A Dança do Destino/O Charuto

O charuto
O charuto
 

 

Era um mendigo e tinha esta alcunha.

Só por ela era tratado e não havia garoto que o não conhecesse.

Era um decano da mendicidade de Lisboa. Vivia só: não tinha familia, nem tinha casa.

Os dias passava-os percorrendo a cidade a estender a mão á caridade publica; à noite recolhia-se numa cova aberta, num campo dos arrabaldes.

Não tinha outra habitação, e o leito da cova era a sua unica e misera cama.

Por docel, o ceu cravejado de estrelas ou chorando fios de chuva.

Nas noites calmosas do estio, suava ao bafo febril da terra esbrazeada do sol; nas álgidas noites do inverno, tiritava sob o gabão desfiado, soltando gemidos convulsos, que se cruzavam com os latidos dos cães uivando de fome e frio.

Uma noite, nas ultimas invernias, a cova abateu, a vala era profunda, encheu-a num relampago a formidavel enxurrada, e una onda de lama asfixiou-o, matando-o, antes que êle tivesse tempo de acordar.

Foi melhor assim; não deu pelo sen fim e não havia que incomodar ninguem com o seu enterro, porque já estava sepultado.

Mas com isto é que se não conformou a policia, porque exhumou o cadaver e levou-o para o necroterio para ser autopsiado.

Não era só morrer assim, comodamente, sem dar satisfações à autoridade e som o respectivo bilhete de enterramento: agora havia de ser aberto, retalhado e examinado, para se vêr o que tinha dentro.

Em vida ninguem se importou saber d'êle, quando o desgraçado tinha frio e fome; agora tudo eram disvelos e cuidados!

Isto veio nos jornaes, foi ha pouco tempo: não viram a noticia?

Eu li-a. Li e chorei. Porque o tivesse conhecido? Nunca o vi, nem jamais ouvira antes falar d'êle.

Mas comoveu-me extraordinariamente! como sempre me comovem estes trechos de tragedias ignoradas.

Magoou a minha sentimentalidade esta existencia humana, esfarrapada pela fatalidade, tratada a pontapés pelo destino, essa engrenagem terrivel do turbilhão universal, especie de Titan, d'uma estatura brutal e pavorosa, terrivelmente misteriosa e incognita, vivendo na obscuridade infinita, sombrio e brilhante ao mesmo tempo, capaz de fazer nascer perolas em esterquilinios e transformar anjos em monstros.

E vizionei o horrivel viver d'essa creatura, as caminhadas de um dia inteiro, para alcançar um pedaço de pão, as fadigas e desalentos afogados numa cama de lama, vento dos infortunios a revolver-lhe coleras na alma, o corpo ardendo em febre, o desespero queimando-lhe o coração e o pensamento, para recomeçar no dia seguinte, continuar todo o mez, todo o ano, durante a vida inteira!... E sempre a mesma agonia confusa e dilacerante, sósinho no mundo, — atomo perdido na imensidade, miseria levada numa onda, farrapo despresivel, desfiado pelas procelas — o fato em frangalhos, os cabelos em revolta, nos olhos a vizão da morte, na boca, de labios lividos, o riso amargo da desgraça.

O que é uma vida assim? Uma nausea da creação, um borrão no infinito, a boca do misterio abrindo-se em abismos, o universo curvando-se numa noite eterna!...

Mas porque era isto, assim, para elle?

Porque é que a sua vida havia de desenvolver-se em circulos escuros, tenebrosos, infernaes, e a dos outros, de tantos para quem a vida é uma festa permanente, havia de decorrer em circulos de luz e jardins de rosas, regalos do corpo e gosos da alma, todos os prazeres que o mundo tem, todas as aspirações e afagos que inebriam?

Porque esta odiosa distinção, esta desegualdade monstruosa? Não era um homem como os outros? Porque não tinha, então, um logar na vida como êles?

Pela mesma razão, meu pobre revoltado, porque nasceste homem e não mulher, porque o teu cabelo é preto e não é loiro, porque não és absolutamente egual a nenhum outro homem, porque teu pae não foi Camões, tua mãe a Todi, teu irmão o Saldanha, nem tu o presidente da republica, nem tua irmã a imperatriz das Indias.

Não, pobre Charuto! isto foi sempre assim e assim ha-de ser sempre.

É a proporção, a lei, a ordem, a harmonia.

Olha o mar: Apesar da sua enorme força, não póde nunca entrar terra dentro, além de certos limites, e esta não poderia jamais converter-se em oceano, senão passando os mares a serem continentes.

