Jayme n'esse dia chegou mais tarde.
Muito animado, quasi alegre. Sentou-se á mesa, á modesta mesa onde, ao terminar o magro jantar de todos os dias, costumava fincar os cotovelos, e, de cabeça entre as mãos, ficava-se a scismar, até por vezes adormecer, esvahido e cansado de procurar, em vão, a solução do inextricavel problema da sua vida.
Mas n'aquele dia estava mudado. Tinha phrases mysteriosas, promessas vagas, gestos eloquentes e persuasivos em que se manifestavam esperanças de proximas e definitivas transformações na sua vida.
Beijava o pequeno, que alegremente lhe saltava nos joelhos, e em phrase breve mas convicta dizia-lhe:
— Deixa estar, meu amor, que ainda terás muitos brinquedos!
A mulher olhava-o surprehendida e inquieta, esboçando um pálido sorriso em que a esperança vagamente transparecia.
— Mas o que ha, afinal? – perguntava ela.
E o marido, muito animado, respondia:
— Olha, minha filha, não te posso dizer mais nada por ora, mas crê que toda esta miseria vae acabar... Nós tambem havemos de ter o nosso S. Martinho!
Ela então, n'uma desconfiança que desejaria occultar, retorquia:
— Pois sim... mas amanhã? O que faremos nós ámanhã? Não temos nada, nada!...
E soluçava:
— Já não nos fiam!... à noite não temos luz... ámanhã não teremos pão!...
Êle ergueu-se de repelão, o olhar brilhante, onde a esperança punha fulgurações alegres, envolvia-a cariciosamente, e, caminhando para ela, abraçou-a ternamente, dizendo-lhe:
— Martha, não te aflijas mais, crê em mim! todo este inferno de vida vae terminar amanhã. Tem paciencia em breve saberás tudo.
Dirigiu-se em seguida para a porta e, quasi a transpô-la, enviou-lhe um beijo, repetindo:
— O nosso S. Martinho vae chegar!...
Levava cinco mil réis no bolso. Cinco mil reis! Porque os não entregou à mulher? Que consolação para a pobre Martha, se o tivesse feito!
N'aquela casa, onde havia tanto tempo não entrava tal quantia, representaria uma pequena fortuna, e traria com ela uns lampejos de conforto.
Porque não disse, pois, à pobre creatura que tinha aquele dinheiro? Porque lh'o não entregou?
E' que êle tinha a sua ideia!... aquela grande ideia que o transformára, que representava, talvez, a salvação de todos! Aquele dinheiro, ia jogá-lo.
Ia tentar a sorte com êle e tinha a certeza que havia de ganhar.
Se o mostrasse, se communicasse a sua resolução, decerto a mulher se oporia, e adeus fortuna, adeus felicidade!
Tudo se perdia, era mais que certo, porque Martha não consentiria que êle fosse jogar o pão que faltava em casa.
Sim, mas o pão de pouquissimos dias, n'uma economia reles e miseravel, e, findos êles, viria a fome, essa negra e pavorosa fome que ha tanto os ameaçava!
Escusava, pois, de sentir a mais tenue sombra de um remorso, porque êle não teria tão cedo a probabilidade de arranjar quantia igual.
O pequeno tinha as botas rotas; era preciso comprar outras.
Á pobre mulher, tão meiga, tão linda como fora, hoje fanada pelo sofrimento, vergando ao peso da miseria, triste e abatida, tão nova aiuda e já envelhecida pela desgraça, nem podia levá-la a tomar um pouco de ar, porque nem quasi tinha já que vestir. Era atroz! era barbaro esse destino maldito que assim se obstinava em persegui-los!
Havia apenas cinco annos, não o podia esquecer. Parecia-lhe ainda estar a vê-la, essa querida Martha, ainda muito alegre, com a sua linda pelle muito branca, as frescas rosas nas faces, que disputavam a primazia da beleza ás rosas do seu gracioso chapeu, aquele chapeu muito garrido que lhe ficava tão bem! E o vestido? Como se lembrava ainda! Modesto, sim, mas muito airoso, de uma elegancia fina, do requintado esmero, colarinho de renda, todo aquele conjuncto encantador, que fazia o seu orgulho de marido feliz, nos dias em que sahiam juntos, muito risonhos, acariciando o futuro que se lhes apresentava alegre e prometedor.
