Montezuma, oficial de marinha reformado, apesar dos cabelos brancos e da feição venerável de patriarca, conservava no coração todo o viço dos vinte anos. Alma que se não regelava, longe de agregar-se às neves da ancianidade, chegando-se aos homens do seu tempo, que andavam curvados, entristecidos, à espera do vencimento da letra da vida, buscava a companhia dos rapazes, vivendo nela muito à vontade e com estos nada inferiores aos do mais ardente boêmio.
Como o Timon de Luciano andara com Pluto e com a Miséria, sendo íntimo de ambos: esbanjara milhões e tivera dias sem lume, longe da pátria, em terras sopradas pelo minuano.
A história da sua vida, narrada miudamente, daria um copioso romance de aventuras, qual mais extraordinária, umas felizes, outras desastrosas. Vogara nas águas do Sul governando um navio carregado de gêneros e outro transformado em hospital, que ardeu sobre as águas paraguaias quando os nossos guerreiros desafrontavam a bandeira que os guaranis de Lopez ousadamente ultrajaram. Foi ele quem, a 11 de Junho, tendo a notícia da vitória do Riachuelo, saiu a anunciar o feito pelas terras do Prata, transmitindo a nova ao Brasil com abundância de hipérboles. Íntimo de todos os grandes homens das Repúblicas do Sul, falava dos ditadores como de companheiros de noitadas. Empenhara capitais em revoluções, comprometera-se em golpes de Estado e, depois de haver dissipado milhões, vivia das suas glórias, não como o misantropo de Atenas, encolhido e bilioso, mas sonhando com empresas complicadas, sempre a somar milhares.
Homem de casos análogos e de sátiras, tinha sempre uma anedota a propósito e um comentário cáustico para todos os acontecimentos políticos.
A mulher era a sua intemperança e raro era encontrá-lo sem "uma senhora virtuosíssima, esposa, viúva ou filha de um amigo do Rio da Prata".
Com essas Penélopes Montezuma aparecia no Pascoal e gastava largamente, não em linho para que fiassem honestamente, mas em sedas, em carros, em champanhe.
Muito amigo dos rapazes, além de outras virtudes, possuía um talismã inestimável: o althéa. Era um guarda-chuva de cabo branco que, nos momentos precários, passava das mãos do seu dono para o prego. Às vezes entretido em grupos políticos, Montezuma discutia, com azedume, questões financeiras quando sentia que lhe puxavam o guarda-chuva. Era algum dos boêmios.
— Estás com fraqueza pulmonar? Queres o chazinho de althéa? E, rindo, lá o entregava e o rapaz corria ao Hoffmann que, por conhecer intimamente o "objeto", dava os cinco mil réis, que era tudo quanto conseguia arrancar o precioso talismã. Quantas e quantas vezes, sob aguaceiros torrenciais, Montezuma, encolhido em algum vão de porta, lamentava o seu guarda-chuva:
— É isto! Tenho um guarda-chuva que é um tapa-misérias. Nem sei em que prego está... E, se via um dos rapazes, ia imediatamente perguntando: Foste tu que penduraste o althéa?
— Não.
— Quem foi?
— Não sei.
— Nem sabes em que casa está?
— Não. E bem necessitado ando eu dele.
— E eu! Vou tirá-lo amanhã.
— Olha, se o tirares e se não chover, empresta-mo porque estou precisado de uma gravata.
— Pois sim. E lá ia o Montezuma encharcado, à procura do homem que havia empenhado o guarda-chuva providencial.
Estimado por todo o grupo o velho boêmio, que era incapaz de negar auxilio a quem o procurava, só era avaro das relações femininas. Se alguém se aproximava "das honestas senhoras", que ele ocultamente protegia, abespinhava-se, declamando grandes moralidades e saía furioso, com desabalados gestos: "Que não havia respeito! Pessoas de tão reputada virtude não mereciam a menor consideração."
Como uma personagem de lenda Montezuma andava quase sempre a tinir. Um dia, porém, irrompia a notícia de que havia comprado carruagem e parelhas caras e, efetivamente, à tarde, gente acudia à rua Gonçalves Dias para ver o homem tomar o landau e bater para Botafogo com muitos embrulhos e vários pince-nez no nariz. Dias depois reaparecia com o althéa, murcho, contando que vendera a equipagem e que viera a pé da praia de Botafogo ao Catete, para pedir a um velho amigo dez tostões para o bonde.
Nesse tempo, porém, andava ele em boas relações com a Fortuna: a sua carteira mal fechava, engorgitada de cédulas e ele sabia de cor o número das apólices que possuía.
