Chronica

O sexo femenino importava-se pouco com os jornaes politicos. E tinha rasão. Nunca a mulher lançava mão d'um periodico e se lançava, relanceava apenas os olhos por sobre a variada gazetilha, porque o seu genio travesso e folgazão não comportava as discussões aridas e pesadas da politica. Um dia, um elegante francez, de luva côr de violeta e bota de polimento, charuto na bocca e lunetas assestadas, entrou por Portugal dentro, dando-se ares de gente fina e dotado d'um genio altamente progressista originou uma admiravel revolução no jornalismo portuguez. Teve o espirituoso francez uma recepção maravilhosa, em Portugal.

O jornalismo portuguez offerecera-lhe então uma generosa hospitalidade digna dos tempos de Euryalo. Teve o litterato parisiense uma hospedaria nos baixos das columnas de cada jornal politico.

Da maravilhosa recepção que tivera, nascera a immensa popularidade, que grangeára. Chamava-se feuilleton o bom do francez, que abordára ás luzitanas praias. Dentro em pouco era elle o pae d'uma nomerosa familia de litteratos.

Appareceram então os folhetinistas. Surgiram da obscuridade as vocações pronunciadas e as tentativas ridiculas. Appareceram então homens que por as suas promettedoras estreias preludiavam grandes genios. Appareceram os Janins, na França, os Mariannos Larras, na Hespanha e os Lopes de Mendonça e Cezares Machados, em Portugal. Estas é que eram as vocações pronunciadas. O certo é que depois da innovação o periodico tanto entrava na camara da mulher como no escriptorio do político. Tem-se, por ahi, dito o que seja o folhetim e o folhetinista. Cá para mim o folhetim é um genero de litteratura ameno e agradavel.

O folhetinista é o homem de bom gosto, com um genio travesso como o d'uma criança, que passa por sobre as novidades do dia como uma borboleta por as camelias d'um jardim; é um gymnasta, um acrobata perfeito, que despede, ás vezes, uns ditos agudos e epigrammaticos, que ferem a victima como a frecha d'um arco; finalmente, um homem, que tendo uma alma altamente progressista enterra o chapeu de feltro até ás orelhas para não ouvir as discussões bombasticas da politica, que lhe troveja por sobre a cabeça. O folhetinista quando não tem de que se rir, solta um sorriso aristarchico, ri-se de si mesmo e conclue rindo-se do publico, que se rira das espirituosas facecias com que, maliciosamente, lhe soubera prender a attenção.

O folhetim foi contaminado na sua essencia por algumas variantes menos apreciaveis e espirituosas.

Appareceu a Chronica, filha primogenita do folhetim, cuja indole apresenta um caracter mais sisudo e imponente. O folhetinista indica e analysa superficialmente, o chronista descreve e tem obrigação de descer ao intimo das cousas.

A revista theatral teve por pae o folhetim e por mãe uma noticia diversa, que apparecia na gazetilha e na qual o jornalista aventava a sua opinião sobre um drama que não vira e uma opra... que conhecia do cartaz.

De maneira que a revista theatral é o termo medio entre o folhetim, propriamente dito, e uma insignificante local, que tem por unico fim... cansolar os que não foram ao theatro.

Mas lembro-me agora de que estou lavrando sentença contra mim mesmo. Pois não veem o substantivo — chronica— no cimo d'estas linhas? E a chronica, disse eu, que era nada menos que uma descripção exacta e eu tenho fallado do folhetim... sem me importar com o que vai nem com o que vem. Hoje cada um formula leis a seu modo e de mais o uso permitte-me empregar aqui, a palavra chronica em vez de folhetim.

Tem-se visto que o folhetim pertence aos jornaes politicos como a chronica aos litterarios.

Por uma rasão obvia. E' que a indole amena do folhetim recreia o espirito do leitor no vaguear pelas escabrosidades d'um jornal politico. O logista, por exemplo, que é assignante d'um jornal litterario tem uma pronunciada embirração com aquelles artigos d'amor e poesias de sentimento e por conseguinte diz ao proprietario do jornal que quer umas prosas noticiosas, desataviadas das flôres do estylo e... diga-se a verade... que estejam ao alcance da sua intelligencia. Apparece então a chronica.