Oh! que diferença de tempos! Apenas cinco annos se tinham passado, e como tudo estava mudado!
Então viviam êles, noivos ainda, n'uma casinha dos arredores, alegre como uma manhã de abril.
O sol acordava-os logo de manhãsinha, entrando-lhes pela janela dentro, e então Martha começava no arranjo do seu ninho perfumado, onde nunca faltavam as rosas viçosas a enfeitar o atelier d'êle. O seu belo atelier, que era mesmo um brinquinho!
N'esse tempo trabalhava com amor. Os seus quadros eram vendidos razoavelmente e a sua vida decorria serena e feliz.
Mas eis que a doença lhe entra em casa, e brutalmente o derruba. O trabalho cessou. As economias foram-se.
Larga foi depois a convalescença, e quando, emfim, a mocidade triumphava, cahia exausta a pobre Martha, moída de trabalho, das longas vigilias, das lagrimas que nas noites de angustiosa espectativa a tinham dilacerado.
Depois do nascimento do filho, a pobre flôr, vergada aos vendavaes do infortunio, ergueu-se, emfim, mas fraca e estiolada como uma pálida sombra do que fôra.
Começou então o grande calvario dos dois infelizes.
Assim foi que êle, acabrunhado pela desdita, vendo escassearem-lhe os compradores para os seus quadros, porque os não tratava e sahiam-lhe obras imperfeitas, começou a aborrecer o trabalho.
Aquellas obras abominaveis, feitas só com o pensamento nos magros tostões que lhe trariam, detestava-as.
Vendo-se desdenhado no seu trabalho, veio-lhe a revolta pela miseria que começava e um tedio invencivel pela unica forma que tinha de a debelar.
Fez-se preguiçoso e indolente. E, pouco a pouco, essa miseria que o enervava, invadia-lhe a casa, com todo o cortejo dos seus horrores.
Agora a caminho da casa de jogo, impelido pela mão fatal do desvarío, mas com a recordação saudosa d'esse passado tranquilo, e ancioso por um futuro que lh'o fizesse voltar, caminhava açodado pelo pavor do presente e fechava os olhos para não vêr o triste quadro da realidade. Mas debalde; porque à medida que se distanciava d'aquela casa, onde deixára a aflicção e o desanimo, dançavam-lhe no cerebro todas as cousas disformes que o enlouqueciam.
E lá ia perseguido pelo chapeu de rosas desbotadas, n'essa absorvente visão que o torturava....
Depois, os pequeninos pés do filho, que êle quereria envolver de beijos, a sahirem pelas botas rotas, via-os n'uma cruel obsessão, pousados sobre as rosas emmurchecidas, que tombavam desfolhadas...
Mas que frio que o fazia tiritar, agora, n'esse gelado mez de dezembro, e quasi o tornava corcovado, tão encolhido andava no misero abrigo do seu ridiculo casaquinho, já no fio!...
Ai, a sua pobre e miseravel vida!
E ainda havia de hesitar? Êle! que lhe era preciso afectar uma philosophia, que estava longe de ter, para afrontar serenamente, quando sahia á rua, os olhares odiosamente compassivos dos amigos que encontrava!...
Aqueles cinco mil reis iam transformar tudo n'essa noite memoravel. Não seria talvez n'um caudal de felicidades, mas, sem duvida alguma, n'um estado muito parecido com o conforto.
Era a primeira vez que ia jogar, e na primeira vez toda a gente ganha. E êle merecia-o bem, porque aquele dinheiro tinha-lhe custado... lagrimas até!...
Como o tinha arranjado?
