Uma tarde, Mário entrava na sala de jantar, quando viu o dr. Gervásio à mesa; então tornou a sair, sem dizer uma palavra.

Mila sentiu o coração parar-lhe no peito. Teodoro não ligou importância ao caso; para ele o filho voltara a buscar algum objeto esquecido, e, tão entusiasmado estava a falar em negócios, que só para a sobremesa disse espantado:

— É verdade, e o Mário ? então o Mário não voltou?

Nina murmurou, desculpando-o:

— Acho que está incomodado...

— Vou ver isso.

Teodoro levantou-se.

Calaram-se todos, como se o mesmo fio de desconfiança os ligasse entre si. Camila tremeu. Que diria o filho? como o ouviria o pai? No seu amor, de tamanhos suplícios, nenhum igualara nunca ao desse instante.

Tinha chegado a hora do marido saber tudo, e pelo Mário!

Dr. Gervásio compreendeu-a e tentava sossegá-la de longe, com um olhar firme, de confiança, certo de que nada vale antecipar tristezas, que nem por isso as coisas deixam de vir, pelos seus pés ou pelas suas asas, quando têm de vir. Mas tudo o fazia esperar que não viesse a que ela temia...

E para afastar preocupações, falou de alegrias: anunciavam-se festas; abria-se uma exposição de pintura, excelente; e comentavam-se os brios de um tenor novo para o lírico...

Ele sentia que sua voz soava falso; ninguém o ouvia, nem ele mesmo, que apesar da calma aparente dizia aquelas palavras pensando em escutar outras, que viessem de fora, como raios, fulminando tudo.

Mila encostou-se ao espaldar da cadeira, muito pálida, com uma expressão interrogativa no olhar assombrado. Dr. Gervásio falava, falava...

Entretanto, Teodoro rompeu pelo quarto do filho.

— Então, seu Mário ? isso faz-se ! Entra-se em uma sala para jantar e volta-se para trás sem satisfações, de mais a mais diante de visitas?!

— Visitas? que visitas? o dr. Gervásio?... Esse é de casa.

— Não é; mas que fosse; se não me consideras nem a tua mãe, devias ao menos respeitar o hóspede.

— Mas se é o hóspede que eu detesto ! não posso ver aquele homem, papai, não posso ver aquele homem!

— Tu estás doido! por que?!

Mário calou-se, de repente, arrependido, de olhar esgazeado. O pai insistia, furioso:

— Essas coisas não se dizem à-toa; responde: porque lhe tens essa raiva ?

— Não sei... desde criança que antipatizo com ele... por instinto... Aborreço aquele rosto pálido... aquele corpo esguio.. aquela voz desigual, aquele sorrisinho de mofa, embirro com as suas mãos de mulher, com os seus ditos de pedante, com a sua assiduidade, com os seus sapatos, com a cor das suas roupas, com os vidros das suas lunetas, com as suas essências, com ele e com tudo que é dele. Não me pergunte mais; não posso dizer mais nada; talvez lhe pareça pouco. É muito. Por hoje desculpe-me. Estou doente.

— Se estás doente, trata-te; só mesmo um delírio de febre explica o que disseste. Fica bom, que temos de ajustar contas! E que o caso não se repita, ouviste? que não se repita!... senão...olha que eu não sou bom!

Francisco Teodoro saiu ameaçador, mas foi dizer ao médico que efetivamente o Mário estava indisposto...

Nessa noite, como nas outras, o moço foi para a rua sem um - até logo!

Era preciso ir buscar a felicidade onde a encontrasse; a casa aborrecia-o.

A família andava a passear pela chácara, na doce pasmaceira costumada, vendo regar as plantas e nascer as estrelas. Fazia um calor bárbaro. Ruth voava agarrada às cordas do balanço, cantando alto, e atirando flores de cajazeiro à mãe, cada vez que ela passava por perto.

Camila recebia-as com ambas as mãos e sorvia-lhes o aroma ácido e leve, numa deliciosa sensação, afagada pela homenagem.

— Cuidado, minha filha

— Ai vai um beijo, mamãe

O beijo voava com as flores, que se prendiam aos cabelos de Mila. E o passeio continuava, arrastado e feliz.

— Um dia esta menina leva um tombo!... Mas eu sei o que faço. Amanhã cedo mando cortar as cordas do balanço. Mais vale prevenir!

— Não, Teodoro, não ! É o divertimento dela; e é tão inocente!

— Lá vens tu...

Ruth nãos os ouvia, voava no ar como uma pluma, cerrando os olhos à claridade que se difundia nas cores gloriosas de um crepúsculo ardente. De vez em quando, num impulso mais forte sua cabeça roçava na rama florida do cajazeiro, e o sussurro das folhas tinha para os seus ouvidos um rumor divino e ritmado, de música impecável. Toda a sua força se concentrava nas mãos, que a aspereza das cordas magoava, única parte então sensível do seu corpo, que ia e vinha na luz cambiante da tarde, como uma sombra movediça e impalpável.

