O pae morreu tinha a pequena tres annos.
A mãe ficou pobre e desamparada de afectos, com um filho e uma filha.
Lia foi para a companhia de uma tia, que, não tendo filhos, adoptou a orphã, não sem ter feito um longo discurso, no dia do enterro do irmão, o pae de Lia, á numerosa assistencia, que a escutava compungida e enlevada na grandeza da sua alma filantropica e carinhosa e no seu procedimento generoso e desinteressado.
Em estilo oratorio, com lagrimas na voz, de tal modo fez valer a grandeza da sua acção que as visitas e os parentes viam-na sob o aspecto de uma santa, tomando sobre si o colossal encargo de proteger uma sobrinha, a filha orphã e pobre de seu irmão.
A pequenita partiu alguns dias depois com a tia, na inconsciencia dos seus tres annos, mas sentindo já, naquela tristeza enorme que a envolvia, as lagrimas mas da pobre mãe, numa amargura indelevel que jamais a abandonaria.
Cresceu a criança numa infancia triste e opressiva, sob a indiferença egoista da tia, que mais se agravava quando a essa indiferença sucediam os ataques de irritabilidade que, por vezes, afectavam a senhora D. Purificação, tornando a pobre pequena uma martir inocente das violencias de caracter da austera senhora.
Acostumou-se Lia a viver sem carinhos nem afectos, a julgar-se diferente das outras crianças e sem direito, portanto, a queixar-se.
De mais, de que lhe serviria queixar-se, se ainda por cima lhe batiam?
De que lhe serviria desejar um brinquedo, se lh'o não davam?
Para que serviria, emfim, chorar, se isso só daria causa a maiores irritações e humilhantes ameaças?
Pouco a pouco tornou-se sêca e esquiva, a ponto de chegar a esconder se quando apareciam visitas, principalmente quando eram pessoas pouco íntimas da casa e de quem já esperava as curiosas perguntas do costume, que a fatigavam:
— A mamã?
— A mamã está muito longe, — respondia a pequena, sêcamente, compreendendo que tomavam a tia por sua mãe.
— Ah, sim? e o papá?
— Esse morreu.
— Mas, então, a senhora D. Purificação não é sua mamã?
— É minha tia.
Mudança de aspecto e de atenção das interlocutoras, que passavam logo de carinhosas a indiferentes.
A pequena afastava-se. Chegava a tia: grande efusão de cumprimentos, e em seguida:
— Já falei com a sua sobrinha: é uma criança tristonha e de poucas palavras.
— Não se admirem, minhas amigas, porque para mim é a mesma cousa.
— Pobre senhora! não tem filhos mas tem cadilhos, o que é muito peior.
A serafica tia erguia os olhos, num gesto maguado, e começava a enumerar as ingratidões da sobrinha.
Era então nm estendal enorme d'elas, entre as quaes, a que mais avultava, era a da pequena chamar sempre pela mãe, quando tinha qualquer aflicção.
— Como se eu não fosse a verdadeira mãe! — rematava, toda ofendida.
Realmente era triste, apoiavam as visitas, indignadas. Que ingrata!
E a pequena criminosa, ali, a nm canto, silenciosa, sentia trespassarem-na, como se fossem setas, os olhares, entre desdenhosos e severos, de todas aquelas boas criaturas.
Ah! estava tão farta d'isto! E, ao afastar-se, ainda ouvia esta frase de amarga consolação:
— E lembrar-se a gente que vae procurar trabalhos por suas mãos!
— É verdade, minhas senhoras; sempre são cadilhos, não são filhos.
E o concerto dos suspiros desolados perdia-se ao longe.
Cadilho! Como esta palavra a feria, como ela se lhe tornou obsessionaria, à força de ouvi-la, a pobre criança! E por mais que fugisse para o fundo da casa ou para o alto do terraço, para a não ouvir, soava-lhe sempre na alma, perseguia-a em toda a parte, adivinhava-a, escutava-a incessantemente, ofendendo-a, magoando-a, fazendo-a sofrer até às lagrimas.
Cadilho! Designação fria, desdenhosa e cortante que lhe retinia no cerebro como uma maldição!
Nas terras de provincia qualquer ninharia alimenta o soalheiro: e a criança, sentindo-se tão numerosas vezes discutida, já quasi instinctivamente compreendia essa hostilidade invejosa que a perseguia.
O resto da familia era unanime na opinião de que Lia devia ser muito feliz. Não era mesmo raro ouvir-se-lhe comentar a boa sorte d'ela. Que não lhe faltava nada; que a tia ainda era capaz de lhe deixar tudo, com prejuizo dos outros parentes; que, finalmente, aquilo é que tinha sido uma sorte.