N'esse dia levantou-se muito cedo, mais ralado e aflicto que nunca. A tosse da pobre Martha recrudescia; nem o deixára dormir. Vira-a vagueando pálida e oprimida n'aquela casa fria e desconfortavel, comprimindo o peito com as mãos transparentes, a querer impedir a tosse, que o despertava. Assaltou-o o remorso. Pois quê? êle, um homem válido, deixava assim covardemonte sossobrar-lhe o animo, esvalirem-se-lhe todas as energias, sumir-se-lhe a coragem nas sombras tenebrosas da miseria !...
Não! era preciso travar de novo a lucta com a sorte adversa e morrer, ou vencer.
Sahiu decidido a tudo tentar..
Levava o seu ultimo quadro; vendê-lo-hia para esse dia e depois iria oferecor-se para qualquer trabalho , fosse o que fosse; estava decidido a tudo tentar. Até mesmo a oferecer-se para pintar portas, o que ainda lhe revoltava o seu orgulho de artista, até lhe pôr calafrios de agonia... Mas não! era preciso esmagar esse reprehensivel orgulho, porque as duas ultimas cadeiras tinham sido vendidas e quasi um miseravel mendigo, como êle, não póde, nem deve ter orgulho...
Esse quadro! Como êle quereria conservá-lo! O pequenino quadro, que nunca tinha querido vender! Recordação adorada, recordação de encanto dos seus primeiros dias de noivado!
Lá tinha ainda entre as mãos a deliciosa paysagem, tirada d'um belo poente, trabalho que fôra interrompido, tantas vezes, pelos beijos da noiva, d'aquela querida Martha, tão graciosa o gentil, a verdadeira inspiradora do encantador quadrinho!
Quanta alma, quanto amor ali não tinha posto! Lá estavam as nuvens, num ceu de suavissimo azul, doiradas pelos beijos do sol que se despedia, completando o fundo de um ridente vergel, onde, quasi occulta pelas clematites, as glycinias e a madre-silva em flor, alvejava uma casinha rustica, um ninho de amôr e poesia...
Levou-o sem que a mulher visse, sem coragem de l'o dizer. Era preciso, não podia hesitar mais. E aquela reliquia, aquela doce recordação de tempos que não voltariam, vendeu-a... por cinco mil reis!...
As mãos tremiam-lhe ao pousar o seu precioso quadro no balcão do uzurario, e sahiu lançando-lhe um ultimo olhar, marejado das lagrimas da saudade, n'um adeus de felicidades extinctas...
Corria já para casa a levar a sua pequena fortuna, quando foi assaltado pela ideia de tentar a sorte com esse dinheiro.
Travou-se então uma lucta medonha, no seu espirito, entre o dever e a tentação... Venceu esta por fim.
Vagueou então ao acaso, para não ter de se demorar em casa. Chegaria á hora do jantar e sahiria em seguida.
Era preciso guardar bem o seu segredo, e êle duvidava da sua força de vontade perante a necessidade immediata de remediar aflicções de momento.
Tinha medo de se trahir, e depois quando arranjaria tal quantia? Seria atroz perder assim tal ocasião.
O que êle agora nem comprehendia, era como lhe tardára tanto essa ideia salvadora! Chegava a ser inacreditavel como só agora lhe surgisse aquela solução!
Emfim, tudo correu bem, agora estava livre. Mãos á obra e coragem!
Nunca tinha ido a uma casa de jogo.
Entrou sorridente. Cumprimentou muito amavelmente, não podendo comprehender o aspecto d'aquelas pessoas carrancudas que rodeavam a banca e nem repararam n'elle.
Que estranhas phisionomias! Feições contrahidas, olhar vago e amortecido n'uns, duro, agressivo e quasi ameaçador n'outros.
Muitos perdiam, é verdade, mas tambem alguns ganhavam, e comtudo, em todos, a expressão era estranha e repelente!
Dos banqueiros é que ele tinha uma certa pena, coitados! Recebiam a todos bem, e afinal ninguem lá ia sem a intenção de lhes levar o dinheiro d'êles. Até êle proprio, que assim pensava, o que ia lá fazer?