Na vertigem do vôo, ela não via, em cima e em roda, senão claridades estonteadoras, onde anjos azuis abriam asas esgarçadas de nuvens fugidias, por entre barras de ouro e enoveladas fogueiras rubras. Em baixo, na terra cor de âmbar, o veludo verde das gramas e dos arbustos distendia-se num espreguiçamento voluptuoso e macio, à espera do sono.

Ia chegando a hora da consagração puríssima da natureza: a hora das estrelas, Não tardou que o alaranjado poente se concentrasse num roxo escuro, bipartido em ilhotas negras, sobre um mar de prata. De repente, a penumbra.

O calor aumentava; houve roncar de trovoada ao longe.

— Quer Deus Nosso Senhor que eu me vá embora, disse o médico.

— Sim, é prudente, nós vamos ter chuva... respondeu Teodoro, consultando o céu. E chuva de arrasar!

Camila ordenou a Ruth que descesse e fosse dentro buscar o chapéu do médico. Despediram-se.

Quando Teodoro entrou em casa perguntou à Noca:

— Seu Mário ?

— Seu Mário saiu...

— Hum... eu já esperava isso mesmo... Mas ele me paga...

Camila e Nina entreolharam-se com ligeiro susto, seguiram caladas para a saleta, onde costumavam passar o serão. Mal se sentaram, Mila impacientou-se. Formigas de asas voltejavam em nuvem ao redor da luz, e perseguiam-na a ela também, batendo-lhe no rosto e entrando-lhe pela gola do vestido.

— Tudo se junta, quando a gente está aborrecida ! disse ela zangada.

Nina sacudiu as formigas com o lenço.

Pelas dez horas, Francisco Teodoro chamou de novo a mulata.

— Seu, Mário ?

— Ele ainda não voltou...

— Está direito. Você vá lá embaixo botar a tranca na porta. Quando ele vier, mesmo que bata, não abra. Percebeu?

— Percebi, sim, senhor.

— Agora chame o Dionísio.

E ao Dionísio como a todos os criados, foi dada a mesma ordem.

Mila levantara os olhos do livro que estava lendo. Nina picava os dedos com a agulha, mal acertando com a costura.

Teodoro voltou-se para elas:

— Nos tempos antigos não havia chaves de trinco. Os filhos deitavam-se à mesma hora que os pais...

— Saíam pelas janelas... murmurou Camila.

— Pois sim!

— E se chover? A noite está tão feia...

— Que volte para trás. Não vem a pé.

— Mas como despede o tílburi ao portão, terá de voltar a pé, e debaixo dágua...

— Pois que apanhe chuva, se chover, exclamou Teodoro fora de si; ou raios, se caírem raios. Senhora, isto então é vida?!

— É a mocidade...

— Já me tardava. Muito obrigado! Eu pude passar a minha dobrado em dois ao peso do trabalho, e o senhor meu filho só sabe gastar o que ajuntei com o suor do meu rosto!

— Ele não tem a mesma saúde; Mário é fraco.

— Mais uma razão.

— Qual razão!

— Basta; resolvi, acabou-se. Daqui em diante, ou o rapaz me entra em casa a horas convenientes ou...

— Ou?...

— Ou que vá dormir para o diabo!

Camila olhou com desprezo para o marido, enojada daquela fúria. Quis replicar, mas veio-lhe de repente um grande medo de que Francisco Teodoro a fizesse de novo intermediária das suas ameaças, e fugiu da sala para não responder, batendo com a porta, num desespero.

— É por estas e por outras que o Mário está assim... resmungou o negociante, percorrendo a sala com as mãos nos bolsos, a tilintar as chaves.

Fora, a noite estava negra, abafadíssima. Vinha da terra e dos vegetais um cheiro intenso, morrinha de febre, que engrossava a atmosfera, corporizava-a, tornando-a irrespirável.

Ainda não eram onze horas e já se recolhiam todos para os quartos, amodorrados, bambos.

Pouco depois levantou-se a primeira lufada, que veio roncando de longe, soturnamente.

Fecharam-se as janelas; a tempestade aí estava. Quando rezava para dormir, Noca teve um estremecimento: uma coruja passou cantando rente ao beiral do telhado.

A mulata persignou-se duas vezes e ficou à escuta.

O que passou depois, foi o vento.

Ela deitou-se com um suspiro.

Quem não se deitou foi a Nina. Sozinha, no seu quarto estreito, abriu a janela e debruçou-se para o jardim sondando a rua, através do arvoredo.

