No dia seguinte, às onze horas da manhã, sem almoço e sem esperança de encontrá-lo, Anselmo assumia o posto honroso de redator-chefe do Diário Ilustrado com um repórter, o Franco, e um contínuo, o Maia. O escritório era na rua da Uruguaiana, um sobrado novo, com duas janelas de frente, claro e arejado.

Anselmo, muito grave e sisudo, conferenciou com os proprietários da folha sobre o programa político que devia traçar no artigo de fundo e sobre as idéias financeiras que havia de propugnar. Quanto à política percebeu que os homens entendiam que a monarquia era o ideal, que o imperador era o único monarca decente do universo, que S. Cristóvão era a suprema corte, que a princesa era uma santa e o conde d'Eu, um sóbrio. Das idéias financeiras nada percebeu porque os homens falaram tanto em cambiais, em estoques, em avos e em outras coisas estranhas ao seu ouvido que ele saiu do gabinete tão alheio a tudo como se acabasse de conversar com dois japões. Todavia comprometeu-se, com muita gravidade, a promover a alta do café e a cimentar o trono com a lógica formidável da sua pena. Os proprietários saíram satisfeitos e Anselmo passou à sala da redação para distribuir o serviço. O Franco, de mãos nos bolsos, passeava pela sala, fumando. Anselmo chamou-o:

— Seu Franco, o senhor tem alguma coisa?

— Não tenho nada, disse o repórter continuando a passear. Estou fazendo horas para ir às secretarias.

— Quem vai à polícia?

— O moleque. O moleque era o Maia. Eu não tenho botas de sete léguas. Mande o moleque. Que custa? As notas estão prontas. Eu cá não vou.

— Mas vai às secretarias?

— Sim senhor, posso ir. E, à noite, aos teatros.

— E redige as notícias?

— Deus me livre! Não faltava mais nada! Por sessenta mil réis. Ora! Não redijo nada. Quem quiser que redija, eu não.

Anselmo exacerbou-se e, de pé, franzindo a fronte, com a espátula em punho:

— Mas afinal: que faz o senhor?

O Franco voltou-se.

— Que faço? Vou à secretaria do império, vou a secretaria da fazenda, vou à secretaria da justiça, vou à secretaria da guerra, vou à secretaria da marinha, vou à secretaria das obras públicas, vou à secretaria dos estrangeiros, vou à câmara municipal... ao diabo! E então? Pensa o senhor que sou de ferro? Isso não! Com o senhor Steel éramos dois, eu e o Reis; agora sou eu só para tudo... Isso não! Então paguem mais. Saio daqui estrompado para ganhar sessenta mil réis. Não está direito. Mande o moleque. Que fica ele fazendo aqui? É um vagabundo que passa os dias cochilando e chupando balas; que vá. Eu não vou, já disse, nem que me rachem.

Anselmo, mais calmo, resolveu entender-se com o Maia e chamou-o. O continuo era gago e, para dizer uma palavra, contorcia a face, escancelava a boca como em acesso epiléptico.

— Seu Maia, você sabe ir à policia?

— Se... e... e... i... e sim se... nho... o... o... or...

— Não sabe outra coisa, um bêbedo como esse, rosnou o Franco.

O Maia lançou-lhe um olhar feroz.

— Então dê um pulo até lá e veja se há alguma coisa.

— À noite, aconselhou o Franco. É melhor que ele vá à noite, porque traz tudo de uma vez.

— Eu vou... ô... vou sem... empre à noi... te, disse o Maia.

— Pois então à noite. Mas não se esqueça.

— Nã... o es... que ... e... ço nã... o... se... e... nhor.

— Pode ir.

O Maia retirou-se e o Franco, puxando uma cadeira, repoltreou-se diante da mesa de Anselmo.

— Então é o senhor só que vem fazer o jornal?

— Eu só.

— E agüenta?

— Não sei, vou ver.

— O senhor não agüenta. Olhe que esta folha come matéria que não é graça. A gente escreve, escreve, escreve e, quando pensa que tem muito, meu amigo, nem meia coluna. Vai ver. Sem um companheiro o senhor não faz nada.