Vendo os rapazes aproximou-se e, logo de longe, como Anselmo afastasse uma cadeira, declarou que não se queria sentar. Andavam pessoas acompanhando-lhe os passos e tudo quanto fazia era sabido em casa, de sorte que vivia em constante guerra civil. Era forçado a retrair-se para que não se desse com ele o caso de... fulano, que tanto alvoroçara Montevidéu em mil oitocentos e tantos. E, para contar o caso, sentou-se, pediu um vermute e esqueceu-se da guerra civil, pondo-se a falar do imperador com irreverência:
"Que era um velho mentecapto que vivia a quebrar versos e a espiar os astros para fingir de poeta e de sábio. Neto de Marco Aurélio... Neto de D. João VI, o suíno, isso sim." Profetizou a abolição com energia: "Ou vem ou escangalhamos essa caranguejola em dois tempos. A América deve ser livre. Olhem para as Repúblicas do Prata, vejam como nadam em prosperidade, sem precisar de escravos para as suas culturas. Isto é uma vergonha! Confesso que, às vezes, tenho pejo de dizer que sou brasileiro. Pois havemos de viver sempre no último plano, e por quê? Porque temos um rei de burla. Está enganado: ou acaba com a escravidão, realizando a vontade do povo, ou vai passear; não precisamos de figura de proa na nau do Estado. Sou republicano, não de hoje. Já na escola de marinha escrevia manifestos republicanos. Posso lá com isso! Sinto não ter fortuna, senão... ah..." Mas apareceu à porta uma das "senhoras virtuosíssimas", acenou com o leque a Montezuma e o velho, muito comovido, pondo mais um pince-nez no bico, despediu-se para receber dignamente a dama "viúva de um ilustre comodoro".
O grande acontecimento dessa época foi, sem dúvida alguma, o estabelecimento da cozinha na Cidade do Rio. Atendendo às queixas dos redatores, que viviam lívidos e magros, mal nutridos no sóbrio Quinhentão, Patrocínio resolveu realizar um dos seus ideais que era ter a mesa das refeições ao lado das mesas de trabalho, de modo que os seus prestimosos auxiliares, mal pingassem o ponto final no artigo, subissem a curta escada que levava à sala dos repastos, quente como uma fornalha e sem luz.
A mesa era vasta e ocupava toda a sala. Um cozinheiro, mestre perito em adubos, homem de alto poder inventivo em matéria de iguarias, tomou conta do fogão e, nas suas vestes rituais, amplo avental e o competente boné, apareceu, num radioso dia de março, tresandando à cachaça e bambo. Foi justamente no dia em que se inaugurou, com urras! e um peru de forno, a prestimosa inovação.
Anselmo quis escrever um estirado artigo, muito burilado, proclamando a generosidade do redator-chefe, vários poetas rimaram sonetos, a alma lírica expandiu-se largamente com o aroma sedutor dos refogados. Nessa apetitosa manhã a inspiração nobre não surgiu do cérebro, mas da cozinha que perfumava toda a casa.
Ao meio-dia, descendo o último original, Patrocínio, muito grave, recebendo os representantes dos jornais, convidou-os para o primeiro almoço.
Passaram todos à sala que havia sido ornamentada vistosamente e as cadeiras foram todas ocupadas. No centro da mesa uma dourada maionese rutilava. Era um prato digno do triclínio de Apício, não só pela beleza com que o mestre o dotou, mas pelo cheiro que dele se desprendia, que era de pôr em risco de pecado o mais abstinente monge da Thebaida.
Os frios foram desprezados todos os olhos, como os dos Argonautas, estavam voltados para aquele Pactolo saboroso de sorte que, quando o copeiro, que era o mesmo servente da redação, começou a servir, houve um alegre sussurro entre os convivas, cujos olhos faiscavam. E, bravamente, com famosa gana, a maionese foi atacada ficando um dos revisores com a boca cheia de água porque, por imperícia do copeiro, na distribuição nada tocara ao infeliz que teve de se contentar com três douradas e oleosas sardinhas de Nantes. Houve depois um peixe admirável e, seguidamente, as carnes e por último o peru, que arrancou aplausos. Ao estouro do champanhe, Patrocínio, muito comovido, taça em punho, explicou, em brinde magistral, o motivo daquela inovação:
"Senhores: instituindo os almoços e os jantares da Cidade do Rio não tive em mente concorrer com o Jornal do Commercio que era, até hoje, o único órgão brasileiro que fornecia comida aos seus redatores. Não! Quis apenas dar o bem-estar aos meus companheiros de trabalho e, como entendo que a primeira condição para que um espírito produza é a saciedade do estômago tomei um cozinheiro e, ao lado da oficina tipográfica, estabeleci a despensa.
Saco vazio não se põe em pé, diz a sabedoria popular. Com fome não há talento. É preciso que haja carvão na fornalha para que se gere vapor na caldeira. Quanto tempo perde um redator em andar procurando hotel? Que riscos tremendos corre a vida de um desses rapazes, que são a glória futura da nossa pátria, entregando-se aos cozinheiros mercenários dos hotéis à la carte, onde a limpeza é um problema e a virgindade dos vinhos tão suspeita como a da Rússia imperatriz famosa?! Não, com a cozinha em casa tenho certeza de que todos os gêneros são de qualidade e os vinhos serão analisados cuidadosamente por meu compadre, o ilustre químico Campos da Paz. Este é o primeiro passo.