A pouca distancia do Capitolio — a visão do explendor e da gloria — está a Rocha Tarpeia — a visão do abismo e da desgraça.

São raros os que sobem ao primeiro, que é o beijo da fortuna, e são inúmeros os que sobem à segunda, que é o abraço da morte: mas a grande maioria nunca passou do vale, nunca experimentou a comoção da subida, a vertigem das alturas, o deslumbramento das culminancias, ou a pavorosa sensação da queda.

Como querias que fosse d'outra maneira? Que se arrumassem todos no monte sagrado? Não caberiam lá, o despenhar-se-iam uns aos outros. Que partilhassem egualmente a rocha fronteira? O vale converter-se-ia num cemiterio.

Que ninguem sahisse do vale? Ah, meu amigo! que banalidade que seria a vida, que insipido seria o mundo!

Querias a egualdade? Como? se em ti proprio começa a diferenciação em relação aos teus semelhantes!

A egualdade!... Onde existe ela?

A unidade sim, mas esta resulta precisamente da desegualdade, do contraste, do choque.

A sombra vive ao pé da luz, o dia é o visinho da noite, o sol resplandece sobre os cemiterios onde milhares de corpos jazem em eternas trevas...

Depois de Austerlitz, topa-se com Waterloo, e depois de Waterloo está Santa Helena.

A mesma machina que nos levanta acima das nuvens, egualando-nos aos anjos, nos precipita no pélago ou no fundo dos abismos.

E acima das nuvens estão os astros, uns cheios de fogo e de luz, brilhando como reis do espaço, dominaudo como senhores dos outros astros; outros opacos, recebendo d'aqueles a luz e o calor, vivendo eternamente na sua dependencia, escravisados na órbita dominadora da sua influencia e da sua grandeza, — miseros Giliats do ar, empolgados pelos poderosos tentaculos da enorme pieurre do infinito, que se chama atracção universal.

Cá em baixo, ha éntes que nasceram para não verem nunca a luz, muitos para serem a preza e o alimento dos outros individuos da creação.

A desegualdade está em tudo é a fatalidade da ordem, a condição do equilibrio. Porque havia de ser assim?

Segredo terrível! Problema eterno!

É assim, porque é assim. É segredo do pensamento infinito, da inteligencia creadora.

Os factos são os factos: mas por ventura haveria menos injustiça se fosse o cordeiro que comesse o lobo, em vez de ser o lobo que coma o cordeiro?

A tua razão e o teu sentimento ficavam mais satisfeitos, se, em vez da aguia, fosse a toupeira que voásse e afrontasse o sol?

A desegualdade desaparecia se tu é que fosses o rei do petroleo e Rockfeller passasse a ser o misero Charuto?

Bem vês...

Mas é claro que o pobre mendigo, o grande desgraçado, sem pão e sem luz, não raciocinava assim, nem cogitava de explicações, sentindo as garras lancinantes da fome a torturarem-lhe a existencia, o frio da cóva e a dureza da cama a traspassarem-no e a moerem-lhe os ossos, e vendo o céo por cima d'ele, sorrindo na felicidade do azul e das estrelas, impassivel perante a sua desventura e surdo às suas queixas e soluços.

Ele não sentiria senão uma desegualdade iniqua, uma injustiça clamante, uma odiosa tirania social, afrontando, torturando, esmagando; e, numa revolta imensa, num odio tremendo, num gesto brutal, eu vejo esse mendigo, esse desprezado, esse ninguem social, levantar-se uma noite, da sua cóva escura e, num arremesso pavoroso, erguor o braço para incendiar, destruir, arrazar, reduzir a um montão de escombros e de cinzas uma cidade inteira, os palacios dos grandes, as habitações dos burguezes, os tugurios dos pobres, fazendo chorar e sofrer como êle todos os que tinham um lar, um abrigo, uma enxerga, uma familia, ou um bocado de pão.

Mas antes de chegar o fogo à mina, o braço cahiu-lhe desfalecido, pendeu-lhe a cabeça sobre o peito, e um fundo suspiro, terminando num soluço, foi o ultimo arranco da tempestade d'aquelle cerebro de razão perdida.

Porque se imobilisou na resignação aquele engeitado da sorto, aquele perseguido do destino, prezo de todos os desesperos compreensiveis, endurecido pelo sofrimento, com a alma abatida e obsecada por todas as coleras?

Que estranha força lhe deteve o passo, que mão de ferro lhe suspendeu o braço vingativo, que misterioso entrave lhe aniquilou a resolução dementada e tremenda?