— Quem sabe!

— Vai ver. Ah! Eu sei bem como se faz um jornal.

— Também eu.

— Pois não parece. O senhor arria... Se não chamar um companheiro não faz nada. Depois, meu amigo, quando a gente trabalha e vê cobre ainda vale a pena, mas aqui...?!

— Não pagam? — perguntou Anselmo sobressaltado.

— Ora! Uma ninharia. Eu ganho sessenta mil réis: e o senhor?

— Duzentos.

— Não é dinheiro.

— É pouco, concordo, mas, em todo o caso, já se vive.

— Qual! Um homem não vive decentemente no Rio de Janeiro com menos de quinhentos mil réis. Quanto pensa o senhor que eu gasto por mês? Pensa que eu vivo com esse cobre magro que levo daqui? Pois sim... Eu regulo gastar quatrocentos a quinhentos mil réis. Ah! Faço a minha feriazinha todas as noites: vou a um bico, vou a outro e pingando aqui, pingando ali, arranjo a minha feriazinha. Se eu só contasse com o jornal estava bem aviado.

— O senhor joga?

— Jogo, não por vício, por necessidade: sustento minha mãe e uma irmã. Só de casa pago quarenta mil réis e, com vinte hei de dar de comer a duas pessoas e roupa e calçado e botica, mais uma coisa, mais outra? Atirou uma cusparada por entre dentes, silvando. Faço a minha feriazinha e vou arranjando a vida. Não vale à pena ser jornalista no Brasil, não vale, repetiu meneando com a cabeça desoladamente. Gosto aí de uma moça, queria casar, mas tenho lá coragem de pedir a menina com essa bagatela? Eu, não! Quando casar quero que minha mulher apareça, não há de andar como muitas que conheço, isso não. Estou aqui esperando negócio melhor. Vim para a imprensa porque pensei que isto era outra coisa, mas logo que ache um empregozinho aí numa secretaria, musco-me. Fincou os cotovelos na mesa e, com as mãos no rosto: O senhor não se dá com o ministro do império?

— Não.

— Mas conhece alguém que seja boa cunha para ele?

— Não, não conheço.

— É o diabo! Se eu arranjasse um lugarzinho de amanuense... Não digo que deixasse a imprensa, não, porque, enfim, isto é uma cachaça. Podia, de vez em quando, escrever o meu folhetim, o meu sonetozinho... mas contando com o ordenado certo no fim do mês. Deixe lá! Não há como a gente ser empregado do governo. No fim do mês o cobre está cantando e isso é que serve.

— E o senhor escreve folhetins?

— Não sabia?

— Não.

— Escrevo; e faço versos. Tenho aqui um soneto, se quer. E meteu a mão no bolso fundo do casaco.

Tirou um papelucho amarelado, abriu-o lentamente, pigarreou e leu, com grandes gestos largos:

À CONSTANÇA

Constança morena tu és a aurora Do meu porvir magnânimo e sublime. Se o meu verso o meu amor exprime Eu deixo aqui o meu verso, senhora.

Ontem de tarde quando a carpidora Pomba rola, mais débil do que o vime, Cantava a sua balada, ai! eu senti-me Capaz de acompanhá-la pelos campos afora.

Porque a vida é dor, loura criança E eu choro tanto por ti que o meu peito Já está seco assim como o Saara.

Olha para mim, ó pálida Constança! Vê como estou por dentro todo desfeito Diz à minha dor duma vez: Ó dor, pára!

Dobrou o papelucho e, fitando Anselmo com ar triunfante, perguntou:

— Então, que tal?

— E o número de sílabas? E o conceito?

— Conceito! Para que isso?

— Pois não é uma charada novíssima?

O Franco bufou:

— Que charada! Trate sério. Pois eu vou lá fazer charadas à minha noiva, seu...? É um soneto e está muito bem feito. Não vejo por ai quem faça melhor. Agora, se não quer publicar é outro caso.

— Tem uns versos quebrados.

O repórter pôs-se de pé, como afrontado e, arrancando o soneto que havia descido ao bolso profundo, repetiu, com espanto:

— Versos quebrados... Onde?

— Leia lá.

