A idéia da abolição ia ganhando terreno: a palavra "escravocrata" tornou-se um labéu, até fazendeiros faziam garbo em dizer-se abolicionistas e, quase diariamente, chegavam cartas do interior e notícias que eram publicadas nos jornais, precedidas de comentários lisonjeiros anunciando que fulano ou beltrano libertara todos os seus escravos, conservando-os na fazenda como colonos.
Com a partida do imperador para a Europa, começando a regência da princesa Isabel, logo correu que o monarca, compreendendo que a idéia republicana começava a impor-se, ameaçadora e forte, deixara a filha no poder com instruções para que assinasse o decreto que o povo, do Norte ao Sul, reclamava, julgando que, assim, criando uma corrente simpática, manteria a dinastia ameaçada pela temerária propaganda republicana que tinha em Silva Jardim o principal campeão.
Aos domingos o povo enchia o "Recreio", onde os mais ardentes abolicionistas iam protestar do palco e dos camarotes em discursos inflamados contra o cativeiro reclamando, com ameaças ao trono, a abolição imediata e incondicional.
Patrocínio, com a sua palavra, fogosa, em reptos de eloqüência, fazia a descrição da vida infeliz dos escravos. "Nos verdes pastos ubérrimos andavam as ovelhas com as suas crias, as mães negras entanto, eram separadas dos filhos, que ficavam vagindo no fundo das senzalas enquanto as miserandas, com os peitos pojados e os olhos inundados de lágrimas, ao sol inclemente, zurzidas pelo vergalho do feitor, iam capinando as ruas dos cafezais. O esposo negro sofria calado todas as injúrias, até a desonra. Alguns, mais violentos, arremetiam armados caindo sobre os miseráveis que os infamavam e, ensangüentados, fugiam para as brenhas, onde levavam vida selvagem, de feras, encurralados em cavernas; outros buscavam a morte e, as vezes, quando as turmas seguiam para o serviço, estacavam perto de uma árvore de onde pendia, oscilante, o corpo de um parceiro.
Nos 'troncos' gemiam vítimas; e muitos caminhavam arrastando algemas pesadas e, com gargalheiras, como galés, trabalhavam pela frutificação, fecundando a terra que iam regando com suor e lágrimas."
Quantas vezes era a palavra flamejante do tribuno cortada pelos apartes dos secretas, que se metiam entre o povo para perturbar o propagandista com assuadas e ameaças. Quase sempre, porém, eram repelidos à bengala, à pedra, às vezes à bala, abandonando o teatro diante da fúria da multidão e o orador, serenando o tumulto, continuava, anunciando para muito breve "a grande misericórdia".
Todos os moços acompanhavam-no: Octavio Bivar, Luiz Moraes, Fortúnio, Neiva, Ruy Vaz, Anselmo e Pardal que chegara do Recife com dois romances, uma gravata sangüínea, idéias explosivas e a carta de bacharel.
Era um tipo romântico de mosqueteiro, um d'Artagnan de olhos azuis, pele branca e macia, mãos delgadas, cabelos louros, violentamente atirados para trás, bigodes impertinentes, espichados em duas pontas finas, compridas e rijas e a mosca que ele retorcia amiúde, rindo sarcasticamente, em rinchavelhada irresistível, riso percuciente, satírico que valia por uma vaia quando irrompia da platéia ou do fundo de um camarote.
Era ousado e, como brandia a bengala nodosa, esgrimindo, tinham-no por espadachim, um cavaleiro de Eon, e temiam-no.
Era um anjo, dizia o Neiva: — O Pardal anda a provocar duelos e quer sangue, quer devastação, tem fome de fígados humanos, pois mostrem-lhe aí um velho enfermo ou uma criancinha com frio e hão de ver como se desfaz em lágrimas. É até capaz de empenhar os bigodes.
Pardal não ia às conferências sem o seu revólver e uma faca na cava do colete. Todos falavam, o povo já os conhecia: eram os discípulos do Messias da raça negra.
Entre os artistas a idéia tinha fanáticos. Os Bernadelli eram dos mais entusiastas. No teatro: Dias Braga, Vasques, Guilherme de Aguiar, Arêas, Galvão, Peixoto, Mattos, Eugênio de Magalhães, Maia, Ferreira, André, Castro, Suzana, Oudin, Balbina, Clélia. Entre os músicos Pereira da Costa, Miguez, Tavares, Nascimento, a doce Luíza Regadas, alma meiga, o rouxinol da propaganda e Francisca Gonzaga, a maestrina.
