O primeiro número de A Vida Moderna, apesar das esperanças de Luiz Moraes, não conseguiu abalar a alma do povo. O poeta contava com um êxito ruidoso porque os jornais, anunciando o aparecimento da publicação, haviam mencionado, como garantia do seu valor literário, os nomes laureados dos redatores, mas debalde os garotos rouquejavam apregoando o hebdomadário, debalde faziam ver a gravura terrífica da primeira página, o povo passava indiferente, discutindo valentia de potros de raça, discursos altiloqüentes de deputados ou escândalos, sem dar ouvidos à atroada dos pequenos que iam e vinham, com os jornais, desanimados.
À tarde desapareceu da circulação a notável revista, sendo substituída pela Gazeta de extração mais fácil. Moraes, cofiando os espessos bigodes, desceu a rua do Ouvidor, contando não encontrar um só número da folha na qual havia dado prodigamente todos os sonoros versos de um poemeto e achou um negro triste, à esquina da rua dos Ouvires, já em voz, quase derreado, murmurando, com desfalecido esforço: "A Vida Moderna..." Assomou-se e, sacudindo o tíbio pregoeiro pelos ombros, disse-lhe furente:
— Grita, homem! Berra! Estás aí com uma voz de recém-nascido que ninguém ouve! Não comes? O negro abriu muito os olhos, e balbuciou surpreso: Que ninguém queria...
— Qual ninguém quer! Estás mais morto do que vivo. Grita! Com tal intimação o negro resolveu fazer um escarcéu atroador e, escancelando a boca, soltou tamanho berro que o próprio poeta, atordoado, apressou o andar para não ensurdecer.
Encontraram-se todos na Maison Rouge: Ruy Vaz, Fortúnio, Anselmo, Patrocínio. E Moraes recebeu os aplausos entusiásticos pela sua vitória, principalmente depois que recitou o poemeto estampado na revista. Patrocínio, com os olhos em alvo, confessou que nunca ouvira versos de tal quilate: "Era a imaginação de Hugo trabalhada pelo cinzel de Leconte." E, no fundo lôbrego da casa, que era o cenáculo da boemia, o poeta da Tarântula declarou solenemente, como um áugure que, dentro em pouco, o Brasil, analfabeto e ignaro, seria um país de grandes luzes porque as liras, vibradas como a de Orfeu na Trácia agreste, haviam de agitar as almas, conclamando-as para a vida intelectual.
— Meus amigos, se não temos aqui a tríplice Hecate com as suas sacerdotisas truculentas, temos a ignorância que é um pouco pior. Comecemos a campanha, tenhamos a audácia de Orfeu, que o Ideal seja a nossa Eurídice. O artista é um iniciado, deve ter a coragem da sua crença e, se for preciso, façamos como o grande hierofanta que, de lira em punho, atravessou o campo dos trácios chegando corajosamente à presença temerosa de Aglaonice para dizer-lhe em face todas as verdades, embora lhe custasse a morte, como lhe custou, mas, sucumbindo, não deixou de ser a representação espiritual da primitiva Grécia.
Nós somos os precursores — alhanemos o caminho para os que vêm. Eu não descorçôo, tenho como certa a vitória. Que diabo! Pois então este povo há de viver eternamente chafurdado na ignorância? Não, senhores! Abram escolas, eduquem a infância, ponham a criança em contato com os heróis da pátria, apontem-lhe os episódios gloriosos da nossa história, dêem-lhe os poetas vernáculos e o homem do futuro não será francelho como esses que por aí andam algaraviando "Bonjour, comment ça va?" e dizendo desfaçadamente, apesar dos diplomas e dos anéis inúteis: "Me dê isso, me dê aquilo... quero que faça-lhe" e outras sandices idênticas. Nem vendedores há neste país...! Encontrei um negro apregoando A Vida Moderna com uma vozinha tão fraca, tão tênue, que o diabo parecia estar nas últimas. Dei-lhe tamanho safanão que ele foi parar no meio da rua e berrando como uma locomotiva. Energia! — é o que eu digo. Sem energia nada se faz.
Fortúnio, passando os dedos pela penugem do buço, sempre cético, disse displicente:
— Isto há de ser sempre o que é. O povo não tem tradições e, sobretudo, é a gente mais melancólica do mundo. Você vê um grupo de brasileiros é fúnebre, parece que estão sempre discutindo Um enterro.
