XVII

Desesperação e conforto

Passaram-se oito dias sem novidade. Amaral ia diariamente a casa da snr.a D. Ermelinda para se consolar da morte proxima de sua esposa. Devia esta [que passava muito bem] ter ainda vida, á necessidade que Amaral teria de passar muitos dias sem ver a filha de Ricardo d'Oliveira, logo que se annunciasse a esta a morte d'ella; e Amaral estava muito namorado. Quando Ermelinda instava para que elle se desse por viuvo, Amaral dizia:

― Ainda não é tempo; deixa acostumar o meu anjo á minha vista. Ella falla-me tão pouco... e tem voz tão insinuante!.. Se ella me amar, adoral-a-hei toda a vida.

― Tens dito isso d'outras, respondia Ermelinda, e passados alguns mezes...

― Mezes?!.. Annos... muitos annos, o resto da minha vida. Será a ultima mulher que amarei; e tu não perderás com isso.

Maria Isabel vivia muito triste e inquieta. A lembrança de seus paes lhe fazia derramar muitas lagrimas, as continuas visitas d'Amaral e algumas de suas vistaas a atemorisavam.

E no entanto que fazia Maximino, de quem a donzella se lembrava, suspirando?

Uma fresca manhã, caminhava Maximino pela rua Chã, sem levantar os olhos das lages que pisava. Absorvido em tristes idéas, não olhava para os transeuntes, que acoteveleva sem ver. Deram-lhe uma palmada na espadua. Voltou-se. Era Alfredo que lhe disse, rindo:

― Que procuras com tanto cuidado nas pedras da rua?

Maximino sorriu com amargura.

― Mas que tens? Já não ha quem te veja! Porque não appareces? Como a minha visinha bonita se auzentou, já me não pões os pés em casa!

― Perdôr... Ando muito triste. Maria Isabel parece que foi levada da casa de Carolina ao engano: não se sabe aonde está, apesar das muitas pesquizas de Francisco.

― Por Satanaz!.. Deixas a outro o cuidado de procurar a tua bella?!

― Francisco póde procurar a hospeda de sua mãe, sem que isso fique mal á menina; e eu...

― Tu é que podias e devias procural-a. Amal-a e pertences á sua classe. Fareis ambos um lindo par.

― Ah! Alfredo! Eu sou menos ainda que Francisco. Elle poderia offerecer-lhe um futuro mesquinho, mas eu... nem esse lhe poderia offerecer. Eu tenho pae que respeito, mãe e irmã que adoro... não ousaria deixal-os para me unir á pobre orfã, ainda que tivesse meimos de sustental-a. O que eu queria era saber se ella está em segurança. Receio que a illudissem e a levassem ao engano para alguma sillada.

― Mas com quem sahiu de casa de Carolina?

― Com uma parenta, que não conheço, chamada Ermelinda, e que a visitava amiudadas vezes.

― Ah!.. Essa Ermelinda é tão sua parenta como eu. Vi-a em casa de Carolina; mas não dei importancia a isso. Julguei que era amisade do doutor de saias. A gente do povo não é delicada com as suas relações. A mulher mais honrada une-se ás vezes á que aberrou do caminho recto. Mas socega...

― E quem é essa mulher?!.

― Não te agites assim! Procuraremos todos até achal-a.

― Quem é Ermelinda?!.. Não me occultes.

― Foi amante d'um homem opulento; hoje está reformado e a meio soldo.

― Desgraçado!..

― Maximino! Estás dando espectaculo.

― E esse devasso é Amaral?

― Como adivinhaste o nome do tal senhor? Porém, dás em doido!

― Adeus.

E Maximino partiu quasi a correr.

― Estou arrependido do que disse, ficou pensando Alfredo. O pobre Maximino dará em doido.

O filho de Custodio da Cunha procurou Francisco e apenas o viu, disse-lhe agitado:

― Ermelinda é uma desavergonhada, e levou ao engano a infeliz orfã.

― Boa novidade me dá o sr. Maximino! replicou o maritimo. Isso sempre eu disse.

― E roubou-a d'uma casa honrada para vendel-a a um ricaço que eu conheço.

― Mas não levará a cabo a sua diabolica tenção. A snr.a D. Mariquinhas não se deixará levar como a rez ao matadoiro. Já sei aonde ella está.

― Aonde está, bom Francisco, aonde está: Vamos salval-a!

― Espere!.. Isso não vai assim. Ella não deixará a casa d'essa fidalga de má morte, para sahir só pela porta fóra com dois rapazes.. Conheço os temores das meninas como a sr.a D. Mariquinhas. Se fosse uma rapariga cá da minha egualha, já eu lá estava.

― Mas então?..

― Mandei chamar a snr.a mãe para ir comigo.

― E sabes de certo onde está?

― Eu lhe conto como o soube, emquanto a snr.a mãe não chega: Estava cá a pessoa nas paragens da Torrinha quando vi uma das minhas afeiçoadas [a numero dois] ir com o vento em pôpa para o poente. Lancei-lhe o arpeo.

― Dize-me o que soubeste.

― Não se impaciente; já lá vou. Palavra tira palavra soube que ella ia ver uma irmã que está a servir em Villar...

― Ah!.. em Villar?!..

― Sim n'uma casa bonita mas pequena, fóra da estrada para o lado do sul. A ama da irmã do meu numero dois é Ermelinda e tem consigo uma menina muito bonita e muito triste coberta de luto.

― E' Maria Isabel!..