E o Franco com ênfase, declamou:

Constança morena tu és a aurora

— Hum...

— Hum como? Então este verso está quebrado? Onde está a quebradura?

Constança morena tu és a aurora

— Vamos adiante.

Do meu porvir magnânimo e sublime

— Voltou-se intimativo:

— Também está quebrado?!

— Não, mas é imbecil. Porvir magnânimo e sublime é asneira.

— Asneira...! Ora tire o cavalo da chuva. Então eu não sei português! Asneira, porque...! Vamos ao dicionário. Ó Maia, que é do dicionário português? O Maia esticou o beiço e bateu com uma das mãos na outra. É, já foi para o sebo... Pois se houvesse aqui um dicionário eu mostrava.

Se o meu o verso o meu amor exprime

Diga que está também errado; e pôs-se a contar pelos dedos:

"S'o meu verso meu amor exprime..."

Ficou pensativo, depois disse:

— Tem nove, falta uma. Baixou os olhos, de repente, erguendo a cabeça, exclamou: Mas espere, há um que tem onze, tira-se-lhe uma e passa-se para este e fica tudo arranjado.

— E... disse Anselmo que já havia lançado o título do artigo de fundo, em letra caprichosa e esbelta: Caveat!

— Vai escrever o artigo?

— Sim, vou.

— Então eu vou dar um giro; posso apanhar alguma noticiazinha fresca. Olhe, hoje há uma primeira. O senhor vai?

— Vou.

— Eu posso ir, se quiser... e faço a notícia.

— Obrigado; eu vou.

O Franco foi debruçar-se à sacada e ficou a cantarolar. Por fim, resolvido, tomou o chapéu e saiu recitando:

Constança morena tu és a aurora Do meu porvir magnânimo e sublime

Anselmo dedicou-se de coração ao jornal. Morava na rua Marquês de Abrantes, numa pensão nobre, em companhia do Steel, o antigo redator do Diário. Levantava-se muito cedo, tomava o seu banho e descia para a cidade, sentando-se imediatamente à mesa de trabalho. Escrevia o artigo de fundo, a Boemia, romance au jour le jour, a crônica do dia, redigia o noticiário e todas as seções; corrigia as notas que o Maia trazia da polícia e ainda passava os olhos pelas notícias do Franco, cuja ortografia era das mais complicadas. À noite estava derreado. Mas com que prazer, na manhã seguinte, abria o jornal e revia o seu trabalho, emoldurando a gravura central que ele sempre acompanhava de algumas palavras explicativas.

Os proprietários, entretanto, não pareciam satisfeitos, porque o jornal não tinha venda e era um trabalho para o agente conseguir um anúncio. O Franco, sempre a protestar contra a miséria: -"que não havia talento possível com aquela pingadeira", aparecia, às vezes, à noite, resmungando, com a papelada numa confusão horrível e, acumulando as notas, monologava:

— Qual! Quando não se está de sorte é isto... O meu número! O meu número!... Se eu tivesse feito o meu jogo tinha estourado a banca. Mas é isso, quando não se está de sorte...

Depois o diabo daquele cabula a chorar, a chorar. Detinha-se, cravava os cotovelos na mesa, e, com as faces nas mãos, ficava olhando perdidamente: Três vezes! Parece incrível! E eu no pequeno! Pedaço de burro! É bem feito. Mas qual! Quando não se está de sorte é assim mesmo. Estão aqui as notas.

— Houve alguma coisa?

— 0 29...

— Foi preso? — perguntou Anselmo julgando que ele se referia ao idiota que escandalizava a rua do Ouvidor com os seus impropérios.

Mas o Franco amuou:

— Qual preso! Deu três vezes e eu no 8.

— Ah! Na roleta...?

— Sim, mas não jogo mais, nem uma ficha. A roleta é um jogo besta. Afinal qual é a ciência da roleta? Nenhuma, é só questão de sorte. Há três dias que não ganho um vintém, é só perder, perder. Vou dar com o basta!

— Foi às secretarias?

— Fui; pois não estão ai as notas? Não houve nada. Amanhã sim, há despacho.

— Bom, vamos trabalhar.