— Ou segredando pornografia, acrescentou Ruy Vaz.
— Ou falando mal da vida alheia, ajuntou o Neiva.
— Nem tanto, corrigiu Patrocínio. Nem tanto. Há brasileiros de espírito.
— Ora, brasileiros de espírito... Quais são? Aponte-os!
— Nós, por exemplo...
— Ah! Sim... Mas nós não entramos em conta.
— Perdão, interveio o Moraes. Já vocês começam com as discussões fúteis, tratemos de coisas sérias.
O Neiva inclinou-se sobre a mesa:
— Eu tenho uma comunicação a fazer.
— Se é pilhéria.
— Não é pilhéria, homem.
— Que é? — perguntaram todos.
— Vocês, em tempos, pensaram em fundar um clube literário.
— Aí vem a mania.
— Perdão, não é mania; ouçam primeiro. Eu estou organizando as bases de uma sociedade artística e literária. Não temos um centro de reunião, não temos uma sala onde possamos conversar um minuto em intimidade. Vem um estrangeiro aqui, é uma vergonha: temos de recebê-lo em um botequim ou em um hotel, se há dinheiro. Somos tantos, reunamo-nos e, contribuindo cada um com uma quota mensal, podemos ter perfeitamente uma sala para discussão de teses, palestra, recepção de confrades, etc. Tenho em vista o primeiro andar de um prédio magnífico na rua do Hospício. Aluga-se aquilo, instalamo-nos e, à proporção que for entrando dinheiro, iremos dando expansão ao clube até que, com o tempo, possamos editar as obras dos sócios. Conto com uns vinte e tantos membros, tenho os nomes aqui na minha lista. Que dizem?
Patrocínio achou a idéia excelente e todos aplaudiram, ficando imediatamente convocada a primeira reunião para a quinta-feira próxima. O título "Grêmio de Letras e Artes" proposto pelo Neiva foi aceito sem discussão.
Patrocínio e o Neiva despediram-se: o primeiro tinha reunião na Confederação Abolicionista, o segundo ia mandar arranjar a casa, encarregando o Teixeira de entender-se com o senhorio. Ruy Vaz pouco se demorou tendo um negócio com o Garnier. Ficaram os três: Fortúnio, Moraes e Anselmo.
Anselmo estava macambúzio, de cenho carregado, silencioso e, recaído sobre a bengala, que metera debaixo do braço, balançava a perna com desalento. Fortúnio atirava baforadas para o teto e o Moraes, preocupado, tamborilava no mármore da mesa.
— Que diabo! Vocês estão tristes, disse por fim o poeta da Tarântula. Que tens, Anselmo? Já brigaste com o Patrocínio, aposto! Anselmo resmungou. Homem, também não fazes outra coisa. Quantas vezes tens saído da Gazeta? Mais de vinte. O José já sabe — quando lhe apareces enfarruscado, anunciando que vais deixar a folha, ele pergunta logo quanto queres, e está a questão liquidada. Se precisavas de dinheiro por que não falaste enquanto ele aqui estava?
— Não se trata de dinheiro.
— Então que há?
— Divergência política, aventurou Fortúnio.
— Qual política! Bem me importa a mim a política. Aquele gerente da Gazeta julga-me, ao que parece, um menino de doze anos. Se lhe peço dinheiro vem sempre com cinco mil réis, dez, quando muito. Estou com os sapatos neste estado, já não têm sola, o casaco é uma nódoa, o chapéu é isto; não tenho meias, não tenho camisas, devo dois meses de casa. Que diabo! Assim não há talento, não há estilo, não há nada que resista.
— É o que eu digo, rosnou Fortúnio.
— Mas não te pagam? — perguntou Moraes.
— Aos pingos: não é um gerente, é um conta-gotas.
— E que vais fazer?
— Vou tomar conta do Diário Ilustrado. O Henrique Steel vai deixar a redação e os proprietários convidaram-me.
— Aquilo dá alguma coisa?
— Sei lá.
— E quando começas?
— Talvez amanhã.
— Já disseste ao Patrocínio que ias deixar a Gazeta?
— Já.
— E ele?
— Pôs-se a rir.
— Homem, queres um conselho? Fica na Gazeta e não vás atrás de promessas enganadoras. Esse Diário Ilustrado não vive um mês.
— Como não vive!?
— Não vive. Qual é o teu programa político?
