O pai e o filho
Continuava Custodio da Cunha a passear no quarto. Rufina entrou assodada, dizendo:
― A mãe saiu de carro sósinha?!
― Saiu, respondeu o ancião. Vai buscar para viver comnosco uma menina muito bôa e muito infeliz. Has de consolal-a de suas tristezas e amal-a como irmã.
― Ah!.. quanto serei feliz!.. Com que gosto abraçarei a minha irmã adoptiva!...
Maximino entrava ainda agitado. Não podia disfarçar inteiramente o seu alvoroço. O pae carregou o sobrôlho e replicou a Rufina:
― Não se trata de gosto; mas de consolações e de juizo. Não podemos ser felizes por termos de viver com desgraçados. Retira-te Rufina, tenho que dizer em particular a teu irmão.
Maximino sentiu um calafrio em todo o corpo. Forcejou por senhoriar suas commoções.
― Ella está salva ― pensava elle ― é o principal.
Rufina tinha saido. O ancião assentou-se, crusou os braços e olhou fixo para o seu filho. O mancebo tinha socegado pouco a pouco, e sofreu este exame sem pestanejar. Respondeu ao olhar interrogador com uma vista serena e suave. O coração nadava-lhe em venturas.
― Maximino ― disse Custodio da Cunha com modo sério, mas não carregado como ha pouco ― d'hoje em diante vai viver debaixo do nosso tecto uma orphã desvalida e infeliz.
O mancebo córou, mas não desviou os olhos dos de seu pae. Este continuou com voz firme:
― A honra e o dever não são brincos de creança. Offerecemos um asylo honesto a uma donzella desditosa, é preciso que este asylo seja o que se lhe offerece.
Maximino continuava a estar sereno. Seu pae proseguiu em tom mais forte, mas não colérico:
― E sabes, Maximino, como o homem honrado e brioso se porta com a menina que se abriga na casa de sua familia?
― Sei, meu pae.
― Bem, acredito na tua probidade. Sabes tudo a que te obriga a confiança que em ti deposito?
― Sim, meu pae. Nunca lhe darei occasião de arrepender-se d'essa confiança.
― Muito bem.
― Meu pae, tinha uma coisa a dizer-lhe.
― Dize, meu filho.
― Não é por volubilidade que lhe vou fazer um pedido. Tenha a bondade de me arranjar n'alguma casa de commercio no Porto, ou permitta que eu vá para o Brazil.
― Que mania é essa agora?
― Tenho considerado que fiz mal em me servir do valimento de minha mãe para seguir um modo de vida differente d'aquelle a que me destinava meu pae. Hoje já não tenho antipathia ao commercio. Estou prompto a sujeitar-me a tudo.
― Parece-te talvez que um caixeiro com alguns vintens no bolso é mais feliz do que um estudante com elle vasio?
― Não, não tenho ambições.
― Então já aborreces os estudos? ― Não, meu pae, não. Mas tenho considerado que fiz muito mal em não seguir a occupação de meu pae e a oppôr-me á sua vontade; e tambem que os meus longos estudos fazem um grande pezo á casa, e desfalcam aquillo que no futuro podia ser um dote para minha irmã.
O ancião corrêra a mão pela testa e a demorou sobre os olhos, curvando a cabeça sobre o peito.
Maximino esperou em silencio, mas vendo seu pae immovel, assustou-se e correu a elle, bradando:
― Não está bom?!
E tomando-lhe a mão pertendeu descobrir-lhe o rosto.
Zangou-se Custodio da Cunha por ser pilhado em flagrantes signaes de ternura, porque tinha os olhos cheios de lagrimas, e bradou com impeto:
― Deixa-me!..
O mancebo afastou-se atemorisado. Depois examinou seu pae com terna affeição, pensando:
― Faço mal em temel-o. Minha mãe tem razão em dizer que só ola o conhece e availa. Tem uma alma como poucas. Agora estava elle commovido pelo que eu lhe estava dizendo. Fiz mal em devassar o véo de dignidade com que queria occultar-me as suas lagrimas.
A voz do ancião, doce como poucas vezes se ouvia, fez estremecer o moço de admiração e contentamento:
― Assenta-te perto de mim, meu filho: disse elle indicando-lhe uma cadeira a seu lado.
Maximino obedeceu.
― Quando eu queria, continuou, que te desses ao negocio, estava persuadido que não havia occupação melhor, nem mais honrosa. Os enxertos em arvores taludas pegam mal. Os teus mestres e lentes dão-me boas informações de ti. Emquanto ao peso que fazes á casa, eu ainda me não queixei. Se não estou nadando em prosperidade, tambem não estou reduzido a cerciar os estudos de meu filho.
― Mas.. perdôe, meu pae, a minha observação. Minha irmã foi privada dos seus mestres.
― Os estudos d'ella não eram precisos. Eram um luxo; os teus são uma necessidade: são o teu futuro e talvez mesmo o d'ella. Ninguem póde prever eventualidades. Desejava que Rufina fosse muito prendada: mas fizemos o que podemos; e no que já sabe achará recursos para se entreter a si e aos outros. Tu, porém, continúa com os teus estudos, e faze por te distinguires.
― Farei tudo o que ordenar, meu querido pae.
Esta ultima frase dita com ternura, tornou a commover o pae. Um momento guardaram silencio, depois disse Custodio da Cunha:
― Vai para os teus livros, meu filho; por ora é essa a tua occupação. Se as circumstancias ordenarem outra coisa, mudarei de tenções e tu de tarefa; mas espero que não. Um homem deve sujeitar-se a qualquer genero de vida, contanto que viva com honra.
Maximino retirou-se profundamente enternecido e o pae não o ficava menos.