Os lampiões de gás mal alumiavam as calçadas solitárias, envolvidos pelas nuvens de poeira, que vinham de longe, varridas pela ventania, lambendo tudo. De vez em quando, um bonde passava, de oleados corridos, com tilintar de campainhas que vibravam timidamente no vozear medonho da noite.

Nina voltou para dentro, desabotoou o corpinho e atirou-o para uma cadeira; sentia-se opressa. O tufão descansava: ela voltou à janela, curiosa, com ansiedade, cosendo o peito nu ao peitoril largo. Não viu nada. A voz arrastada de um bêbedo guinchava na esquina, em falsete, acompanhada por outra voz que falava na mesma toada. Uma nova lufada veio forte, terrível, abalando tudo.

A única janela iluminada da vizinhança fechou-se.

O bêbedo foi arrastado para longe, perderam-se os seus queixumes à distância, e só ficou o vento, cada vez mais forte, uivando, uivando.

Agora não parava; enchia tudo com o seu sopro formidável.

Sentia-se o estalar crepitante das folhas estorricadas pelo sol e o aroma das verdes, que ele ia levando pelo ar em revoada louca. Na inútil resistência da luta, as árvores contorciam-se, estalavam; caíam arbustos arrancados pelas raízes, e frutas verdes despenhavam-se sobre as telhas, com estrondo.

Nina expunha a cabeça nua ao açoite da tormenta, enervada pela fixidez da sua idéia. Entretanto, sabia, o Mário não merecia aquilo, não a amaria nunca.

Havia uns quinze anos já que ela morava naquela casa, levada pelo pai, o Joca: era então muito enfezada, apesar dos seus dez anos. Entrara para ali como poderia ter entrado para um asilo qualquer: para ter cama e pão. Não ignorava isso, lembrava-se de tudo. Era obrigada mesmo a meditar no passado mais do que queria. Não conhecera a mãe, e em frente à mudez da treva pensava nela, como se a tivera visto. Não compreendia por que rejeitavam o seu coração amoroso. Nem mãe na infância, nem noivo na mocidade. Que triunfo!

Sabia pelos outros que a mãe fora urna mulher da má vida e baixa classe; mais nada; e não era pouco.

Criara-a desde o primeiro ano a avó paterna, d. Emília, sem muitos agasalhos, porque o dinheiro era escasso e a paciência já não era nenhuma. Por causa disso aprendera depressa todos os serviços caseiros, era a copeira da família, e aos nove anos já não se atrapalhava quando tinha de por uma panela de arroz ou de feijão no fogo. Lá teria ficado sempre em Sergipe, se o Joca não se tivesse casado com uma viúva carregada de filhos e que não podia ver a enteada diante de si... Sempre as antipatias! Não era para tornar má uma criatura? Lembrava-se que não fora também acolhida com entusiasmo na casa de Francisco Teodoro.

Ao princípio, amedrontada, Nina procurara a companhia dos criados, de preferência à da família, habituada aos serviços grosseiros e às palavras brutas, com o seu ar de cãozinho batido. Toda a gente tomava isso como o mais claro indício dos instintos baixos; aquilo era o traço da lama que ela trazia da mãe e que arrastaria pela vida fora.

Habilidosamente, Noca aproveitou-a para entreter Ruth, que dava então os seus primeiros passos. E nesse mister, a menina revelou a doçura do seu caráter e o engenho do seu espírito. Ruth em poucos dias preferia-a aos outros, atirando-lhe ao pescoço magrinho e pálido os seus dois bracinhos redondos. Aquela conquista foi uma glória para Nina. O amor de alguém nascia para ela, como a luz para um cego, e sentia nos beijos cor de rosa da criança gorda e bem tratada o aroma da vida, que até então ela só parecia ter espreitado de longe.

Mário era nesse tempo um rapazinho de cinco anos, alto e forte para a idade, muito lindo, arrojado e pouco amável para ela. Abusando da sua força e da sua posição de preferido, trazia-a fascinada, pronta a ceder às suas vontades absurdas.

De todas as pessoas, uma das mais indignadas contra a adoção da Nina em casa de Teodoro fora d. Joana, para quem a menina cheirava a pecado e era uma blasfêmia viva aos preceitos da moral religiosa. Para essa classe há os asilos, afirmava ela; as plantas daninhas não são para os canteiros de violetas. A caridade faz hospícios, orfanatos, rodas, onde se apuram e aperfeiçoam os filhos da impureza e da vergonha; mas agasalhar no seio honesto um animal desconhecido, era exporem-se a um veneno de efeitos imprevistos.

Mila não repelia a idéia, cheia de indignação pela origem da sobrinha; entretanto, a coitada ia pouco a pouco conquistando as boas graças de todos, devagar, pela sua docilidade e o seu préstimo.

