A Divina Comédia (Xavier Pinheiro)/grafia atualizada/Purgatório/X
Os dois Poetas sobem ao primeiro compartimento do Purgatório, cuja escarpa é de mármore, no qual estão esculpidos vários espisódios de humildade. Eles os observam e no entanto vêem em sua direção várias almas curvadas sob o peso de grandes pedras. São as almas dos que no mundo foram soberbos.
Passado estando o limiar da porta,
Das paixões pelo excesso desusada,
Que reta faz supor a estrada torta,
Pelo estrondo senti que era cerrada.
Se atrás volvesse os olhos, qual seria
A desculpa da falta perpetrada?
Subíamos por fenda que se abria
Na rocha, a um lado e ao outro serpeando,
Qual onda, que ora acerca, ora desvia.
“Aqui ser destro cumpre, acompanhando” —
Disse o Mestre — “o caminho árduo, fragoso,
Que as sinuosas voltas vai formando.” —
A passo íamos, pois, tão vagaroso,
Que a lua o crescente reclinado
Era já no seu leito de repouso,
Quando aquela estreiteza hemos deixado
Espaços livres alcançando e abertos,
Onde o monte pra trás era inclinado;
Eu inanido e ambos nós incertos
Da vereda, em planura enfim paramos,
Mais solitária que áridos desertos.
Do precipício a borda calculamos
Distar da oposta, em que o rochedo alteia,
Comprimento que em homens três achamos.
Na extensão, que ante mim se patenteia,
Da direita ou da esquerda igual largura
Nessa cornija aos olhos se franqueia.
Não déramos um passo na planura,
Quando notei que a escarpa sobranceira,
Que ascender não permite a sua altura,
Era alvo mármor, tendo a face inteira
Talhada com primor, que a Policleto
Tomara e à natureza a dianteira.
O anjo, que da paz trouxe o decreto,
Tantos séc?los com lágrimas pedido,
Que o céu abriu, donde o homem stava exceto,
Ao vivo ali mostrava-se insculpido,
No gesto e no meneio tão suave,
Que em pedra não parece estar fingido.
Quem não jurara que profere o Ave,
Pois juntamente figurada estava
Quem do supremo amor volvera a chave?
Seu semblante estas vozes expressava
Ecce ancilla tão propriamente,
Como na cera imagem, que se grava.
— “Num ponto só não prendas tanto a mente” —
Virgílio me falou, tendo-me ao lado,
Aonde o coração bater se sente.
Para mais longe olhei: maravilhado
Após Maria então vi que disposta,
Da parte, em que era o Mestre colocado,
Fora outra história em mármore composta.
Ao sábio adiantei-me: de mais perto
Aos meus olhos melhor ficara exposta.
O carro com seus bois na rocha aberto
E a Arca santa que conduz, mirava:
Lembra aos profanos o castigo certo.
Em coros sete o povo ali cantava:
Do olhar em mim o ouvido dissentia,
Pois se um dizia sim, outro negava;
De igual modo na pedra percebia
Ao ar o fumo se elevar do incenso:
Da vista o asserto o olfato desmentia.
Da Arca adiante, com fervor imenso,
Dançando humilde via-se o salmista,
Mais e menos que um Rei no zelo intenso.
Mícol, do régio paço, em frente, a vista
No Rei fitava, o ato lhe estranhando,
Que lhe move desgosto e que a contrista.
Desse lugar depois eu me afastando,
De perto contemplar fui outra história,
Que além um pouco, estava branquejando.
Aqui brilhava a preminente glória
Desse famoso Imperador romano,
Por quem Gregório obteve alta vitória.
Ao natural tirado era Trajano:
Do freio do corcel mulher tratava;
Dizia o pranto sua dor, seu dano.
De cavalheiros tropa se apinhava,
E nas bandeiras a águia de ouro alçada
Acima dele aos ventos tremulava.
A infeliz, dos guerreiros rodeada,
Parecia dizer: — “Senhor, vingança!
Morto é meu filho e eu gemo atribulada.”
E Trajano tornar: — “Toma esperança
Até que eu volte.” — E a mísera pungida
Da dor que, em mãe, a tudo se abalança:
— “Senhor, se não voltares?” — “Deferida
Serás de herdeiro meu.” — “Bem que outro faça
Que val?, se a obrigação tens esquecida?” —
E ele: — “Ânimo esforça na desgraça.
Meu dever cumprirei sem mais espera,
Justiça o exige, compaixão me enlaça.” —
Quem novas cousas nunca vê, fizera
Visível sobre a pedra esta linguagem:
Arte não sobe a tão sublime esfera.
Enquanto me enleava em cada imagem,
Em que há dado aos extremos da humildade
De operário a perícia mor vantagem,
— “Eis almas lentamente em quantidade
Acercam-se; a mais alta” — disse o Guia —
“Nos pode encaminhar sua bondade.” —
A vista, que em portentos se embebia,
De olhar outros já sôfrega, volvendo,
Atentei no que o Mestre me advertia.
Mas, leitor, que esmoreças não pretendo,
Nem que os bons pensamentos te faleçam,
Como os pecados pune Deus sabendo.
Nem os martírios nímios te pareçam;
Pensa bem no porvir; pois, em chegando,
O grão Juízo, em caso extremo, cessam.
E eu disse: — “O que ora a nós vem caminhando
Não creio sombras ser: o que é portanto?
Não sei, a percepção turbada estando.” —
— “Do seu tormento, que te movo espanto
É condição à terra irem curvados:
Também a vista duvidou-me um tanto.
“Olhos fita; imagina levantados
Os que vêm dessas pedras oprimidos:
Já vês quanto eles são atormentados.”
Cristãos soberbos, míseros, perdidos,
Cegos da alma, que haveis pra trás andado,
De tanta confiança possuídos,
Que vermes somos não vos stá provado,
De que surge a celeste borboleta,
Que incerta voa ao tribunal sagrado?
Por que do orgulho assim passais a meta,
Se sois insetos no embrião somente,
Vermes de formação inda incompleta?
A modo de pilar ver-se é freqüente,
Joelhos, peito unindo, uma figura
Cornija ou teto a sustentar ingente.
Da dor mera ficção move tristura
Em quem olha: senti então notando
Das almas penitentes a postura.
Mais umas, outras menos, se dobrando
Iam, segundo o fardo, que traziam;
E as que eram mais sofridas, pranteando,
Não posso mais! — dizer me pareciam.