Começo a reforma pela cozinha e espero poder, em breve, ver realizado o meu grande e nobre ideal. Dentro em pouco os redatores da Cidade do Rio terão coupé, palacete e o edifício do meu jornal será o primeiro da América do Sul. Para isso, porém, é necessário que todos me auxiliem, porque a glória e o conforto que procuro não são para mim somente, todos terão a sua parte." Houve alarido e palmas.
Anselmo, magnificamente repastado, prometeu concorrer com o seu talento para o brilho da folha e manutenção da respectiva cozinha e Octavio Bivar, enternecido, fez o mesmo protesto. O mestre cozinheiro foi aclamado com delírio por quantos haviam saboreado as finas iguarias que ele, com tanta arte, recamara de folhas tenras e temperara com sabedoria incomparável.
Instalada a cozinha, o perfume dos guisados atraiu à Cidade do Rio, que se tornou o Hymetto das abelhas líricas, toda a poesia perambulante. Às onze horas começava invariavelmente a entrada, como no castelo de Wartburgo, não para o repto poético, mas para a manducação: e, ao meio-dia, tendo Patrocínio terminado o artigo de fundo, dirigiam-se todos para a mesa, e quanto folhetim foi ali improvisado entre um prato e outro!
O jornal dava apenas para a boca e mal, às vezes sem vinho. Anselmo andava farto, mas com os pés em petição de miséria e o Oliveira estava tão atrasado com a lavadeira, que, em certa ocasião, puxando um punho diante de Fortúnio e pedindo um lápis, o poeta perguntou pasmado:
— Para quê?
— Para tomar uma nota.
— Onde?
— Aqui no punho.
— O filho, pede antes um giz.
Ah! O pobre Oliveira, Oliveira, o troglodita, que morava em uma verdadeira caverna, em Paula Mattos: era o "speleo" da imprensa. Dele contava Ruy Vaz que, tendo mandado à lavagem química, no S. Mauncio, um paletó cor de castanha, quando o foi buscar, com a cautela, recebeu apenas os botões... porque o mais dissolvera-se na lixívia. Pobre Diógenes que trazia no corpo o azeite da sua lanterna. Fortúnio, sempre que o via, com as calças enlameadas, o paletó poeirento, o chapéu como um canteiro, dizia-lhe compadecido:
— Que a terra te seja leve!
Mas havia alegria e Patrocínio, pressentindo próxima a vitória da sua idéia, trabalhava empenhadamente para a batalha definitiva.
Efetivamente alguma coisa andava no ar. A princesa governava fragilmente, pensando mais em sermões e nos acordes do violino do White do que nos negócios do Estado e os republicanos solapavam o trono invectivando a regente.
Patrocínio, entanto, domando a sua pena tremenda, aparava os golpes que eram vibrados contra a princesa pelos republicanos que, com Silva Jardim à frente, começavam ostensivamente a propaganda, na tribuna e na imprensa. Contra o redator da Cidade do Rio avançava toda a legião, ele, porém, como se não sentisse os golpes, continuava sereno, impassível, pregando o seu programa, como se apenas escutasse o lamento dos escravos, tão alto, que não lhe deixava ouvir o rumor do tumulto dos novos combatentes que o injuriavam.
Uma manhã, porém, Anselmo invadiu a sala particular do redator-chefe, com um número de O Paiz, onde Silva Jardim havia publicado um artigo, violento e injurioso, no qual Patrocínio era tratado de traidor.
— Já leste este artigo?
— Que artigo...?
— Do Silva Jardim.
— Quem é?
— Homem, falo sério.
— Que diz ele?
— Um pavor. E deves responder.
— O filho, tenho hoje tanto trabalho!.
— Mas queres deixar tais acusações de pé?
— Que acusações!? O homenzinho entende que sou um infame, deixemo-lo com a sua ilusão. Atualmente não me pertenço: José do Patrocínio não é um homem, é uma causa. A minha pessoa não vale a minha idéia. Que me insultem à vontade, orgulho-me disso. Olha que tenho dado assunto, hein?
— Então não respondes?
— Não. Vou escrever um artigo sobre o quilombo de Jabaguara.
Curvou-se, tomou a pena, mas, de repente, aprumando-se, rugiu:
— Não respondo! Insultem-me! Ameacem-me! Tenho o meu programa traçado e não será a pena romba desse merovíngio que me há de fazer abandonar o roteiro. Justamente quando se vem anunciando a grande aurora é que eles querem que eu, esquecendo e abandonando um trabalho quase concluído, vá cuidar de outro. Não faltava mais nada! República numa pátria escrava! Que rosne! Que vocifere, tenho mais que fazer. E sentou-se.
— Queres que eu diga alguma coisa?
— Nada; nem uma palavra.
E, placidamente, continuou a escrever o artigo.