E contrariava-o um tanto a ideia de lhes ser desagradavel, aos bons homens, os unicos que o olharam risonhos.
Não, que entrar-lhes assim um sujeito pela porta dentro e d'ahi a pouco levar-lhes avultadas quantias, era graça!... Ora! que tolice! não fazia, nem mais nem menos, que os mais.
Agora preocupava-o a ideia de que êles, desconfiados da sorte que o acompanhiava, lhe não trocassem a nota.
Já ia ver. Tambem não valia a pena preocupar-se com isso. Se tal sucedesse, jogá-la-ia inteira.
— Faz favor, troca? em coroas. — disse êle muito atenciosamente.
Não houve objecção alguma. A nota foi prontamente trocada. Muito boas pessoas, não havia duvida.
— Apenas uma coroa no 36.
— Trinta e seis — grita o banqueiro.
Tinha ganho 18$000 réis.
Teve vontade de se ir embora e voltar na noite seguinte.
Já chegava para comprar as botas ao filho e substituir o chapeu da mulher... mas, e para o mais?...
— Mais dez tostões no 36.
Ganhou novamente.
Agora sim, tambem teria um belo sobretudo. Era tempo. Já não podia suportar tanto frio.
— Vá lá mais 5$000 réis no 36.
O numero tornou a repetir. Ganhou. Que deslumbramento!...
Êle bem sabia que havia de ganhar!
Porque motivo esse tremor nas mãos e aquele zumbido nos ouvidos? Era preciso moderar a sua alegria e aproveitar a sorte, que talvez não voltasse mais.
E apanhava o dinheiro, metia-o nos bolsos, apressado, febril, ancioso, antes que a bola cahisse sem êle ter posto, nos numeros de palpite, que eram agora quasi todos.
Os pontos sorriam-lhe, acenando com a cabeça, que muito bem! diziam até uns para os outros, que aquilo é que era saber jogar!... e varios outros comentarios que, fazendo-os em voz alta, o lisongeavam em extremo.
Ele agora, era um velho conhecido da casa, um amigo estimado, pois então? presentia-o.
Como é que chamavam a um tal paraizo uma casa de perdição?!
Ai que tôlo fôra em não ter lá ido ha mais tempo! Bem lhe importava com o mal dos banqueiros! Tambem êle já passara bem mans bocados e ninguem tivera dó d'êle!
Jogaria, jogaria sempre, até levar a banca á gloria!
Ah! até que emfim! N'uma só noite readquiriria o que, nem nos seus tempos de felicidade, nunca tivera.
E que tivera éle? Uma reles mediania, comesinhas ambições, que nem eram proprias de uma alma grande, como a sua.
Vegetava, que diabo! Agora sim, é que ia viver! Agora é que iria desforrar-se de toda essa vida de aborrecido trabalho, e voltaria todas as noites a jogar, e depois, ao recolher ao seu palacio porque havia de ter um palacio quando sahisse do seu automovel, porque teria automovel — atiraria fóra o charuto de cinco tostões, porque a mulher não podia suportar o fumo, e as notas cahiriam em montes aos pés da querida mulherzinha, que já não estaria doente mas sim mais linda e fresca do que outr'ora, porque o conforto e a opulencia haviam de operar esse milagre.
E emquanto estas ideias lhe esfuziavam na mente escandecida, jogava, jogava loucamente, pondo montes de dinheiro sobre os numeros, sem mesmo contar.
Agora perdia, mas que importava, tinha ali tanto, tanto!...
A sorte era d'êle. Havia de voltar.
Já agora tinha de recuperar o que havia perdido, não se iria embora sem levar o dinheiro todo..
Ah! bem via a sorte a fazer-lhe negaças! queria experimentar-lhe a coragem... E éle havia de desistir estupidamente, levar tão ponco, quando já tinha possuido tanto? Isso era o que os banqueiros queriam! Mas n'essa é que êle não cahia!
Já procurava nas algibeiras.
