Anselmo estava in albis e, como pretendia passar a noite trabalhando, porque tencionava dar começo a um romance para o rodapé do Diário Ilustrado, deteve-se na esquina da rua Uruguaiana farejando um jantar. Mas os jantares não passeiam na rua do Ouvidor e, certo disso, o futuro redator-chefe foi subindo vagarosamente, desacorçoado, quando, no largo de S. Francisco, ao dar com a estátua do patriarca, que o sol crepuscular polvilhava de ouro, teve uma inspiração feliz:

"É verdade! Por que não hei de ir jantar em uma casa de jogo? Fortúnio come regaladamente e declara que as tavolagens têm os primeiros cozinheiros desta cidade. Que mal há nisso? Vou; não jogo, mesmo porque não tenho vintém, como e ponho-me a andar antes que a polícia me apanhe na batota. O diabo é que não conheço ninguém... Se ainda pudesse encontrar o Lins... Mas onde?!" Resolveu procurar o poeta no Castelões, mas só achou o Neiva, na última mesa, diante de uma papelada esparsa, a tomar notas.

— Salve! O boêmio fitou-o com os olhos piscos, sem pince-nez.

— Oh! Senta-te. Bebes?

— Não.

— Sabes? O nosso Lins está à morte.

Anselmo deu um salto na cadeira.

— Como?! Se ainda ontem estivemos juntos.

— Pois, meu amigo, já está sem fala. Estou chegando da casa dele. Nem me reconheceu.

— Mas que tem?

— Sei lá! Congestão ou coisa assim. E, pondo o pince-nez, bramiu com os olhos rutilantes: Extravagâncias! Vocês não me querem ouvir. Vivo aqui a bradar, como um João Batista, contra as extravagâncias e todos pensam que estou a fazer pilhéria. Seu Lins é um homem fraco, doente, pois ontem, à noite, em vez de tomar o seu conhaque do costume, entendeu que devia experimentar um sorvete. Sorvete! Neste país...! O resultado aí está: não escapa. Os médicos não têm esperança de salvá-lo.

— Então é grave...?

— Se estou a dizer que já perdeu a fala.

— Vou vê-lo.

— Deves ir.

— Onde mora ele?

— Fora de portas; nos confins da rua do Senador Pompeu.

— E eu vinha aqui procurá-lo para ir com ele a uma casa de jogo.

— Hein?! Vais jogar?

— Qual jogar! Não tenho um vintém: ia jantar.

— Ias à ficha de consolação.

— É verdade.

— Janta comigo, queres?

— Onde?

— Ali defronte, no Londres.

— Pois vamos.

— Mas espera um instante, deixa-me arranjar esta papelada... Posso morrer de uma hora para outra e não quero comprometer umas tantas senhoras que me amam. Estou agora com seis complicações: duas no largo do Rocio, uma na rua do Lavradio, outra na rua do Riachuelo, ainda outra no Daury e uma senhora honestíssima em Paula Mattos...! Ah! Meu amigo, só a minha paciência, só a minha paciência! A de Paula Mattos, então, é uma fera! Quando apareço tarde desaba em cima de mim como uma avalanche, e são beijos, e são lágrimas e são dentadas. Um desespero! Tenho o corpo como um mapa-múndi. Sou um homem tatuado pelo amor. Ontem fui ao cabeleireiro e o homem esfregou-me a cabeça com uma loção não sei de que, pois, meu amigo, quase me matam, as seis! Foi um trabalho para convencê-las de que eu saíra de um salão de cabeleireiro e não da câmara de uma rival, e à noite, estava amassado, triturado... um horror! Não te metas com mulheres ciumentas, mira-te neste espelho e, arregaçando a manga do casaco, mostrou o braço manchado, denegrido. E isto não é nada, se visses o resto choravas; é um horror! Mas que hei de fazer? E a despesa? Uma quer frutas, outra quer camarotes, outra reclama um leque. A de Paula Mattos anda a perseguir-me por causa de um chapéu que viu na Douvizy e seu Neiva que cave! Já ando atordoado, não sei mais como arranjar dinheiro. Toma alguma coisa.

