã triunfal. E o sol subia, a luz alastrava. A água voluptuosa tornou-se mais lânguida. Gaivotas cruzavam-se contentes e o Pão de Açúcar e os fortes ficaram sobre um mar de ouro.
A luz chegou às árvores do Passeio e as folhas, galvanizadas, rebrilharam, o mesmo bote fúnebre, negro, que ia e vinha com a lentidão de um esquife, teve a sua orla de luz e refletiu-se na água espelhenta e mansa.
Os que se banhavam pareciam incrustados na superfície serena e rútila das águas vastas e longe, enorme e escuro, fumegando, com uma bandeira trêmula solta às brisas, um paquete saía sereno, sem oscilação, fechado, em direitura à barra por onde vinha entrando, rebocado, um brigue, de velas ferradas, os mastros secos, vagaroso e pesado.
A alegria do céu comunicou-se aos que nadavam e gritos alegres vinham do mar, e sempre a sair gente ansiosa para a onda: velhos, senhoras, crianças. Uma menina aleijada desceu ao colo de um banhista, esperneando, aos gritos, e, diante desse rumor de vida, nessa azáfama jocunda, Fortúnio, com os olhos no paquete, suspirou:
— Ah! Pudesse eu ir ali!
— Ora qual! Deixa-te disso, homem! Olha para aquele sol, admira aquela beleza e dize se é possível que Deus estrague tão formosa auréola numa terra destinada à miséria e ao abandono. Uma pátria que tem este sol há de ser grande por força. Viva a nossa terra, deixa lá, homem! A nossa manhã há de vir, descansa. E os dois, extasiados, ficaram a olhar o astro deslumbrante que remontava majestosamente.