I

Cavalheiros, os tempos já passados,
De pajens, de canzéis, de fidalguia,
De castelos, de reinos brasonados.

Ar cortesão de graça e fantasia
Através dos olhares e dos beijos
— No silêncio de cada galeria...

Foi nesse bravo tempo dos lampejos
De espadas, de punhais e de couraças
Por combater frementes de desejos.

No tempo dos floreios e das caças
Dos assaltos alegres e bizarros
Como as sonoras vibrações das taças.

Em que as almas airosas como jarros,
Cheios de vinho espumejante e ardente
Eram de glória vencedores carros!

Foi no tempo fidalgo e refulgente,
Quando o heroísmo fantasioso amava
A linha e a chama de luzida gente,

Que esta cena galharda se passava,
Quando um donzel partia para guerra
Como a nobreza do solar mandava.

O pai, um tronco transudando a terra,
Forte e viril, presença de profeta
Que no seu flanco a valentia encerra.

Barbas serenas de bondoso asceta
Em cuja alvura doce e veneranda
Vê-se a vontade e a intrepidez completa.

Fronte banhada de meiguice branda
A que o dever e os ríspidos conselhos
Dão sempre a austeridade que age e manda.

Lembra um ocaso de clarões vermelhos,
Musgoso, triste, desolado muro,
Por onde o luar abre fulgor d’espelhos.

E esse semblante que parece duro,
Áspero e torvo, trouxe-o dos combates,
Do torvelinho do nevoeiro escuro.

Dos pelouros sanguíneos escarlates,
De fogo aberto em turbilhões, vorazes,
Dos impulsivos, bélicos rebates.

Mas, bem olhadas, as feições audazes
Desse velho patriarca destemido
Tinha a suavidade dos lilazes.

Nos olhos, um passado consumido
Entre aventuras e colóquios belos
Como que faz um verdadeiro ruído...

Sente-se neles noites de castelos
Gozadas em amores dadivosos,
Em madrigais, em íntimos desvelos.

Cavalgadas, torneios donairosos,
Sonho feliz de rica mocidade,
Requintes ideais, cavalheirosos.

Tudo se sente na tranqüilidade
Desse deus varonil da força antiga
Feito com o rijo bloco da Verdade.

Tudo se sente nessa paz amiga
Que as crenças do passado às outras crenças
Vagas, futuras, para sempre liga.

Tudo se sente vir das névoas densas
E da ridente e cândida meiguice
Das suas barbas límpidas e imensas.

Sim! tudo da quase criancice
Que dão aos homens esses tons nevoentos
Da enregelada e trêmula velhice.

Porém, reatando aéreos pensamentos...
Comecemos na cena detalhada
Que já das eras se espalhou nos ventos.

É nada mais que a história duma espada,
História curta, mas interessante
Duma espelhante lâmina timbrada.

Não é pelo aço ou lâmina espelhante
Que irei contar, pois são comuns os aços,
Mas pelo nobre e original rompante.

Pelo ardimento que os primeiros braços
Que a manejaram com pujança e brio
Nela gravaram, com profundos traços.

II

O velho, em pé, atlético e sombrio
Diante do filho armado cavaleiro,
No aspecto dum leão ruivo e bravio.

Fala-lhe claro, d’alto e sobranceiro,
Numa solene e enérgica atitude
De quem nos prélios sempre foi primeiro.

O filho, grave o escuta e atende a rude
Lhanez estóica de palavra augusta
Que dos lábios lhe sai, com tal saúde.

Calmo, sem se mover, firme a robusta
Figura solarenga do estoicismo,
O velho disse esta nobreza justa:

"Aqui tens esta espada que o heroísmo
Dos teus avós honrou nessas campanhas,
Com o mais ousado, intrépido civismo.

Freme ainda hoje em convulsões estranhas,
Palpita e anseia dentro da bainha
Sonhando a luta, as implacáveis sanhas.

Tu, para a teres, como eu sempre a tinha,
Num triunfo imortal, quase divino,
De gládio que o valor maior continha;

É necessário um grande ardor leonino,
Que sejas bem idólatra do nome
Que fez de mim o extremo paladino.

A ferrugem, tu vês, o aço consome...
Porém, neste aço que ainda aqui fulgura,
Se houver ferrugem, tira-a com o renome.

Aqui tens, pois, a lâmina segura,
Alma e brasão da nossa velha casa
Coberta de ovações, famosa e pura".

Calou-se um instante, como a ave que a asa
Fechou no voar, já quase que abatida,
Caindo exausta junto a moita rasa.

O filho, mudo e respeitoso, erguida
A valente cabeça leal de moço,
Formoso estava, porejando vida.

E enquanto o velho, impávido colosso,
Calara-se num momento, emocionado
Ficara o filho em íntimo alvoroço.

Mas de repente, como iluminado
Por um clarão de glórias já extintas,
Tornou o velho, aos poucos transformado:

"Podes partir! Porém nunca desmintas
Nas pelejas o dom da nossa fama,
Por menos força que no peito sintas.

Como um clarim, por toda a parte aclama
O vigor deste ferro e do teu pulso
No combate que ruja, ulule e brama,'.

E cada vez mais pálido e convulso,
Mais nervoso e febril e mais altivo
Bradou ainda, num tremendo impulso:

"Se tu, que és da minh'alma o exemplo vivo,
Meu filho, tens de ser como um cobarde,
Como um vilão abjeto e repulsivo;

Não faças mais de fidalguia alarde,
Pega esta espada, meu Afonso, pega
E quebra-a de uma vez, que não é tarde.

Pois em lugar de fazer dela entrega
Aos sequiosos, feros inimigos
Antes a quebre a cólera mais cega.

Ei-la, aqui tens, a leoa dos perigos,
Que como outrora em minha mão lampeja
Da bravura e da fama nos abrigos.

Se não a tens de honrar nessa peleja
Escuta bem, ó meu amado filho,
Quebra-a, e o teu nome nem manchado seja.

Como eu faria noutra idade e brilho,
Com outras energias musculares,
Segue-me tu no denodado trilho,,.

E assim falando, em gestos singulares,
E agigantado corpo retesando
E um tom sinistro esparso nos olhares;

A cabeça nos ares agitando
Numa alucinação, — enorme ereto,
Como heróica visão, deblaterando...

Fitando bem o filho predileto,
Como se de repente lhe brotasse
A força hercúlea dum poder secreto.

O velho, qual um templo que abalasse,
A mão crispada, lívida e nervosa,
Com todo o esforço a lhe afluir na face,
Partiu no joelho a espada vitoriosa.