— Vou tomar um Xerez.

— Olha um Xerez aqui!

— E o Grêmio, Neiva?

— Vou tratar disso. Hoje mesmo decido a questão da casa. Já amanhã poderemos instalar-nos. Era uma necessidade. Em toda a parte os homens de letras têm um centro onde se reúnem. Aqui, não: ou a rua do Ouvidor ou o botequim. É uma vergonha. E querem que haja solidariedade. Vamos levar isso a efeito: é uma idéia que nos pode trazer magníficos resultados. Atirou a mão espalmada à coxa do companheiro: Seu Anselmo, nós somos uma potência. Se nos uníssemos, se não andássemos em eterno sismo provocado pela vaidade, porque cada qual se julga o maior, o pontífice das letras, já teríamos feito alguma coisa, entanto não valemos nada. Uma das causas da decadência literária, talvez a principal, é esta maldita rua do Ouvidor. Vocês mal saem do banho frio, ainda molhados, engolem, às pressas, a xícara de café e correm para aqui e aqui passam os dias bebericando, elogiando-se, discutindo sonetos e crônicas ou farejando cocottes. Que diabo! Não é assim que se faz um artista... Trabalhem, dêem algumas horas ao livro, façam alguma coisa a sério, deixem este maldito vício da rua do Ouvidor.

— E tu?

— Perdão, eu não sou escritor, nem me apresento como tal — eu sou um folhetinista oral: a rua do Ouvidor é o meu rodapé. Eu faço com a palavra o que vocês fazem com a pena, com a diferença, porém, de que eu estudo e vocês espreguiçam-se, bocejam inertemente.

— Tu estudas?

— Não faço outra coisa. Os meus livros andam encadernados em cheviotes, em flanelas, em sedas; há alguns brochados: são os miseráveis. Cada tipo dá-me um folhetim, cada vida, a mais simples, dá-me assunto para falar uma hora. Vivo a dizer verdades. Bem sei que a minha obra é precária, mas há de ficar o benefício. Falo: a minha enxada está aqui e, espichando a língua, tocou-a com o indicador.

Levantaram-se e seguiram, caminho do hotel. Justamente Anselmo chegava à porta quando esbarrou com o Lins que entrava, com um grande charuto encravado nos dentes.

— Que é isto! Tu aqui?!

— Então! Onde querias que eu estivesse?

— O Neiva disse-me, há pouco, que estavas à morte, sem fala...

— Sem vintém é que estou, desde ontem.

— Mas não estiveste doente?

— Qual doente! Não tenho nada, nem ceroulas... Estou aqui sem ceroulas. É uma vergonha!

— E com os sapatos num estado...

— Um homem de espírito não olha para os pés, murmurou o poeta.

Anselmo levantou os olhos e desatou a rir:

— Onde foste buscar esse chapéu, Lins?

— Sei lá! Apareceu-me na cabeça hoje de manhã. Era um velho chapéu de palha, de grandes abas, crivado de furos. E o boêmio explicou: Creio que serviu de alvo em alguma casa de tiro. Mas assim é bom, o ar penetra livremente e, como os médicos recomendam que se deve trazer sempre a cabeça fresca, estou contente com esta peneira. O Neiva, que havia parado a conversar com um patrício, deu um salto para a calçada quando viu o poeta.

— Tu! Donde vens? Tu és o Lins?!

— Em carne e osso.

— Pois não morreste?

— Não, como vês.

— Nem esteve doente, disse Anselmo. E tu afirmaste que o havias visitado e que ele estava sem fala.

— É exato. Mas eu sou capaz de jurar... Eu não estive ontem em tua casa, Lins?

— É possível; não garanto, porque lá não fui.

— É extravagante...!