O Amazonas já se havia libertado. Não se contava mais um escravo nas margens do rio-mar e o Ceará, seguindo o exemplo da sua irmã do Norte, concluiu, num dia, a obra intrépida dos jangadeiros, iniciada nas águas pelo valoroso caboclo Nascimento.
Na serra paulista, entre as grandes árvores, crescia o quilombo de Jabaguara, engrossado diariamente por bandos foragidos que chegavam dos mais longínquos municípios da terra dos Andradas.
Era impossível sustar a marcha triunfante da idéia que vencera as represas. A tropa confraternizava com o povo e, nas duas câmaras, era grande a maioria dos abolicionistas a cuja frente destacava-se, como a de um Apolo, a válida e simpática figura de Joaquim Nabuco.
Patrocínio, desligando-se, com saudade, da Gazeta da Tarde, havia fundado a Cidade do Rio chamando Anselmo, que andava em disponibilidade, sem casa e sem botinas, escrevendo contos e fantasias à mesa dos cafés, jantando, nem sempre, parcamente, na rua Nova do Ouvidor, onde, de quando em quando, havia lautos banquetes, com discursos, a 500 réis por boca, duas moringas de água inclusive.
Esse hotel módico e discreto, pelos grandes e inolvidáveis serviços que prestou à literatura, às Artes e ainda ao funcionalismo, merece menção especial e honrosa.
Dava almoços e jantares a quinhentos réis. Mas que almoços! E que jantares! O primeiro prato era: um começo; o segundo: uma continuação; o terceiro: um último. Enquanto os Ugolinos devoravam ouviam os caixeiros que, em mangas de camisa, vociferavam: "Dois começos...! Olha três últimos...! Duas continuacões...!" Não eram abundantes os pratos nem saborosos, mas nutriam, e tanto bastava. Como havia um gabinete reservado eram ali realizados, de tempos a tempos, suntuosos festins.
Em certa ocasião, sendo a fortuna do grupo limitada e havendo-se um dos convivas excedido em libações, Fortúnio lembrou-se de substituir com água da Carioca a quantidade de outra água que havia sido ingerida; mas o caixeiro, dando pela fraude, protestou e exigiu o que não havia, porque todos os poetas juntos não valiam 220 réis. Houve larga discussão e uma bengala ficou como refém nas mãos do hoteleiro, representando um extraordinário de seis cálices. Ruy Vaz, que não se podia habituar com aquela casa sórdida, freqüentada pelo que havia de pior na cidade, rejeitava os convites que lhe faziam os companheiros.
— Não, ao Quinhentão não vou. É detestável, repugnante, cheira à graxa. Depois aqueles caixeiros irritam-me os nervos — de tamancos, imundos, sempre a bradarem continuações, como folhetins encarnados. Prefiro ficar in albis. A mesa para mim não é apenas o comedouro, deve ter algum encanto aprazível à vista. Os olhos também comem, comem os ouvidos, o nariz come e o tato igualmente. Não dispenso a baixela, os cristais, as flores e gosto de sentir nos dedos uma toalha lustrosa e um guardanapo liso... O guardanapo ali tem a cor de um esfregão, a toalha parece um pano de açougue; as moscas vêm comer com a gente à mesa e, às vezes, com tanta gana, que nos entram pela boca, e lá ficam.
— Oh! Não é tanto assim, Ruy Vaz!
— Como não é tanto assim? Aquilo é horroroso!
— Como sabes?
— Por informações. Um amigo meu, que ali jantou, comeu tais imundícies que, no dia seguinte, teve de ir ao escritório de um médico lavar o estômago com sabão.
— As feijoadas são excelentes, Ruy Vaz. Já uma vez comi chispes maravilhosos!
— Eram pés de algum dos caixeiros.
— Ora... hás de lá ir comigo.
— Eu?
— Tu, sim.
— Estás enganado.
— Pois eu vou todos os dias.
— Tu? — perguntou Ruy Vaz com espanto.
— Então?
— A que horas almoças?
— Às dez.
— Ah... — fez o romancista. Pois só te digo que é uma imundície. Prefiro a fome.
— Pois eu não.
Uma manhã, como de costume, entrou Anselmo no Quinhentão. Às mesas os fregueses habituais devoravam: caixeiros de casas vizinhas, em mangas de camisa, sem gravata, mastigando com fúria, operários, estudantes. Ouvia-se o rechino das frigideiras e as moscas voejavam pousando em enxames, nas toalhas, no chão, e atirando-se à boca dos que comiam, como abelhas que investissem a aivados.