Arrepios percorriam-lhe as costas. Que significava aquilo? era impossivel que tivesse perdido assim!
Tê-lo-iam roubado? Ele bem tinha visto, quando a sorte estava no seu auge, que alguns vizinhos lhe iam escamoteando umas corôas, que êle generosamonte fingia não vêr, mas o que era isso? nada. No entanto, as moedas quo lho restavam, tinha-as todas na mão.
Pôz-se então a contá-las. 5$000 réis! O dinheiro que trouxera! Mas que horror! Tinha então perdido já imenso dinheiro!
Mas êle iria readquirir tudo, pois com igual quantia é que tinha ganho. Só queria 500$000 réis. Em os tendo, sahiria. Pertenciam-lhe de direito, já tivera mais.
Fôra ambicioso, era bem feito. Agora prometia, jurava até, que em tendo ametade d'aquela quantia, retirar-se-ia e não voltaria mais.
Renunciava aos sens sonhos ambiciosos. Só o necessario para poder procurar trabalho e instalar-se decentemente, como um artista que era.
Que demonio! Não era pedir muito. Com esse confortosinho, poderia esperar. O trabalho havia de aparecer e a felicidade tambem.
Oh! sim! devia tornar a ganhar. Pois não era tão justo e acentnava esta pergunta no seu pensamento, como que a convidar assim a sorte a dar lhe toda a razão.
D'ali em diante seria canteloso, só jogaria com moedas de 200 réis e em tres numeros apenas. A sorte in recompensá-lo da sua paciencia e da sua resignação.
Mas os cinco mil réis extinguiam-se e a sorte continuava a zombar d'êle. As mãos tremiam-lhe, soltava phrases de indignação por cada moeda de 200 réis que se submergia nas ondas de prata que a levavam.Os pontos olhavam-no trocistas.
— Pudera! — diziam êles — pois se êle não sabe jogar! que grande tumba! porque se não retirou a tempo? tudo quiz, tudo perdeu; é bem feito!
Mal distinguia já os olhares ironicos com que o fitavam e ouviu uma voz de mulher dizer:
— O' João! já reparaste que o candieiro está voltado?
Aquilo deveria ter qualquer significação oculta, porque um rapaz, que estava proximo, levantou-se muito enfadado, resmungando:
— Que azar de typo, safa!
Os que ha pouco lhe tinham surripiado algumas moedas, agarra vam agora, desconfiados, no dinheiro que tinham na frente e murmuravam:
— O seguro morreu de velho!
Pousou a mão distrahidamente nas costas da cadeira d'um sujeito, que estava assentado ao seu lado, e logo o outro se levantou furioso, exclamando:
— O' senhores, que calor! não póde uma pessoa respirar!
Passou para o outro lado. Uma rapariga, ria muito, com um riso franco e sonoro, o ao vê-lo ao pé, disse baixo para um rapaz que a acompanhava:
— Cá vem o esgronviado trazer-nos o azar! Ora! deixá-lo... se assim fôr, raspamo-nos.
Êle agora estava quasi encostado ao croupier, estendia o braço para colocar a moeda de 200 réis, quando o proprio croupier se volta enjoado para êle e lhe diz:
— O senhor está a incommodar-me! não me deixa trabalhar!...
Um cavalo no 12! Era d'êle. Até que emfim! Ia para retirar o dinheiro, mas uma enorme mão, de unhas sujas, dedos escuros e asperos como garras, pousou com força sobre a mão d'êle, cravando-lhe as unhas infectas nos dedos, emquanto uma voz pavorosa bradava:
— E' meu!
Atrapalhado, não tendo já a certeza se seria ou não d'êle, desculpava-se:
— Eu pensava...
Mas o terrivel ponto retorquin logo:
— Pensava o quê? o que é que você pensava?... O que você queria sei eu!...
E uma velha, defronte, levantando os oculos para a testa, sem receio algum de o melindrar, fitava-o com um olhar atrevido e dizia, abanaudo a cabeça:
— E' preciso muito cuidado com os larapios! Hoje em dia ha tanto modo de vida!...