— É macabro!

— Pois eu ontem estive contigo, por Deus! Estavas agonizando, sem fala. Pensou: Onde jantei eu ontem, Francisco? Ah! No Daury... Então foi sonho.

— Com certeza.

— E tu? Que fizeste ontem?

— Homem, para dizer a verdade, não sei. Acordei hoje às 9 da manhã em casa de uns estudantes, na rua do Núncio. Não me interrogues: sou um poço de discrição.

— Queres jantar conosco...?

— Vá lá. Entraram.

— Pois olha, eu já tinha começado a recolher uns cobres para mandar rezar a missa do sétimo dia.

— E arranjaste alguma coisa?

— Seis mil e que...

— Pois vamos beber essa missa e vê se tiras depois para um Te-Deum em ação de graças pelo meu restabelecimento... e bebe-se também o Te-Deum.

Sentaram-se à mesa e iam começando a jantar quando Fortúnio apareceu rindo a bandeiras despregadas.

— Que é isso, homem?

O poeta sentou-se e contou, por entre gargalhadas, a "noite" do Duarte. Havia falecido uma das suas muitas apaixonadas — menina loura, de olhos azuis, quinze anos, com o doce nome de Carmen. Exaltado, o Duarte, para sopitar a grande dor, atirou-se à adega paterna e, durante três dias, encafuado entre os canteiros, bebeu e chorou desesperadamente. Na noite da véspera, inconsolável, resolveu ir visitar a noiva que se finara e abalou para o cemitério de S. João Batista conseguindo penetrar no Campo Santo.

Errou muito tempo entre túmulos sem acertar com o que escondia o formoso corpo da donzela até que, por fraqueza das pernas, rolou sobre um deles abraçando-se com a cruz. E começou a soluçar, blasfemando contra Deus, pedindo a morte e, tanto fez que, nem ele mesmo sabe dizer como, arrancou a pesada cruz do sepulcro saindo com ela como uma relíquia. Tomou o bonde, mas um soldado, desconfiando do fardo, que o poeta mal sustentava nas mãos, interpelou-o:

— Quem é o senhor?

— Eu sou o homem mais desgraçado deste mundo, camarada.

— Onde vai com essa cruz?

— Vou levá-la ao Calvário... e desabou sobre a praça chorando inconsolavelmente. Diz ele que o soldado ficou comovido, mas nem por isso o deixou ir em paz: convidou-o a acompanhá-lo até à estação e lá o Artur, em pranto, contou a cena noturna: Que efetivamente penetrara no cemitério e que arrancara a cruz do túmulo da sua amada para crucificar-se quando a saudade fosse muito forte. E o caso vem hoje contado na Gazeta, sob o título Profanação e o Artur viu, com pasmo, que a cruz era do túmulo de um comendador.

— O Convidado de pedra... É ele?

— Anda por aí indignado.

— E o processo?

— Qual processo! A família meteu-se no caso. Mas é doido!

— Inteiramente. Já jantaste?

— Não.

— Janta conosco.

— Não, estou comprometido.

— É caso de amor?

— Não, qual amor... Não tenho tempo para essas coisas. Vou jantar com um carnavalesco que me pediu um puff.

— Ah! Bem. Amanhã, à noite, primeira reunião do Grêmio.

— Lá estarei. E já marcaste o dia da dissolução?

— Como da dissolução? Então não acreditas que possamos manter um centro de palestra?

— Não acredito.

— Por quê?

— Porque conheço o meio.

— Pois há de viver.

— Duvido muito. Nós não temos espírito de associação.

— Mas é necessário que tenhamos.

— Não dou dois meses ao Grêmio.

— Uma aposta! — bradou o Neiva dando um salto.

— Apostemos!

— Cem mil réis!

— Está feito.

— Não dura um mês?!

— Não dura um mês, repetiu Fortúnio tranqüilamente, e, sem mais dizer, estendeu a mão aos rapazes e saiu.