— Eu sou oportunista.
— Qual oportunista! Tu não és nada.
— Ou isso.
— Ou isso.
— E é com tais idéias que vais escrever artigos de fundo?
— Qual artigo de fundo! Isso é chapa. O jornal vive muito bem sem artigo de fundo. Tenha ele noticiário variado, uma parte literária, esporte e charadas e vai longe. Hás de ver.
— Pois sim.
— E tu, Fortúnio?
— Eu? Eu vivo perfeitamente. Tenho a cidade por menagem, que mais quero? Isso de comer e dormir só me preocupa quando tenho fome ou sono. Faço os meus versos e escrevo-os em qualquer mesa de café, tenho como alampadários as estrelas do céu, amo todas as mulheres belas, a rua do Ouvidor é a minha sala de visitas; o meu quarto só Deus conhece! Vivo muito bem.
— E se adoeceres?
Fortúnio encolheu os ombros e atirou uma baforada.
— Que diabo! Vocês não pensam...
— Felizmente! Que seria de nós se pensássemos?
— Pois eu acho que devias procurar alguma coisa.
— Queres que me empregue no Pascoal? Queres que me faça condutor de bonde ou que vá rolar fardos na Alfândega?
— Não digo isso, mas podias arranjar lugar num jornal.
— Ora, Luiz, eu sou brasileiro e tu sabes que os nossos jornais sãos empresas estrangeiras criadas com o intuito prático de explorar comercialmente o sentimento público, com discrição ou às escâncaras. Um jornal é um escritório de comissões... de idéias. Quando leio um estirado artigo tratando das glórias da pátria, invocando a alma da nação, com muita retórica e muita hipocrisia, tenho vontade de rir porque penso imediatamente nesses prestidigitadores que algaraviam para iludir o público enquanto preparam as sortes, enquanto fazem os passes. Qual imprensa brasileira, qual história! Meu amigo, Portugal está com o grito do Ipiranga atravessado na garganta, ele não nos perdoa a independência e, como não se pode assenhorear da terra, apodera-se do espírito do povo. A escravidão é muito pior. Agora não é o território que pertence à Lusitânia, é o povo que se sente oprimido pelo reinol, dono da imprensa, e por isso mesmo, senhor da opinião pública. Ele faz a política como faz o câmbio e, para que vejas o cúmulo, basta que eu te diga que há empresários que mandam contratar jornalistas em Portugal para virem dirigir a opinião brasileira. Vivemos sob a tutela de feitores. Aqui só há um jornal brasileiro: é a Gazeta da Tarde...
— Estás exagerando.
— Estou exagerando...? Mostra o exagero. Eu sei por que falo. Não, deixem-me com a minha liberdade. Prefiro dormir debaixo da ramaria de uma árvore da minha terra a ouvir increpações de um sapateiro qualquer que, por haver enriquecido, na tripeça, entendeu fazer-se proprietário de folha. Deixem-me cá com as minhas idéias, podem parecer ridículas, mas são sinceras.
— Que diabo! Vocês estão hoje azedos.
— Eu não, disse Anselmo.
— Nem eu, ajuntou Fortúnio.
— Olha, o Anselmo vai dirigir um jornal e não consta que ele tenha nascido na outra banda.
— Sim, vai dirigir... Mas quais são os proprietários do jornal? Dois comissários de café, portugueses.
— Mas que ódio é esse a Portugal, homem de Deus?
— Perdão, eu não tenho ódio algum, estimo e admiro Portugal, mas como brasileiro não devo deixar sem protesto a intervenção do estrangeiro na vida nacional. Você não vê um francês intrometer-se conosco, nem um inglês, nem um alemão — é só o português.
— Mas há as afinidades de origem, a língua, os costumes.
— História, homem! É que quem foi senhor entende que há de sempre dominar, esta é a verdade.
— Estás bilioso.
— Não estou tal.
— Estás. Vamos sair. A tarde está linda.
— Não, eu despeço-me. Vou ver um patrício. Até amanhã.
— Não queres jantar comigo?
— Não.
— Olha que lá em casa só o vinho é português, mas excelente.
— Perdão, pensas que sou inimigo dos portugueses? Não há tal, já expliquei a minha opinião. Que farias tu se um hóspede começasse a dar leis em tua casa?
— Quebrava-lhe a cara.
Riram-se todos e, sem mais explicações, apartaram-se.