A Cidade do Rio tornou-se "o estuário do gênio indígena" como bramia o Neiva atirando bengaladas ferozes às mesas dos cafés.
Para o órgão da propaganda abolicionista afluía a flor da inspiração. Luiz Moraes era assíduo, ora entrava levando uns formidáveis alexandrinos, que ressoavam tonitruosamente como carros de guerra; ora, a pedido do Patrocínio, sentava-se a uma das mesas e escrevia o artigo de fundo, com mais imagens do que uma igreja, reclamando, em nome do coração e em nome da Justiça e... de Spencer, a liberdade dos que sofriam. Octavio Bivar, ou mandava uma das suas poesias finamente buriladas ou, com a pena incandecida, rendilhava sátiras. Pardal, sempre irônico, enchia tiras e tiras com os seus paradoxos ou bradava por sangue e fígados com a mesma calma com que, no Londres, à tarde, pedia o seu absinto. Fortúnio, Duarte, o próprio Ruy Vaz, sempre atarefado, parando um instante, escrevia algumas linhas rápidas sobre a questão palpitante ou sobre um livro que aparecia, aproveitando o ensejo para expor a sua estética, defendendo o naturalismo.
A Vida Moderna, apesar das grandes esperanças dos seus redatores, desaparecera da circulação e a "alma literária", como dizia o Luiz, andava errante, esvoaçando estonteada pelo sarçal do jornalismo mercenário como a ave que perdeu o ninho, piando aqui uma elegia, chilreando além um ditirambo, sem abrigo certo, peregrina e dorida.
Patrocínio, sempre sonhando, depois de pronto o jornal, procurava os rapazes à hora do vermute e, arrebatado, expunha os seus planos maravilhosos:
— Rapazes, vamos fazer a Cidade do Rio. Aquilo não é meu, é nosso... e é uma mina! Aquele jornal é uma mina! Tudo está em saber explorá-lo. Que diabo! Não basta ter talento, é preciso também um pouco de senso prático. Andam vocês numa vida de eterna contingência: Um, não tem sapatos, como o Fortúnio que, há dias, recordava, com saudade, o tempo em que descia as escadas a correr sem receio de que as solas lhe ficassem nos degraus, porque não eram cosidas com barbante, como agora. Outro, Bivar, anda com um chapéu de palha que parece uma cesta de compras. Anselmo apareceu-me com umas calças cor de telha que quando ele as tirava, ficavam de pé no meio do quarto como se fossem de barro. Entanto, se vocês quisessem trabalhar comigo, em um ano... em um ano não digo, mas em dois, levantávamos uma fortuna e abalávamos para Paris. Ali, ali sim! Ali poderiam vocês cultivar a grande Arte. Paris é uma cidade, não é esta choldra onde a gente, aos vinte anos, tem a cabeça branca e aos trinta é ruína, a cair. Começo a sentir-me cansado, já não sou o mesmo homem. Há ocasiões em que fico debruçado à mesa, com a pena sobre o papel, a rabiscar, a rabiscar, e nada de sair o artigo...
— Ah! Mas quando sai, exclamou o Moraes bambaleando-se, quando sai é... como o corpo de bombeiros.
Houve uma gargalhada estrepitosa, porque o Moraes, juntando o gesto às palavras, derrubou copos, garrafas e teria estourado um sifão se Ruy Vaz não acudisse ligeiro.
Foi em uma dessas palestras que Patrocínio revelou o seu grande segredo: "Tinha resolvido o problema da direção dos balões."
— Já sei que vocês vão sair daqui comentando as minhas palavras com pilhéria. Pois meus amigos, é a verdade: tenho o segredo de Dédalo.
— As asas de cera.
— Perdão, não ria. Falo sério e vocês não têm o direito de duvidar da minha palavra, porque ainda não dei provas de loucura ou de imbecilidade.
— Então vai tudo agora pelos ares?
Patrocínio não respondeu a Anselmo e continuou:
— Tenho estudado a questão com empenho e posso exclamar: Eureka! Trabalho lentamente, porque aqui no Rio de Janeiro não há um fundidor que execute um molde perfeito. Dá-se-lhe um desenho e o bruto faz coisa inteiramente diversa. E a gente que se lembre de protestar. Vocês sorriem? Pois sim... Eu hei de rir lá de cima quando, depois do meu banho frio e de um cálice de conhaque, sair daqui no meu balão, às seis da manhã, para almoçar, às onze, em Lisboa.
O sonho empolgou-o e o intrépido propagandista, o destemido tribuno, o polemista audaz pôs-se a falar com enternecimento, inclinando-se para que as suas palavras não saíssem do círculo dos amigos que, impressionados, já não sorriam, ouvindo, com enlevo, a narração maravilhosa do grande homem:
— Imaginem vocês a coisa nos ares, nós todos na barquinha, porque havemos de ir todos...
— Só se for uma das barcas Ferry, adiantou Fortúnio.
— Espera, homem... A ascensão, bem? E foi levantando as mãos e batendo o espaço com elas como se fossem duas asas. Rápido, jogou o braço e, inclinado, surdamente, explicou: Depois, ganhando a linha desimpedida, a vasta e livre estrada aérea, voando, voando, voando, vendo a terra como um nevoeiro, como a viu Menippo, o mar como uma mancha lúcida, depois as brumas inferiores, brumas, brumas, brumas e nós, como deuses, navegando em nuvens, numa celeridade vertiginosa, fazendo versos ao grande vácuo, falando onde só os trovões atroam, rindo onde só riem as madrugadas e orvalhando a terra vil com champanhe... Hem? Que dizem vocês? E quando chegarmos a Paris, diante do mundo pasmado e ouvirmos, nos Campos Elíseos, as aclamações do povo magnífico da cidade por excelência... Vocês não pensam nisso? Que diabo! Vocês não têm sangue! Não têm nervos...!
— É belo, não há dúvida, disse Fortúnio, mas receio que nos aconteça o mesmo que aconteceu a Faetonte.
— Qual Faetonte! Faetonte era uma besta! Você então não toma a sério a minha idéia?
— Como não tomo?
— E se visses o balão não entravas nele?
— Conforme: amarrado e com garantia de vida.
— Pois eu vou. Vou e vocês hão de ficar aqui de boca aberta, torcendo-se de inveja. Faço a volta do mundo em uma semana e depois...
— Depois...?
— Depois, descanso. Tenho a minha obra. Achas pouco a conquista do espaço?
— Eu não acho pouco: acho muitíssimo!
— Então por que ris?
— Não estou rindo.
— Watt também passou por louco.
— Mas ninguém te julga louco.
— Nem eu admito. Afirmo que resolvi o problema e, dentro em breve, vocês terão a prova. Um dia, acordando, hão de vocês ver um pontozinho fugindo no espaço, fugindo, fugindo e, quando perguntarem, aterrados, à gente do observatório: "Que meteoro é aquele que vai pelos ares fora vertiginosamente?" ouvirão dos sábios as palavras solenes: "É o Patrocínio que está passeando em balão. Vai jantar no Cáucaso." E então... rira bien qui rira le dernier. E com esta, meus amigos, até logo. Tenho hoje uma conferência no Club Tiradentes. E saiu justamente quando entrava Montezuma, o velho, o amável Montezuma, o grande historiador do Rio da Prata, portador do althéa providencial.