Que vergonha! já lhe chamavam ladrão!
E foi preciso vir aquela baiuca infame, êle, um artista honrado, tendo quasi luctado com a fome, sem nunca lhe ter perpassado pelo espirito a ideia de roubar um pão, fora prociso ali vir, para desconfiarem da sua honra!
Maldita velha! Se pudesse, matava-a!...
Mas os ditos choviam em volta d'êle; arrastavam-se as cadeiras.
Os pontos olhavam-no enojados.
Sujeitos que perdiam, tomavam-no para bode expiatorio e diziam convencidos:
— Pudera não perder! Com tal vizinho... Olhou-me, prompto! Que azarento estafermo!
Meteu a mão no bolso, sentiu frio.
Só tinha tres moedas de 200 réis.
— Os meus cinco mil réis, meu Deus! Os cinco mil réis do meu quadro e nada mais. Depois juro, juro por Deus, juro pela minha honra que não voltarei mais a este inferno, e de ámanhã em diante, o meu trabalho me levantará. Tenho sido um criminoso, com esta miseravel fraqueza de espirito! O assassino de minha mulher, o indigno pae do meu filho!... Ainda que passe aqui a noite, jogando ás côres, tostão a tostão, hei de readquirir esses cinco mil réis que roubei aos meus. A sorte que me restitua esse dinheiro, as botas para a criança, o pão de ámanhã, e nada mais quero, nada mais! 200 réis no encarnado, é a cor da alegria, deve trazer-me fortuna!
— 20, preto, grita o banqueiro.
— Era no preto que eu devia ter jogado! pois se é a cor da tristeza, que me rala!...
— 30, encarnado!...
E aquelas duas côres cruzavam-se n'um galope vertiginoso. Era o vermelho do inferno, era o negrume fatal da desgraça que o empurravam brutalmente para o abysmo escancarado, onde se despenhavam todas as suas esperanças.
E n'aquele cahos que lhe entorpecia o cerebro, sentia as fontes latejautes e o suor frio da agonia perlando-lhe a fronte. Jogava a ultima moeda.
— Zero.
Foi se tudo, tudo. Era o desmoronamento de todos aqueles castelos architectados havia mais de 12 horas, de todo esse mundo de ambições, de esperanças, de soberba, no pelago das torturas e humilhações, que decerto lhe tinham tornado essas malditas horas as mais fatigantes e crucis de toda a sua vida.
Oh! maldito jogo! E as moedas dançavam-lhe diante dos olhos, n'uma dança macabra, tilintando gargalhadas sardonicas! E via bocas disformes a rirem, n'uns esgares diabolicos e medonhos, que o enlouqueciam! Uns pezinhos, roxos do frio, lhe apareciam a sumirem-se n'um sudario branco, que os ia envolvendo, emquanto a fronte pálida de una muIher, pendida sobre êles, tentava aquecê-los, com os seus labios resequidos pela febre, e a sua voz eufraquecida murmurava:
— Jayme, Jayme! porque não vendes o quadro? O nosso filho morre de fome!...
Formaram-se-lhe soluços na garganta, olhou em volta, tôrvo e desvairado, e agitando os braços, gritou enlouquecido:
— Ladra! ladra de sorte! quero o meu dinheiro, os meus 5$000 réis!
Luzes, como fogos fatuos, rodopiavam ante os seus olhos, alumiando todas aquelas caras pálidas de olhares coriscantes, que o perseguiam, com um cascalhar de risadas pavorosas, de mistura com soluços estrangulados... Braços esqueleticos estendiam-se, agarravam-no mãos descarnadas e os ossos dos dedos chocavam se apontando-lhe a sahida!...
Já na rua, sem saber como o tinham posto fóra, o ar refrescou-lhe a fronte esbraseada.
Agora tremia de frio.
Uma vozita de creança choramingava proximo:
— Cinco reisinhos, pelo amor de Deus! Tenho fome!...