Quasi sempre as invejas recáem sobre as cousas menos invejaveis.
Ao lado, casas pegadas, vivia um irmão de D. Purificação. Era casado e tinha dois filhos — José e Santa.
Esta, comquanto boa, era piegas e voluntariosa, por muito mimada dos paes.
O rapaz, um pouco infezado e doente, era naturalmente desastrado, caia repetidas vezes, e, chorando destemperadamente, fazia responsavel das suas infelicidades a irmã e principalmente a prima, a pequena Lia.
Com o rosto lambusado pelas fatias de pão com manteiga e assucar, que andava sempre a comer, a fraldita da camisa quasi sempre a sahir-lhe para fóra dos calções, choramingando continuamente, tornava-se um companheiro terrivel: e era por este motivo que as duas pequenas o excluiam, com enfado, das suas brincadeiras. De modo que Lia, estimava mediocremente o primo, emquanto que adorava a prima.
Quando se juntavam as duas, sentia-se bafejada por um lampejo de alegria, que lhe trazia a companhia da prima, a iluminar as sombras da sua triste infancia.
Em meio da indiferença e da hostilidade que a rodeavam, aceitava o afecto pueril de Santa, como um conforto para o seu coração de criança, fechado, pela força, a todas as expansões proprias da sua edade.
A mãe de Santa era uma adoravel e boa criatura, esposa e mãe amantissima, que atraía a arisca pequena, com o seu olhar meigo e aveludado em que muitas vezes a envolvia.
Esses olhos, que tanto acariciavam a pobre Lia, quantas vezes ella os viu chorar tambem!... Ah! que se fosse com esta que Lia vivesse !...
Quantas vezes esse desejo a assaltou, quando o primo fazia as suas queixas, e aquela mulher, tão meiga, em vez da repreensão que Lia temia, com os mesmos labios com que beijava o filho, sorria para a prima, de quem ele se queixava!
Mas não, a pobre Lia não era com ela que vivia, mas sim com a outra, que não sabia o que era ser mãe.
Acontecia ás vezes, nas brincadeiras das duas primas, Lia sentir-se maguada e ofendida; e então, revoltado o seu orgulho, por nunca lhe reconhecerem direitos, queria logo retirar-se.
A outra, porém, que não queria pedir, mas desejava que a prima ficasse, compreendendo que só levando-a pelo sentimento o conseguiria, chamava o irmão e dizia-lhe:
— O' José! pede-lhe que fique, mas chora!
Então o rapaz, que parecia trazer sempre as lagrimas preparadas, puxava a fraldinha da camisa, e, esfregando com ela os olhos, rompia nam berreiro medonho, gritando entre soluços:
— Não te vás embora, senão eu não me calo!...
Lia, entre risonha e commovida, ficava.
No entanto, eram estas as suas horas mais alegres.
A mãe de Lia só a grandes intervalos ia vêr a filha, porque a viagem era fatigante e dispendiosa, de modo que a pequena poncas vezes tinha essa consolação, que era para ela como o sol que lhe entrava na alma e toda uma aurora de inefavel doçura, mas tão pouco duradoura, ai d'ela! que lhe deixava sempre a saudade de um sonho bom e logo extinto.
Rapidos dias passava a mão a seu lado, porque a tia lh'os sabia abreviar com as asperezas do seu genio e as humilhações que, por vezes, infligia à cunhada.
Só nessas ocasiões é que a pequena tinha alguns brinquedos, que a extasiavam e, por vezes, alguma modesta joia que a mãe lhe trazia.
Uma vez, trouxe-lhe uma pulseira de contas de coral, d'onde pendiam uma cruz, uma ancora e um coração em oiro, representando a Fé, a Esperança e a Caridade.
Para a pequena, foi como se Deus lhe enviasse do ceu um bracelete de estrelas. Trazia-a só nos dias festivos, e aquela modesta joia era tão graciosa e delicada, que toda a gente a elogiava quando a viam no seu alvo bracinho.
Quauto orgulho não sentia a pobre pequena nessa ocasião, por não estar habituada a elogios!
Depois, ao tirar a sua joia, beijava-lhe os emblemas das tres virtudes, na visão radiante de que beijava as mãos de quem lh'a tinha ofertado.
Um dia foi a tia chamada a casa do irmão. A pequena Santa estava doente, não queria tomar um remedio e era preciso que a tia oradora lá a fosse convencer com a sua eloquencia.