― E' o mesmo que eu disse com Deus e comigo; e deixei navegar para o poente a minha afeiçoada numero dois, e naveguei para o nascente. Mas lá vem a senhora mãe. Adeusinho. Vamos dar comnosco em Villar. Não receio nada. D'aqui a algumas horas estará a snr.a D. Mariquinhas no nosso chaveco.

― Adeus bom Francisco. Adeus snr.a Carolina.

Partiu Maximino como uma séta. Tinha uma idéa: receiava que Francisco e Carolina não podessem arrancar a menina das garras da arpia, mas não quiz desanimal-o.

Entrou Maximino quasi sem folego no quarto de Adelaide. Teve o desprazer de vêr alli seu pae e queria fallar a sós com sua mãe. O que tinha a dizer não admitia demora e disse rompendo todas as difficuldades:

― Acabo de saber que Amaral fez levar ao engano Maria Isabel para casa d'uma fingida parenta com intuito de perdel-a.

Custodio da Cunha encarou seu filho com as sobrancelhas carregadas; mas o mancebo que não olhava para elle, proseguiu:

― Não é possivel que deixemos um infame, que é rico, perder uma virtuosa menina, porque é pobre. Fez leval-a a Villar, onde tem uma casa...

― Basta! atalhou o ancião com voz terrivel. Desde quando é o snr. Maximino o paladim das damas?

― Mas meu pae... Se Rufina estivesse nas circumstancias de Maria Isabel.... o que Deus nunca permitta...

― Se tu tivesses para os velhos a metade da caridade que mostras pelas raparigas, serias canonisado brevemente. Que temos nós com a vida dos outros? Poderemos nós como D. Quixote andar a desfazer aggravos e a libertar princezas? Dizes que essa menina é pobre. Fomos nós ou seus paes que a empobreceram? Não nos ficaram n'esse naufragio do luxo parte dos nossos haveres? Se vivessemos com o brilhantismo doido com que os paes d'essa infeliz viveram, onde estariamos nós? Cuida dos teus estudos e por ora deixa-te de ser campião de raparigas. Quando tiveres uma posição será tempo de protegeres uma mulher, mas uma só, entendes?

Custodio da Cunha poz-se a passeiar e a roer as unhas. Maximino ergueu as mãos, voltado para sua mãe, que lhe impoz silencio com um gesto de ternura. O pae voltou-se para ele e disse-lhe com ar carregado:

― Vai immediatamente alugar um coupé para tua mãe, que tem de sahir.

O mancebo desappareceu como o vento.Disse então Custodio da Cunha a sua mulher com cara mais prasenteira e em tom amigavel:

― Vai buscar essa infeliz orpha. Maximino tem rasão, ainda que lhe mostrei desapprovar o que elle disse. Arranja-te de pressa, que o coupé não tardará; estou certo d'isso; o mariolinha aventou onde tu ias; conheci-o na pressa com que saiu.

― Em poucos momentos me arranjo; mas trazel-a para casa... Se receias que Maximino se apaixone por ella...

― Havia de ser bonito se elle em casa não tinha juizo!.. Que doideje lá por fóra vá... posso fechar os olhos; mas ás minhas barbas.. mais de vagar.

Pode portar-se bem, e apaixonar-se seriamente. ―

Historias!..

O ancião não acreditava em paixões. Deu dois passeios cogitando e accrescentou:

― Por causa das tolices do nosso estouvado havemos de deixar uma orphã abandonada por todos, aos machiavellicos desejos de um homem de maos costumes, que não sabe em que ha-de gastar o seu dinheiro. E tambem, Adelaide, tenho remorsos quando penso no modo aspero e duro com que tractei a innocente menina, que não tinha culpa nos erros de seus paes e que me pediu que lhe não dissesse mal d'elles. Ambos estão já no reino da verdade!.. Deus me perdõe a raiva que lhes tive.

Parou de repente, olhando para sua mulher, que cobria um chaile e punha o chapeo, e disse passado um pouco:

― Mas penso agora que fiz mal em decidir trazer para casa Maria Isabel sem consultar-te. A casa é tanto tua como minha. Se assentas que não a devemos trazer para cá.....

― Pois crês que eu podia oppôr-me a uma acção generosa que queres fazer?

― Mas julgas talvez melhor que a protejamos fóra de casa? Mas consideremos... Em casa de Carolina dando-lhe nós uma pequena pensão podia estar; porém está só, exposta a muitos perigos e viverá mal e eu queria que a consolassemos de suas tristezas. N'um convento estaria melhor; mas isso fica caro para nós: agora, queria dar-lhe todas as commodidades e...

― Venha para aqui, atalhou Adelaide. Consolar-a-hemos; aconselhal-a-hei como mãe; Rufina a amará como irmã, e Maximino não nos dará desgostos. Tens razão. Façamos a obra completa.

Ouviu-se rodar uma carruagem.

― Não te disse? tornou Custodio da Cunha quasi com um sorriso, chega o coupé.

― E' verdade!.. Como acharei Maria Isabel?

― Teu filho ha-de saber mais promenores sua morada.

Em caso de difficuldade consulta o nosso fabricante João da Madgalena. E' homem capaz; e a gente da sua classe sabe tudo o que vai pelos seus arredores. ―

― Maximino entrava já no quarto com pascommedido para não mostrar muito ardor. Os paes muito severos ensinam, sem o sabere, a dissimulaç#ao a seus filhos. Maximino porem era franco e fingia mal. Seu pae o encarou e lhe disse com o seu ar sério:

― Maximino, acompanha tua mãe ao carro e vem fallar-me.

O coupé partia com Adelaide e Maximino ficou á porta emquanto o avistou. O coração lhe batia com impeto. Procurou socegar, para ir ter com seu pae.