Era um pequeno mendigo. Tinha fome! E o seu filho, têl-a-hia no dia seguinte... Mas então êle, o pae, o homem cheio de vida e mocidade, para que servia? Ouviu uma voz que lhe bradava:
— Trabalha, miseravel! mostra que não serves só para roubares o pão de teu filho, lançando-o, n'um momento de desvario, sobre a ignobil banca da roleta!... Trabalha! Sim, sim, trabalharia. Só poderia lavar essa mancha, que o deshonrava, morrendo a trabalhar! Morreria no seu posto, ou venceria.
E agora que lhe voltára a energia de outr'ora, agora que tão rudemente castigado fóra, pela sua repugnante fraqueza, como lhe seria facil trabalhar, se possuisse ao menos o necessario para uns dois dias, emquanto procurava o trabalho! Como se consideraria feliz com o dinheiro que lhe tinham dado pelo seu quadro, e que êle levara para aquele antro maldito!
Sahia um rancho da casa de jogo; uma rapariga ria e falava alegremente, dando o braço a um rapaz.
De repente, estacou.
— O' coitado! disse ela olha! é o maluco dos 5$000 reis! Éle a mim não me deu azar, mas sempre tem uma telha!
Cahiram 200 reis aos pés do pequeno. Jayme, por um movimento involuntario, olhou, e emquanto o pequeno os apanhava e desaparecia correndo, pensava:
— Se eu tivesse dois tostões!...
A rapariga olhava-o entre compadecida e trocista. Passou-lhe ao pé, e de repente, com uma grande gaiatice, exclamou, segurando-lhe no casaco:
— Este hoje não paga a ceia, com certeza. Só lhe ficou o cotão no bolso... pateta!...
Depois afastou-se a rir doidamente.
Batiam 2 horas da madrugada. O frio era intenso, ao longe soavam ainda as risadas da rapariga...
Começou então a caminhar ao acaso. Batia o queixo n'uma convulsão nervosa. O frio quasi lhe tolhia o passo.
Insensivelmente encaminhou-se para casa. Lá dentro a completa escuridão e a mulher aflicta, sem luz, velando ainda, tinha a certeza d'isso.
Como êle se sentia criminoso! Aquele dinheiro, miseravelmente perdido, como iria minorar tamanho infortunio!
— Covarde, covarde que eu sou! — rouquejava, com o coração a saltar-lhe do peito, confrangido pela miseria que o esperava.
Encaminhou-se, vacilante, para a porta. O luar fazia brilhar as pedras humidas da calçada.
Levantou os olhos ao Ceu, n'um ultimo apêlo à piedade divina, e, ao tirar o lenço para enxugar o rosto humedecido pela geada, cahiu-lhe do bolso um papelinho, dobrado. Surprehendido, apanhou-o.
Sonhava, ou era ludibrio de uma alncinação?
Uma nota de 5$000 reis!... Pasmado e trémulo, fitou aquela fortuna inesperada... Duas lagrimas soltaram-se lhe dos olhos, até ali resequidos, e deslisando suavemente pelas faces pálidas, iluminadas pela lua, foram cahir no abençoado papel...
Tinha comprehendido.
Uma esmola! — soluçava êle — a boa rapariga!...
Sim, a boa rapariga, que, escondendo o grande coração n'um pobre corpo perdido, fingira zombar d'êle, ao meter-lhe a nota na algibeira, para o não envergonhar com a esmola e... para que se não rissem d'ela!...
Subin os degrans a dois e dois, precipitando-se para o pobre quarto. Apenas uma nesga de luar alnmiava o leito onde estava, meio deitada, a pobre Martha, de olhos abertos, anciosa, esperando-o...
— Perdoa, minha filha, dizia-lhe êle, mostrando-lhe a nota, — hoje só isto... ámanhã, hei-de ter trabalho, amanhã...
Mas ela, interrompendo-o, com um sorriso de inefavel alivio, lançava-lhe os braços em volta do pescoço, exclamando alegremente:
— 5$000 reis! Que felicidade!...