Lia viu sahir a tia, com um aperto de coração inexplicavel. Pouco depois via a voltar.
— Lia, disse-lhe esta dá-me a tua pulseira para a levar á prima. A pobre Santa teima em não tomar o remedio e declara que só levando-lhe a tua pulseira o tomará...
— A minha pulseira?! — exclamou a pequena com as lagrimas a saltarem-lhe dos olhos: e a minha mamã o que dirá?...
A tia caminhou para ela com o fogo da indignação no olhar, e disse-lhe severamente:
— Que tu eras uma ingrata, já eu o sabia; mas tão má e avarenta, nunca o pensei. A tua prima sofre, apetece-lhe essa rèles pulseira, que nada vale, e tu não lh'a queres dar! Estupida criatura! A tua mãe!... Já me admirava! Olha, pede-lhe que te sustente, que não faria mais do que a sua obrigação.
Lia chorava em silencio e não se mexia.
A tia então, vendo que a pequena não cedia, retorquiu:
— Mas para que consulto eu esta criança? Que paciencia!...
Foi à gaveta d'uma commoda onde estava a pulseira e tirou-a. Depois, quando ia a sahir, voltou-se para a sobrinha e, por um resto de consciencia, disse:
— Escusas de chorar. Isto é só por agora, porque a Santa, depois, tornará a dar-t'a. Para que quereria ela isto, com lindas joias como tem? E apenas um capricho de doente.
Lia, seguindo-a com o olhar marejado de lagrimas, viu-a afastar-se com o seu pequenino tesouro.
Chorou, chorou muito, e, nessa noite, sonhou que uma visão caminhava para ela envolta num manto branco. Era, decerto, Nossa Senhora, mas com as feições da mãe. Sorria-lhe suavemente, e, na doçura das suas tépidas caricias, com beijos enternecedores enxugava-lhe o pranto.
Viu então as contas da pulseira transformarem-se em serpentes, que queriam enroscar-se-lhe nos braços, com grandes lingnas de fogo que a queimavam; e ela, apavorada, afastando-as de si com uma enorme repugnancia, aconchegava-se da mãe, que, resguar- dando-a com o seu manto constelado de estrelas, lhe dizia docemente:
— Não chores mais, minha filha, vé que perdes as perolas dos teus olhos, que valem mais que as contas da pulseira! Esta foi minorar um sofrimento. Se não voltar mais, que importa? Talvez que, assim, sejas mais feliz!...
Mas não, Lia não foi feliz, e comtudo a pulseira não voltou mais.
Passados tempos teve a mãe que se afastar para mais longe.
Tendo de partir para a capital por causa da educação do filho, foi despedir-se da filha. Tinha então a pequena sete annos, e a mãe, para evitar despedidas lancinantes, um dia de madrugada, partiu, deixando-a ainda adormecida.
Ao beijá-la, sufocando os soluços para a não acordar, poz-lhe ao pescoço, muito suavemente, um fio de perolas, d'onde pendia uma cruz.
Aquelas perolas ficavam, no pescoço da pequena Lia, como um fio de beijos a recordar as saudades que a mãe levava no coração.
A pequenita, ao despertar, dando pela falta da mãe, e compreendendo que ela tinha partido, vestiu á pressa o seu roupãosinho branco, subiu ao terraço, d'onde se avistava o mar, e ali se conservou por muito tempo, acenando com o lenço molhado de lagrimas, para um navio que se afastava, até que, muito ao longe, se perdeu nas brumas de um horizonte infinito...
Pobre Lia! talvez que visse já nesse insondavel horizonte como que a visão do seu futuro, vago, brumoso e indeciso, oscilando entre o abismo e o ceu!...
Pouco tempo depois, a tia de Lia vinha para Lisboa, trazendo a sobrinha comsigo.
O resto da infancia, passado na capital, foi verdadeiramente asfixiante. Sentindo já as revoltas da mocidade oprimida e a injustiça da solidão que a rodeava, em meio de toda essa gente indiferente, calcava assim, dia a dia, no fundo do seu coração, os meigos transportes de uma alma boa, que só precisava, para se expandir, dos afectos e alegrias proprias da mocidade.
Começou então a rapariguinha a emagrecer e a definhar-se como uma flor que se estiola ao frio do desamparo.
A mãe mal podia acariciá-la, e como a cunhada a detestava, raras vezes podia ir vê-la, e nessas mesmas, apressadamente e cheia de cuidados.