Mas é que se o chronista se affasta da trilha, que o uso lhe marca, chovem-lhe sobre a cabeça mil imprecações dos assignantes... logistas. Por conseguinte vou principiar.

Nos caffes, nos passeios, nas salas, nos templos até [sacrilegio inaudito!] é assumpto de discussão o debute da Borghi-Mamo. A plateia do Porto — o Jazon dos nossos dias — não tinha até aqui descoberto o vellocino da harmonia. Apparecera elle não em Colchos, mas sim no Porto e no proscenio do theatro de S. João. Appareceu no ano de 1865, anno notavel por ser de crise ministerial... e alimenticia segundo prophetiza alguem. Appareceu no anno em que o Porto — este burguez illustrado — lida, trabalha e pensa para mostrar ás nações europeas uma exposição internacional, que é, seguramente, a mais arrojada concepção dos homens progressistas de Portugal. Appareceu n'este anno, como lhes queria dizer, Borghi-Mamo.

Borghi-Mamo, que fizera este anno as delicias da aristocratica Lisboa, viera mostrar ao Porto que tambem póde gosar... o que lisboa gosa.

Borghi-Mamo é uma cantora admiravel! Debutou no domingo com a Favorita. A sua voz de mezzo-soprano arrebatava a plateia, que se curvava para ouvir o genio. Borghi-Mamo é inexcedivel! O seu talento é a sua apotheose.... Ha poucos genios assim, infelizmente...

Não tem v. exc.a, minha leitora, ido á feira do S. Lazaro, nas noites em que não ha theatro lyrico, contemplar a perfeição dos bonecos de pau... e de carne?! Oh! se tem!! Eu vi-a lá. V. exc.a ia de braço dado com o papá e ao passar por entre o povo olhava de soslaio para um elegante de calças á hussard e luva côr de flôr de alecrim.

Não digam vv. exc.as que o divertimento do Porto, actualmente, se limita no estreito ambito da feira do S. Lazaro. Pelo contrario. Não estiveram, na quinta feira, no Stabat Marter? As almas de vv. exc.as não se deixaram arrastar por aquellas vagas harmonias, que alma de Rossini creara e que voejavam pela longa e perfumada nave do templo, como um bando d'aves, que se espaneja no ar?.. Não foram os rostos de vv. exc.as os fócos onde convergiam os languidos olhares dos apaixonados Adonis?.. Oh! se foram! Como estava vistosa a rua das Flôres, sexta-feira, ao passar da procissão! VV. exc.as faziam com que as janellas que ladeam a rua parecessem as ondulantes aleas de flôres, que orlam as longas ruas d'um jardim.

VV. exc.as, as Helenas, as Phedras, as Ariadnes, fitavam os olhos nos enamorados Theseos, que descerravam os labios n'um amoroso sorriso...

O mundo commercial, que ha pouco andava tacirtuno e cabisbaixo por não saber do Béarn, já sexta-feira passeava, alegremente, pelas ruas do transito da procissão, porque o vapor Paraná trouxera as malas da correspondencia e o mundo commercial, á puridade, se diga, presa os seus interesses não menos... do que a vv. exc.as

Agora, se a senhora D. Maria Adelaide Fernandes Prata m'o permitte, queria dizer-lhe duas palavras em relação a uma carta sua, dirigida á senhora D. Maria Peregrina de Sousa, publicada no numero antecedente d'este jornal.