Um simples aviso, partindo não sabia d'onde, uma voz oculta que lhe chamava — louco! — a voz formidavel da consciencia que lhe gritava: — pára!

E êle deteve-se e parou e obedeceu, o desgraçado, o louco, o desespero feito homem, a vingança incarnada numa vontade resoluta, servida por braços de ferro e pernas d'aço.

Essa creatura sem inteligencia e sem instrução, sem principios nem ideais, encontrou em si mesmo a força precisa para se dominar, para vencer o seu odio e a sua colera, para neutralisar uma vingança medonha, calamitosa, tremenda. D'onde lhe veio essa força?

Quem lh'a inoculou na alma, a êle, que não teve escola, que não teve mestres, que não sabia ler nos livros, que nunca privou com sabios nem letrados, que nunca conviveu com gente instruida e educada?

Ah! é que esse homem, esse grande infeliz, teve uma mãe, uma mulher rude e simples, ingenua e ignorante, que na sua infancia, acalentando-o nos braços ou entretendo-o no colo, lhe dizia e lhe explicava, mostrando-lhe o azul do ceu e o brilho das estrelas, que, para além d'esse ceu e d'essas estrelas, havia um misterio terrivel e augusto que não era dado a ninguem transpôr nem devassar, e onde a existencia dos homens se refundia e completava, depois da morte da materia, numa existencia, eterna e bemaventurada para os bons e os humildes, os que na terra sofrem e são desgraçados, ou semeiam de boas obras o caminho.

Por outros caminhos da alma e da linguagem se gerou e gravou no seu espirito e na sua consciencia a compreensão do inevitavel e do infinito, o sentimento da imortalidade da alma e a vizão consoladora d'uma justiça absoluta. E foi esse sentimento e essa lembrança que prevaleceram sobre a sua paixão e o seu odio, iluminando-o com a luz divina das recordações d'um coração de mãe, nessa hora tenebrosa de desvario do seu espirito turbado pela desgraça.

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Mas a que vem tudo isto?

Que idea foi esta de trazer para a luz da publicidade o Charuto, um mendigo, um pária, um zéro social, cuja vida não preocupou ninguem e cuja morte ninguem sentiu?

Para duas cousas apenas:

A primeira, para perguntar aos senhores livres pensadores, áquelles que, por fortuna, não são susceptiveis de pensar em mais cousa alguma, por que se obstinam em destrnir na alma do povo ingenuo e simples, em arrancar das almas ignorantes ou desgraçadas, essa crença que receberam, na infancia, dos labios d'uma mãe, e que é uma força e uma salvação, uma força contra si mesmos, um dique aos impulsos animaes, e um balsamo, uma esperança, para as suas dores, para os seus desesperos, contra os quaes o atheismo é impotente, tão inerte e vasio de consolações é o seu negativismo!...

O vacuo a querer substituir-se à fé das almas, o nada a querer substituir a idea do Infinito!

 

A segunda é para pedir ao Estado, ao Governo ou á entidade a quem competir, que mande construir nalguns pontos da capital, — nesta cidade de marmore e de granito, onde ha desgraçados que dormem entre pilhas de madeira, ao longo do Aterro, nos bancos das praças e das avenidas, na cantaria dos portaes ou nos degraus das igrejas, à chuva e ao vento, abandonados a todas as intemperies, — uns albergues publicos, à semelhança dos que existem em Lourdes, para abrigo de peregrinos. Vastas casas de tétos altos, bem ventiladas, d'um só pavimento, providas de bancos largos e polidos, onde ossos engeitados da vida, que são nossos irmãos, vão encontrar um pouco de repouso para os seus magoados corpos, ao abrigo das inclemencias do tempo, e não vivam completamente abandonados como os cães sem dono e como o triste personagem que inspirou esta narrativa.

Pobre Charuto! Tu que sofreste todas as privações, que nunca pudeste reunir uns vintens para pagar uma cama onde descansassem um pouco mais confortadamente os teus membros doridos pelas fadigas da fome e do esmolar do dia, e cujo esqueleto ainda, decerto, foi render uns doze mil reis ao Pre- feito da Escola Medica, que tem o macabro privilegio de desnudar os ossos dos mortos abandonados, para os vender aos estudantes de medicina, como tu te sentirias satisfeito no outro mundo e compensado do que sofreste neste, se o Estado, ouvindo o meu apelo, cuidasse de remediar a sorte dos teus irmãos de infortunio, proporcionando-lhes o abrigo que não tiveste e cuja falta te motivou a morte!