Anselmo, para não ser visto da rua, procurava sempre uma das mesas do fundo e, dando as costas à porta, empanturrava-se, ouvindo as chalaças dos caixeiros e as estrondosas gargalhadas do dono da casa, tipo acabado de Sileno, ventrudo, com uma papada roxa que se lhe derramava pelo colarinho, dando uma impressão de sórdida fartura. Quando ria toda a casa atroava. Anselmo ia sentar-se quando, olhando para um dos ângulos, rompeu a rir vendo Ruy Vaz inclinado, a devorar, com grande convicção e apetite, um último, que era o clássico bifezinho tênue, com três batatinhas mirradas. Caminhou e, diante da mesa do romancista, cruzando os braços, perguntou:
— Que é isto? Tu? Ruy Vaz levantou a cabeça e, dando com o companheiro, sorriu sem vexame. Então, sempre te resolveste?
— Ah! Meu amigo, eu faço tudo pela Arte. Senta-te. Vens almoçar?
— Sim, venho.
— Pois aqui estou. Decididamente não se pode amar a Verdade. Se o público soubesse quanto custa ser naturalista pagava os meus romances a peso de ouro. Vou às estalagens apanhar em flagrante a grande vida de tais colméias e, para que a gente não se perturbe com a minha presença, visto-me de carregador, meto-me em tamancos. Subo às pedreiras, penetro, com risco de vida, as reles tavolagens, passo horas e horas entre a gente tremenda dos trapiches, converso com catraieiros e, finalmente, venho comer nesta baiúca, como vês.
— Mas, então, não foi por fome?
— Qual fome! Eu podia ter ido almoçar ao Globo, mas ando acompanhando um tipo.
— E onde está ele?
— Comeu e saiu. Para que não desconfiasse, porque ele já deve ter notado que o sigo, pedi um almoço e pus-me a comer... maquinalmente.
— Quiseste também fazer um estudo do bife que aqui se dá?
— Homem, não estás muito longe da verdade. E queres que te diga? Não é tão mau como eu imaginava. É pequeno, uma amostra, mas passa. Tenho comido piores em hotéis de primeira ordem.
— As aparências iludem.
— Estou convencido. Vou agora provar o chá. Que tal?
— Hediondo e tóxico!
— Já agora... E, chamando o caixeiro com superioridade: Arranja-me um chá, com pão quente.
— Pão quente é extraordinário.
Ruy Vaz pasmou e, depois de encarar o caixeiro, que se pôs a torcer a toalha imunda:
— Extraordinário, hem!? Extraordinário és tu! E pão frio...?
— Ah! Pão ao natural?
— Ao natural?! Que diabo é pão ao natural?
— É pão que não vai ao forno.
— Homem, esse é que é extraordinário. Pois há aqui um pão que não vai ao forno?
— Para ser aquecido. Ora! O senhor está caçoando! Vá lá, diga de uma vez: Quer ou não o pão torrado?
— Não, quero ao natural, sou naturalista. Francamente, Sr. Anselmo, isto é hediondo! É medonho! E almoças e jantas nesta casa? Quem é o teu médico?
— Não tenho.
— Pois quem come em alfurja como esta deve sempre ter um médico à cabeceira.
Anselmo sentou-se e, almoçando, expôs a Ruy Vaz o plano de um romance que tencionava publicar na Cidade do Rio: O Rei Fantasma, cuja ação se desenvolvia num reino imaginário da África.
— Por que não deixas essa mania de orientalismo, homem?
— Gosto.
— Ora, gostas... Trata de aplicar o teu espírito ao meio. Podes fazer obra magnífica sem sair da tua terra. Tens natureza, tens almas, que mais queres? Preferes lidar com títeres a lidar com homens. Nunca farás um livro verdadeiro, sentido, farás sempre obra convencional. Deixa em paz os deuses gregos e as odaliscas turcas, não te preocupes com os templos da Hélade nem com os minaretes de Stambul: põe-te em relação com a natureza da tua pátria. Tens um campo vasto de explorações — desde o sertão, quase virgem, até a rua do Ouvidor, que é o círculo central das almas brasileiras. Deixa-te de Oriente.
— Mas o romance está quase pronto.
— Pois publica-o. Mas fica nesse, não escrevas outros.
— E os contos?
— Também os contos. Queres assuntos deliciosos para contos admiráveis? Estuda o povo. A alma moderna é mais sofredora do que a antiga e a Dor é um manancial inesgotável. Deixa-te de ninfas e de faunos, trabalha com homens. Queres saber a razão por que muitos escritores preferem o orientalismo? Porque é mais fácil fazer a pompa do que a verdade: são como o discípulo de Apelles. Manda à fava essa mania e trata de fazer obra sentida.