Os homens não teem receio, que o sexo femenino venha um dia a offuscar a sua gloria, como v. exc.a diz. Eu, entendo que a irradiação d'um talento, não cega os olhos dos admiradores, que contemplam outro. O grande é sempre grande. O nome de Vergilio não nos apaga da mente, por um instante, o de Homero. Os homens, que trilham a escabrosa estrada das lettras, querem que a mulher lêa, pense e escreva como elles. As mulheres teem, tambem, enriquecido a historia da litteratura. Sapho, a grande lyrica grega, legou ao mundo inteiro as suas preciosas odes trochaicas e Erinneo o seu poema intitulado — A roca — que a antiguidade tanto admirou. O sexo masculino quer que a mulher se nobilite pelo talento e não a manda concertar piugas, como v. exc.a julga. Mas a nobresa que o talento dá, ganha-se pelo estudo e as producções que o sexo femenino, actualmente, tem lançado ao mar da publicidade, diga-se francamente, não são das mais correctas. Diz v. exc.a que os homens, levantando-se pela maior parte ao meio dia, só querem para si a inspiração bebida no sorrir gracioso da aurora e não permittem a vv. exc.as o descrevel-a. Isto não me parece assim, porque v. exc.a no seu volume de poesias, publicado em 1859, descreve a aurora, na poesia intitula — Ao nascer do sol — e os homens pouco se importaram com isso. Desculpe v. exc.a estas minhas observações, que pouco valem.


Chronica

Quinta feira santa!... Os rôlos vaporosos do incenso, que se desdobram em spiraes, as ondas sonoras que o orgão chove sobre nós, os canticos harmoniosos dos levitas, os reflexos pallidos dos cyrios, são impressões que a nossa alma recebe, aberta, como a flôr, que a desabotoára, quando o sol tingia de vermelho os cómoros d'além. Jesus Christo falla e os apostolos curvam-se para ouvir-lhe a homilia...

Nunca o pae falla sem que os filhos inclinem a cerviz com respeito e amor... Que banquete tão opulento de sua simplicidade! Doze convivas, apenas! ― Comei este pão, meus filhos, disse Jesus. ― Accipite et comedite, hoc est corpus meum ― Tomai este calix, esgotai-o, hauri-o ― Hic est enim sanguis meus. D'aqui a instituição da Eucharestia. Da Eucharistia, que é o Jordão onde se purificam nossas almas. Da Eucharistia, que é o precioso majar commungado no banquete da religião.. E' entre canticos e aromas e sons e crenças, que a egreja celebra n'este dia o anniversario da cêa da paschoa...

Sexta-feira santa! Jesus pende da cruz no cimo do Golgota! Os labios gelados pelo sopro glacial da morte descerram-se ainda, e dizem: Eli! Eli! lamah sabacthani! ― Meu Deus! Meu Deus! porque me desamparaste! Oh! quem se não curva ante a cruz?! A cruz não é já a forca ignominosa dos escravos. A cruz é o symbolo da emancipação da humanidade, porque pende d'ella o cadaver do filho de Deus! A cruz ― o emblema da divindade ― está acima das mundanas realesas, porque ella orna a corôa doirada dos monarchas... A cruz, falla-nos de Deus á beira dos caminhos, nos corucheos das ermidas, nos campanarios dos templos, na valla do cemiterio. Nos tempos remotos dos idolos pagans, das falsas doutrinas, das crenças impuras, a cruz, ainda que sumida na obscuridade, era já a nuncia d'uma nova religião. A cruz apparecia, então, entre as crenças falsas do budhismo, insculpida no frontespicio dos pagodes do Butan. A cruz via-se já gravada nos hieroglificos de Thebas! a cruz, fôra a égide sob que combateram oito cruzadas, que tentaram derrubar a cerviz mahometana! A cruz, gravada na malha do guerreiro, era o escudo impenetravel, que elle offerecia ás balas inimigas! A cruz, depois de Constantino, apparece nos lábaros dos exercitos romanos! Apparece nos cimos do Capitolo, apparece, finalmente, erguida, hoje, sob a abobada do tempo para memorar uma data! Se, ha dezenove seculos, dizia Cicero aos romanos que esquecessem a cruz, nós, hoje, paramos e dizemos diante d'ella: Ave, Crux!

A alma de v.exc.a, minha leitora, não está, ainda, corrompida pela leitura dos Renans e Voltaires. V. exc.a acredita nos Bossuets e Chateaubriands, porque eu vi-a, sexta-feira, com o rosto involvido no veu, de gaze, preto, ajoelhada no meio da nave do templo, orando fervorosamente.