Depois, preocupada com a educação do filho e com as dificuldades da sua vida, nas fugitivas e poucas horas em que via a filha, não atentava muito na rapida transformação physica que se operava na pobre rapariga.
Um dia que Lia viu a mãe mais palida e abatida que de costume, compreendendo a situação dificil em que esta se achava, tirou as perolas do pescoço, e ficando unicamente com a cruz que prendeu numa fita, pediu insistentemente à mãe que as aceitasse, toda aflita perante as recusas d'esta.
Por fim, a pobre mãe levou-as. Que havia de fazer, se tinha de dar de comer ao outro filho?
A este tempo, Lia, que foi sempre um tanto orgulhosa, preocupava-se muito com a ideia de se não tornar pesada, e então trabalhava imenso, ás vezes até de madrugada, adormecendo exansta e extenuada, levantando-se poucas horas depois, mais fraca e abatida.
O producto do seu trabalho, roupas, bordados, rendas, que fazia para as lojas, entregava-o á tia.
Mas, nem mesmo cansada de trabalhar, a pobre rapariga conseguia o afecto da D. Purificação. Era quasi aversão o que esta ultimamente parecia dedicar à sobrinha.
Talvez os elogios, que a beleza da pequena provocava a tornassem irritavel e nervosa, naquela edade em que muitas mulheres, e principalmente as que nunca foram mães, não perdoam á mocidade os seus encantos naturaes.
Lia nem pensava que a sua beleza pudesse ser a principal causa d'este tormento, que a mortificava; e apezar de tudo, estimava a tia.
Aos quinze annos, e cada vez mais enfraquecida, não poude um dia levantar-se. Ardia em febre.
A tia, com uma certa angustia, talvez de remorso, olhava a espantada, por vêr, assim, cahir doente essa criaturinha, que ela nunca pensou que pudesse adoecer!
A febre augmentava.
Chamou-se, então, a mãe.
A criança levava as mãos ao peito, e chegando a pequenina cruz de oiro aos labios, beijava-a.
Tinha então um sorriso enlevado, vendo no olhar da tia uns vislumbres de ternura que não lhe conhecêra nunca.
Quando a mãe entrou no quarto, chorando, volveu para ela os seus olhos tristes, enviando-lhe nesse olhar todo o imenso afecto da sua alma.
Depois, escutava comovida as frases um pouco sentenciosas, mas compadecidas, que a tia dirigia á cunhada. Como não havia de ser assim, se era a primeira vez que lh'as ouvia!
As horas caminhavam vagarosamente e a febre recrudescia.
A morte aproximava-se, estendendo a sua negra aza sobre o pobre corpo que em breve levaria...
Rompia a madrugada. No quarto só se ouvia a respiração opressa da enferma e os soluços mal contidos da alanceada mãe.
Um clarão azulado envolvia o leito branco e virginal.
Evolavam-se fragrancias de jasmins, que entravam pela janela mal cerrada do gabinete proximo, e os passaros chilreava alegres, lá fóra...
Ela, agora, olhava a mãe fixamente, segurando- lhe a mão entre as suas mãosinhas emagrecidas e transparentes.
— Olha, murmurava ela, ahi vem o sol. Eu gosto tanto d'êle!...
E envolvia-a no seu olhar doce e já embaciado pela morte.
— Não chores, mamã, — continuava — Beija-me... mamã...
Um tremor de palpebras, nma lagrima deslisando nas faces emagrocidas, e assim se extinguiu a pobre Lia.
A alma luminosa e pura elevou-se nas suas azas brancas, ao primeiro raio de sol d'essa madrugada fragrante, o lá foi para as regiões do misterio, onde encontrou o seu colar de perolas nas lagrimas compadecidas da Virgem, que a aguardava.
Quando o pequeno caixão sahiu a porta, a mãe, de olhar desvairado, cahiu desmaiada nos braços da cunhada, que exclamava, perturbada e confusa: — Mas é preciso ter coragem! Cá estou eu, que a estimava mais, porque a criei, e conformo-me com a vontade de Deus!...
Estimava a mais!... Coitada! Como se ela pudesse comprehender todo o amor que encerra o coração das mães!
A perda de uma filha! Poderia ela nunca compreender essa dôr, ela, que apenas tinha perdido... um cadilho?!...
Dias depois, lá estava ajoelhada ua sepultura de Lia a figura tragica e lancinante da pobre mãe.
E ali, envolta no seu triste vestido negro, mais pálida que uma noite de luar, soluçava abraçada á cruz, que, marcando a sepultura da filha, tinha sido, comtudo, a unica e fiel companheira da desventurada Lia.