A Divina Comédia (Xavier Pinheiro)/grafia atualizada/Inferno/XXIX

Chegando ao décimo compartimento, os Poetas ouvem os lamentações dos falsários, que aí são punidos com úlceras fétidas e enfermidades nauseantes. Em primeiro lugar estão os alquimistas, entre os quais Griffolino e Capocchio.

Meus olhos tanto inebriado haviam
A turba enorme e o seu cruel tormento,
Que alívio em pranto procurar queriam.

“Por que assim” — diz Virgílio — “estás atento?
Por que a vista dos tristes mutilados
Prende-te ainda o duro sofrimento?

“Tal não fizeste em antros já passados.
Estão, se os resenhar é tenção tua,
Por milhas vinte e duas derramados.

“Já sob os nossos pés evolve a lua;
É-nos escasso o tempo concedido:
O que ainda hás de ver detença exclua”.

“Talvez se houveras” — torno — “conseguido
Ver o motivo, por que eu tanto olhava,
Mais demora tivesses permitido”.

Já se partia; e eu logo caminhava,
Enquanto assim falava-lhe em resposta,
Acrescentando: “Lá, naquela cava,

“Onde a vista cuidosa estava posta,
Da stirpe minha um spírito carpia
Por culpa, a que mor pena está disposta”.

“Não te confranjas mais” — responde o Guia —
“Nos males, que padece, cogitando.
De aí cuida; estar nesse antro merecia.

“Ao pé da ponte o vi, que, te indicando,
O dedo alçava em cominante gesto:
Geri del Bello estavam-no chamando.

“Eras absorto no semblante mesto
Daquele que senhor foi de Altaforte:
Quando atentaste, se ausentara presto”.

“Ó Mestre” — eu disse — “a violenta morte
Que ainda não punia justa vingança
De quem naquela afronta era consorte,

“Deu causa a usar, ao ver-me, essa esquivança
Talvez e ao seu silêncio: assim pensando
Maior piedade do seu mal me alcança”.

Ao rochedo chegamos praticando,
Donde outro vai divisa-se: o seu fundo
Todo se vira, a luz não lhe faltando.

Subidos do final claustro profundo
De Malebolge à ponte, onde os conversos
Já distinguia do recinto imundo.

Lamentos e ais feriram-me diversos;
De mágua tanta o peito assetearam,
Que os ouvidos tapei aos sons adversos.

Tão penetrante dor denunciaram,
Como se da Marena e da Sardenha
Enfermos no verão se incorporaram.

De outros à turba, que remédio venha
Nos hospitais buscar de Valdichiana.
Odor surdia, igual ao que já tenha

Corrupto corpo, e se gangrena o dana.
Baixando à sestra até a riva extrema
Mais claramente da caverna insana

Então vimos o fundo, onde a Suprema
Infalível Justiça, a raça ímpia
Dos falsários em pena infinda prema.

“De Egina quando o povo adoecia,
E o ar maligno aos animais a morte
Trazendo, os próprios vermes extinguia,

Deserta sendo a terra de tal sorte
Que às formigas (poetas o afirmavam)
Deveu a antiga gente o alento forte:

Cenas tais mais tristeza não causavam
Do que almas ver, que essa prisão sombria
Em rumas várias lânguidas juncavam.

Qual sobre a espalda de outro se estendia,
Qual sobre o ventre seu, qual se arrastando
Na dolorosa estrada se estorcia.

Silentes, passo a passo caminhando,
Vemos, ouvimos míseros prostrados,
Em vão para se erguerem se esforçando.

Sentados dois, um no outro recostados,
Quais torteiras que juntas se aquecessem,
Vi do alto aos pés de pústulas manchados

Os criados, que os amos seus apressem,
Ou que estejam velando de mau grado
Almofaça não vi que assim movessem,

Como cada um se agita acelerado,
Com implacáveis unhas se mordendo,
De raivoso prurido atormentado.

Iam da pele as crostas abatendo,
Como a faca do sargo arranca a escama
Ou de peixe, na casca mais horrendo.

“Ó tu” contra um dos dois Virgílio exclama,
Que os dedos teus convertes em tenazes
Por desmalhar do corpo a extrema trama,

“Diz-me se entre estas almas contumazes
Existe algum Latino; eternamente
Sejam-te as unhas de servir capazes!”

“Latinos somos” — torna diligente
Um dos dois padecentes lacrimoso,
“Mas tu quem és? Em declarar consente”.

— “Eu sou que” — diz Virgílio ao desditoso
“De círc?lo em círc?lo este homem vivo guia
Por lhe mostrar o abismo pavoroso”.

Já cessa o mútuo arrimo, que os unia:
A mim volveu-se cada qual tremendo;
Turba imitou-os, que em redor ouvia.

Acercou-se-me o Guia assim dizendo:
“Quanto quiseres tu agora dize”.
Eu logo comecei lhe obedecendo:

“Nunca a memória vossa finalize!
Na primeira mansão da humana raça!
Mas por sóis numerosos se abalize!

“Quem sois? E donde? De o dizer a graça
Fazei: a vossa pena, imunda é certo,
De responder-nos pejo vos não faça.

“De Arezzo fui” disse um “de Siena Alberto
Morte me deu nas chamas, truculento,
Por feito a que não fora o inferno aberto.

“Dissera, em gracejar só pondo o intento.
“Alçar-me aos ares posso velozmente”.
Essa arte, por ter curto o entendimento,

“Houve ele de saber desejo ardente.
Como o não fiz um Dédalo, à fogueira
Mandou-me quem seu pai foi certamente.

“Mas das cavas caí na derradeira
Por sentença de Minos rigorosa:
Foi meu crime a alquimia traiçoeira”.

E ao Vate eu disse: “Nunca tão vaidosa
Gente, pôde alguém ver como a de Siena?
Nem a de França há sido tão sestrosa!”

O segundo leproso então me acena
Dizendo: “Salvo Stricca, homem poupado,
Que todo o excesso em desprender condena!

“Salvo Nicoló, aquele que inventado
Do cravo tinha a rica especiaria,
O seu uso deixando enraizado!

“Salvo Caccia de Ascian e a companhia,
Com quem vinhas e bosques esbanjava
E o Abbagliato as chanças esgrimia!

“Para que saibas quem desta arte agrava
Contra os de Siena o teu severo asserto,
No meu triste semblante os olhos crava.

“De que ora vês Capocchio já estás certo,
Que alquimista, os metais falsificara,
Sabes como eu, se em recordar acerto,

Natura, hábil bugio, arremedara”.