Vossas excellencias ataram, graciosamente, os chapeus, calçaram as luvas de pellica preta, endireitaram o penteado e foram ver a procissão, aromatisando a atmosphera com as vestes, que levavam, perfumadas do incenso do templo.

Tenho, agora, de me fazer acrobata. Saltar do sagrado ao profano. Interpollar façanhas gentilicas n'estas tristes recordações do christianismo.

E' o crime que imputam a Camões, na sua maravilhosa epopea.

Dou por provada a minha criminalidade tendo o author dos lusiadas por cumplice. E não me arrependo... Até aqui esta chronica foi um (texto ilegível), d'aqui em diante parecerá uma nenia. Devia ir tarjada de preto, vestindo lucto. Tenho a noticiar factos tristissimos. Sunt lacrimae rerum, direi eu, agora, perfilhando as palavras de Virgilio, n'um tom elegiaco. Contarei da morte... do ministerio, do ministerio lyrico, da feira de S. Lazaro e da quaresma. Tudo isto morreu! Ainda bem que não foi tudo n'um dia senão fazia-nos lembrar a catastrophe de 1755! O ministerio cahiu! E' a phrase mais concisa que se tem dito. E disse isto de passagem, porque em jornaes litterarios não se falla de politica. E' assumpto este que o chronista não tracta porque não deve e o folhetinista porque não pode.

A respeito de Tantalo, diz a mythologia, que estava immerso na agua, mas que para maior expiação, não podia beber uma só gotta. O folhetinista está tambem mergulhado no mar da politica... mas não póde fallar d'ella. O ministerio lyrico se não cahiu agonisa nos paroxismos da morte. Borghi-Mamo fugiu e levou consigo a alma da companhia lyrica... Ella não pode subsistir sem o auxilio d'aquella garganta, que tanto valia. A companhia, actualmente, é um corpo inerte sem alma, sem vida. As estatuas de Prometheu não valeriam nada, se não fora o fôgo roubado a Jupiter, que as animava. A feira do S. Lazaro acabou. Deixai-a morrer. Já não nos pruem nos ouvidos os sons desconcertados e desharmoniosos das gaitas, que os rapazes tocavam, empregando toda a força dos seus pulmões. As algibeiras dos vendedores resentiram-se com este fallecimento, as dos paes de familiar contentaram-se...

Fugiu a quaresma com todo o seu cortejo de confissões, jejuns, jubileus e contricções. Cantem as beatas e as devotas o epicedio sobre o tumulo, que guarda a ossada da quaresma. Não apregoem já que estes dizeres teem seus laivos de gentilismo. Não. Eu respeito-a, mas não gosto da quaresma, porque a acho muito sreia. Venha a folgada Paschoa com as suas amendoas e pão de ló, com os seus folares e brinquedos. A alegria da Paschoa principia com as bombas, que estouram na barriga do, duas vezes, pseudo-Judas. E acabe-se a chronica com uma expressão já velha — Dedit finem. A chronica,.. não eu.

 


Página:A Esperanca vol. 1 (1865).pdf/131 Página:A Esperanca vol. 1 (1865).pdf/132 Página:A Esperanca vol. 1 (1865).pdf/133 duas importantes. A companhia do Baquet acabou de degolar a Degolação dos Innocentes e apresentou-se, no sabbado, com o drama Culpa e perdão e as comedias Bertha em castigo e Posso fallar á snr.a Queiroz? no theatro de S. João ressuscitaram, no domingo á noite, as necromancias do prestidigitador Velle. Não foi o Velle que apresentou os espectros mas sim o snr. Tasso, que á ultima hora, resolveu fazer boa amisade com Satanaz. Não sei, mas creio que alguem que lá foi ia prevenido com nominas e amuletos, porque se dizia que n'aquella noite havia, no Tartaro, sublevação de duendes... Eu é que nunca fui ver o Velle... sem levar bentinhos. De resto, continua a mesma monotonia. Quem gosta de passeiar, passeia, e quem gosta de lêr satisfaz o desejo na bibliotheca. Encontrei lá outro dia, um rapaz meu conhecido e perguntei-lhe

Que lês tu?..

Deixa vêr... disse elle, abrindo o livro na primeira pagina para ver o titulo.