— Eu vou dar uma volta pelos teatros.

Saiu. Às dez horas o Maia ia ao Diário Oficial e à meia-noite, quando o paginador, saciado, declarava que o jornal estava pronto, Anselmo saía lentamente, tomava um copo de leite no Java e ia cochilando no bonde até a porta de casa e, às vezes, passando pelo quarto dó Steel, ouvia palavras sussurradas, risinhos, estrépitos de beijos e lembrava-se de Amélia com voluptuosa saudade, mas tanto que repousava a cabeça no travesseiro adormecia pesadamente como um cavador.

Apesar de todos os esforços, o jornal não lograva impor-se ao favor público e, quinze dias depois de haver Anselmo assumido á redação, os proprietários, vendo que o café continuava a baixar, zombando dos artigos violentíssimos do redator-chefe, resolveram "suspender a cesta", como disse, com muito pitoresco e muita resignação, o Franco, quando recebeu o saldo.

Voltaram os dias difíceis. Forçado a abandonar a casa da rua Marquês de Abrantes, onde se achava tão confortavelmente instalado e podendo dispor do magnífico guarda-roupa do Steel, que era janota e franco posto que, algumas vezes, franzisse o nariz encontrando na rua do Ouvidor as suas calças cobrindo as pernas magras do companheiro, Anselmo partiu à aventura como o moço Perceval, não à conquista do santíssimo cálice, mas em busca de um teto e de uma sopa que o resguardasse da intempérie e lhe saciasse a fome.

A boemia parecia haver emigrado — só o Neiva e o Lins apareciam. Ruy Vaz anunciava um romance. Havia também abandonado, não por gosto, o palacete das Laranjeiras, o amorável e penseroso arvoredo e os jantares pantagruélicos e vivia num sótão modesto com a sua musa e um cachimbo. Fortúnio também andava afastado. Bivar, com idéias científicas, ia, de quando em quando, dar uma vista de olhos ao anfiteatro e compunha poemetos. O Duarte, sempre apaixonado, contava a toda gente os seus infortúnios. O Moraes e o Artur laboravam. A Vida Moderna, em luta aberta com a Semana, saía aos sábados, tremenda, com a sua gravura pantafaçuda e os formidáveis artigos do poeta da Tarântula.

Estava travada a batalha, e, uma tarde, como se encontrassem dois grupos num botequim, correu copiosamente o caldo de cana que foi o hidromel do festim espiritual, e, diante dos burgueses aterrados, poetas de um e do outro partido recitaram, como em Wartburgo quando os bardos, tendo à frente o grande Wolfran, empenharam-se na grande luta lírica.

O Moraes, assomado, lembrava aos do seu bando o que deviam recitar e Fortúnio, com uma voz branda, disse uns versos repassados de melancolia, o Alberto respondeu-lhe com um soneto admirável. Moraes ergueu-se e os alexandrinos fortes da Guerra atroaram com o fragor de catapultas. Outro poeta bucólico veio trazendo por uma rechã, ao romper do dia, um carro de bois rangendo aos solavancos e Anselmo frenético, com os olhos despedindo raios, arregaçando as mangas do casaco, despejou sobre a mesa a sua cornucópia helênica e, de mistura com pastores que sopravam syrinx, saíram hoplitas e deuses, hetéros e pallakai, filósofos e poetas, Eschylo às voltas com Aristeu, Menandro de braço com a lúbrica Lycenion, Laís e Minerva, as bacantes e as coéforas, as eumenides e as tesmofórias e às cinco e meia da tarde, encharcados de caldo de cana, abalaram triunfalmente os daquele Parnaso onde havia um moinho de café e um homenzinho, corcunda como Thersito, que apregoava bilhetes de loteria.

A vitória ficou indecisa, mas o Moraes, querendo dar uma batalha decisiva, no número seguinte da Vida Moderna, atirou-se, com a fúria de um Ajax, sobre um dos grandes poetas do outro lado e desancou-o.

A resposta seria violenta se houvesse saído, mas o jornal contrário apareceu calmo, sem referir-se à questão, e os da Vida Moderna entoaram o péan da vitória.