A Divina Comédia (Xavier Pinheiro)/grafia atualizada/Inferno/V
No ingresso do segundo circulo está Minos, que julga as almas e designa-lhes a pena. No repleno desse círculo estão os luxuriosos, que são continuamente arrebatados e atormentados por um horrível turbilhão. Aqui Dante encontra Francesca de Rimini, que lhe narra a história do seu amor infeliz.
Desci desta arte ao círculo segundo,
Que o espaço menos largo compreendia,
Onde o pungir da dor é mais profundo.
Lá stava Minos e feroz rangia:[1]
Examinava as culpas desde a entrada,
Dava a sentença como ilhais cingia.
Ante ele quando uma alma desditada
Vem, seus crimes confessa-lhe em chegando,
Com perícia em pecados consumada.
Lugar no inferno, Minos, lhe adaptando,
Do abismo o círc’lo arbitra, a que pertença,
Pelas voltas da cauda graduando.
Sempre muitas se lhe acham na presença;
Cada qual tem sua vez de ser julgada,
Diz, ouve, cai, se some sem detença.
Minos, logo me vendo, iroso brada,
Do grave ofício no ato sobrestando:
— “Ó tu, que vens das dores à morada;
“Olha como entras e em quem stás fiando:
Não te engane do entrar tanta largueza!”
— “Por que falar” — meu guia diz — “gritando?”
“Vedar não tentes a fatal empresa:
Assim se quer lá onde o que se ordena
Se cumpre. Assaz te seja esta certeza!”
Eis já começo da infernal geena
A ouvir os lamentos: sou chegado
Onde intenso carpir me aviva a pena.
Em lugar de luz mudo tenho entrado:
Rugia, como faz mar combatido
Dos ventos, pelo ímpeto encontrado.
Da tormenta o furor, nunca abatido,
Perpetuamente as almas torce, agita,
Molesta, em seus embates recrescido.
Quando à borda do abismo as precipita,
Ais, soluços, lamentos vão rompendo.
Blasfema a Deus a multidão maldita.
Ouvi que estão no padecer horrendo
Os que aos vícios da carne se entregavam,
Razão aos apetites submetendo.
Quais estorninhos, que a voar se travam
Em densos bandos na estação já fria,
Em rodopio as almas volteavam,
Ao capricho do vento, que as trazia.
De pausa não, de menos dor a esp’rança
Conforto lhes não dá nessa agonia.
Como nos ares longa série avança
De grous, que vão cantado o seu grasnido,
Assim no gemer seu, que não descansa,
Traz o tufão as sombras desabrido.
— “Mestre” — disse eu — “quais almas são aquelas
Que o vendaval fustiga denegrido?”
— “A primeira” — tornou Virgílio — “entre elas
De quem notícias ter desejarias,
Regeu nações, diversas nas loquelas.
“De luxúria fez tantas demasias
Que em lei dispôs ser lícito e agradável
Para desculpa às torpes fantasias.
“Semíramis chamou-se: o trono estável[2]
Herdou de Nino e foi a sua esposa.
Do Soldão teve a terra memorável.
“A morte deu-se a outra, de amorosa,[3]
Às cinzas de Siqueu traidora e infida;
Cleópatra após vem luxuriosa”.[4]
Helena vi, a causa fementida[5]
De tanto mal, e Aquiles celebrado
Que teve por amor a extrema lida.
Páris, Tristão e um bando assinalado[6]
De sombras me indicou, nomes dizendo,
Que à sepultura amor tinha arrojado.
A compaixão me estava confrangendo,
Dessas damas e antigos cavaleiros
Nomes ouvindo e mágoas conhecendo.
Então disse eu: — “Poeta, aos companheiros[7]
Dois, que ali vêm, falar muito desejo:
Ao vento ser parecem tão ligeiros!”
“Hás de ter” — me tornou — “asado ensejo,
Quando forem mais perto; então lhes pede
Pelo amor que os uniu: virão sem pejo”. —
Quando acercar-se o vento lhes concede
A voz alcei: — “Ó! vinde, almas aflitas,
Falar-nos, se alta lei não vo-lo impede”. —
Quais pombas, que saudosas de asas fitas,
Ao doce ninho, em vôo despedido,
Vão pelo ar, aos desejos seus adstritas:
Tais saíram da turba, em que era Dido,
A nós as duas sombras se inclinando,
Tanto as moveu da voz o tom sentido!
— “Entre beni’no, compassivo e brando,
Que nos vem visitar por este ar perso,
Tendo nós dado o sangue ao mundo infando,
“Se amigo o Senhor fosse do universo,
Da paz aos rogos nossos, gozarias,
Pois te enternece o nosso mal perverso.
“Enquanto o vento é quedo, o que dirias
Havemos nós de ouvir atentamente;
Diremos quanto ouvir desejarias.
“Onde, a paz desejando, o Pado ingente
Com seus vassalos para o mar descende,
A terra, em que hei nascido, está jacente.
“Amor, que os corações súbito prende,
Este inflamou por minha formosura,
Que roubaram-me: o modo inda me ofende.
“Amor, em paga exige igual ternura,
Tomou por ele em tal prazer meu peito,
Que, bem o vês, eterno me perdura.
“Amor nos igualou da morte o efeito:
A quem no-la causou, Caína, esperas”.
Após tais vozes foi silêncio feito.
Daquelas almas as angústias feras
Em meditar amargo a fronte inclino
Té que o Mestre exclamou: “Que consideras?”
Quando pude, falei: “Cruel destino!
Que doce cogitar! Que meigo encanto,
Precederam do par o fim maligno!” —
Aos dois voltei-me e disse-lhes, entanto:
“Teus martírios, Francesca, me angustiam,
Movem-me o triste, compassivo pranto.
“Quando os doces suspiros só se ouviam,
Como, em que Amor mostrar-vos há querido
Os desejos, que ainda se escondiam?” —
— “Não há” — disse — “tormento mais dorido
Que recordar o tempo venturoso
Na desgraça. Teu Mestre o tem sentido.
“Mas porque de saber és desejoso,
Como nasceu a flor do nosso afeto,
Direi chorando o lance lastimoso.
“Por passatempo eu lia e o meu dileto
De Lanceloto extremos namorados;
Éramos sós, de coração quieto.
“Nossos olhos, por vezes encontrados,
Cessam de ler; ao gesto a cor mudara.
Um ponto só deu causa aos nossos fados.
“Ao lermos que nos lábios osculara
O desejado riso, o heróico amante,
Este, que mais de mim se não separa,
“A boca me beijou todo tremante,
De Galeotto fez o autor e o escrito.
Em ler não fomos nesse dia avante”.
Enquanto a história triste um tinha dito,
Tanto carpia o outro, que eu, absorto
Em piedade, senti letal conflito,
E tombei, como tomba corpo morto.
Notas
editar- ↑ Minos, rei de Creta e que na mitologia pagã era juiz do Inferno. [N. T.]
- ↑ Semíramis, rainha de Babilônia, viúva do rei Nino. [N. T.]
- ↑ Dido, rainha de Cartago, que amou a Enéias. [N. T.]
- ↑ Cleópatra, rainha do Egito. [N. T.]
- ↑ Helena, mulher de Menelau, rei de Esparta que causou a guerra de Tróia. [N. T.]
- ↑ Páris e Tristão, cavaleiros dos romances medievais. [N. T.]
- ↑ Companheiros dois, Francesca de Rimini e Paulo Malatesta, que foram mortos por Gianciotto Malatesta, marido de Francesca e irmão de Paulo, por eles terem ficado apaixonados um pelo outro. [N. T.]