Anselmo começava a irritar-se com essa observação que lhe soava aos ouvidos com a insistência de um remorso. Diziam-lhe todos a mesma coisa. Protestou:
— Que diabo! Vocês falam tanto contra a mania do orientalismo e admiram Salammbô.
— Perdão, Salammbô não é apenas uma obra de ficção: aquela tela deslumbrante é feita com verdadeiros fios de ouro. Há ali, a par do quadro histórico de uma civilização, um largo estudo de caracteres. Salammbô tem alma. Hamilcar vive, Spendius é uma figura palpitante e o povo de bárbaros, assim como a gente púnica, não é um ajuntamento de títeres. Há naquela obra lapidária uma alma forte que vitaliza os tipos. Ainda assim, apesar de mestre Flauberv haver trabalhado aquele mármore africano com o mesmo escrúpulo com que Fídias burilava as suas figuras imortais, prefiro à grandeza deslumbrante do rútilo poema a simplicidade de Mme. Bovary. Lança os olhos à obra de Balzac. Tudo nela é humano, desde Eugenie Grandet e o Pêre Goriot até o Le lys dans la vallée. Tu mesmo, no dia em que começares a lidar com almas, hás de convencer-te da verdade. Vê a obra do que copia uma academia como se amesquinha diante de um estudo do natural. Posso falar-te assim porque conheço ambos os processos, sei quanto custa transportar para o livro uma alma surpreendida na grande vida e quanto é fácil fazer obra maravilhosa. Experimenta.
— E tu, por que escreves páginas de ficção?
— Por desfastio. Tenho uma válvula de expansão de sonhos.
— Pois é o que se dá comigo. A minha faculdade essencial é a imaginação. Vivo a sonhar, as idéias pululam no meu cérebro e sinto que são as sementes antigas que se fazem floresta. Comecei a estudar em livros orientais. Foram as Mil e uma noites a obra que mais funda impressão deixou em meu espírito quando se ia formando, depois as histórias que me contavam nos serões tranqüilos e, finalmente, as leituras. Eu procurava, de preferência nos poetas, as descrições da vida levantina — em Byron o D. João, A noiva de Abydos, o Giaour; em Gautier o seu grande mundo fantástico; em Flaubert Salammbô e assim sucessivamente. A minha imaginação, assim fecundada, foi-se desenvolvendo nesse meio e hoje sinto que, se deixar o Oriente, fico como um homem que, trazido vendado, se achasse, de repente, como por encanto, num intrincado labirinto de onde não pudesse sair por desconhecer os meandros.
É possível que, mais tarde, consiga livrar-me do que chamas a minha mania, mas deixa-me extravasar. É necessário que eu alije de mim todos os sonhos para poder empreender nova carreira. Por enquanto é impossível e não quero contrariar as tendências do meu espírito. Demais, quer-me parecer que se pode fazer obra verdadeira com o cenário faustoso. Um homem, pelo fato de andar vestido com uma cabala de seda oriental e de trazer à cinta alfange e turbante à cabeça, não deixa de ser homem. Gautier vivia em Paris vestido à oriental. A alma é como a luz: pousa em toda a parte.
— Mas queres convencer-me de que podes descrever a vida de Bassora ou de Cachemira como descreverias a vida do Rio Janeiro? Podes fazer o estudo sincero de um homem de Bombaim como farias de um dos sujeitos que encontramos a todo nas ruas? Podes analisar a alma de um pária?
— Posso.
— Como?
— Imaginando.
— Ah! Imaginando... E por que não hás de descrever vendo a dor triste de um homem que sofre a teu lado, cujo pranto vês cair gota a gota, cujas lamentações escutas? Não achas que assim farás obra mais completa, mais viva, mais duradoura?
— No fundo do sonho há sempre a verdade.
— Preferes então sonhar?
— Prefiro.
— Pois meu amigo, acho que fazes mal.
— Pode ser.
— Queira Deus que te não arrependas.
— Não me hei de arrepender.
— Veremos.
— Pois sim.
— Bem, vamos sair. O hotel começa a tornar-se insuportável.
— Para onde vais?
— Para a Cidade do Rio.
— Estás outra vez com o Patrocínio?
— Como secretário da folha.
— Então, até logo. Vou retocar umas páginas. Adeus.
— Adeus, Ruy Vaz