Apesar de miúda e de pálida, ninguém a via doente; tinha os músculos flexíveis, como o gênio. Aos doze anos conservava o seu ar estúpido e humilde; não conhecia uma letra; mas ensinava as criadas novas a varrerem a casa e a porem a mesa com perfeição. Como o Mário lhe batesse um dia com os arreios do seu cavalo de pau, Francisco Teodoro resolveu pô-la em um colégio, de pensionista, recomendando uma instrução prática, nada ornamental. Bem orientado andou.

O colégio fora o seu melhor tempo. Do pai não sabia senão de longe em longe, quando ele participava à irmã o nascimento de mais um filho, com umas lembranças murchas, para ela, no fim da carta.

Ao princípio, a idéia daquele irmão, que não veria talvez nunca, sensibilizava-a; depois deixou de pensar nisso... Para quê?

Foi só depois de mulher que Nina começou a amar a mãe; amor ignorado por todos e que ela cultivava como um segredo caro. Sondai bem o coração mais puro, que lá no fundo achareis um mistério, alguma coisa que existe e que se nega, ou porque faça corar ou porque faça sofrer.

Nina tinha vexame de perguntar pela mãe e ardia em desejos de saber dela. Onde estaria essa mulher repudiada?

Ninguém lho dizia; assim, ora a imaginava na sepultura, e era a idéia mais consoladora, ora regenerada, mas sozinha... ora em um desses recantos negros da cidade, já velha e ainda atolada no vicio, batida, escarnecida, miserável.

No meio da treva, que ela interrogava com ânsia, pareceu-lhe sentir a alma impenetrável da mãe solicitando-a nó agoniado suspiro do vento; então estendeu os braços, soluçando, no desejo da Morte, para o encontro definitivo das duas almas e a fusão de um beijo eterno, que redimisse uma e desse à outra a sua primeira alegria.

Reboaram os primeiros trovões, com enorme estampido; um ziguezague de ouro cortou o espaço negro, e à luz branca de um relâmpago a casaria muda bailou macabramente com o arvoredo escuro.

A convulsão passou, para voltar depressa; na fosforescência móbil e ofuscante da luz, todas as coisas tomavam proporções extraordinárias, mas logo, nos intervalos, a treva da noite mais se condensava.

Aplacou-se o vento, e então, só de um jato, a chuva caiu, pesada, brutal, ensurdecedora.

A água borrifava a janela. Nina procurou um chale, envolveu-se e voltou. Era tempo: através das torrentes da chuva, viu tremeluzir indistinta no véu fosco das águas, a lanterninha de um tílburi.

Debruçada, alongando a cabeça, a moça gritou:

— Mário! Mário!

Mas a sua voz fraca perdia-se no dilúvio.

O primo abria o portão; ela tentou ainda dizer-lhe que voltasse, que o pai lhe trancara a porta; mas a lanterninha do carro movia-se já na sombra, ia-se embora.

Nina voltou para dentro, acendeu a vela e esgueirou-se para o corredor.

Com o coração aos saltos, foi resvalando pela alcatifa do passadiço, com a precaução de quem vai para o crime.

Quando chegou embaixo já o Mário sacudia a fechadura com impaciência. praguejando raivoso.

Ela tateou os ferrolhos e recomendou:

— Espere um bocadinho, Mário!

— Que estupidez!

— Não faça barulho... já vai! sussurrava ela sem que ele a ouvisse de fora.

Enfim, a porta abriu-se. Mário esperava cosido ao umbral.

— Que idéia foi esta de deixarem a chave...

E ele interrompeu a frase e a cólera, ao ver a prima ali. Por que seria ela e não qualquer criado, quem lhe ia abrir a porta?

— Foi ordem do tio Francisco. Boa noite.

Nina quis subir logo, mas uma lufada de vento obrigou-a a proteger a chama da vela com a mão, e com o gesto desprendeu-se-lhe uma ponta do chale que a envolvia. Na meia escuridade do vestíbulo, Mário percebeu-lhe a doçura do ombro nu, pequeno, redondo, um pouco de carne virginal guardada até aí em um recato que nem o baile afuguentara nunca. E já ele não viu senão a pureza daquele ombro acetinado, saindo do meio das lãs, como um desafio aos seus sentidos, num assalto impudico e voluptuoso.

Acudiu-lhe então a idéia perversa de haver um propósito malicioso naquela história. Não lhe afirmara Noca tantas e tantas vezes que a prima o amava?

A filha da mulher de má vida aí estava agora, como devia ser: livre de hipocrisias. Mário estendeu-lhe os braços. Nina compreendeu.

Uma onda de sangue subiu-lhe ao rosto; segurou o chale com força e subiu correndo.

A vela apagou-se, os degraus da escada pareciam multiplicar-se debaixo de seus pés. No alvoroço, pisava sem cautela ora no assoalho, ora no passadiço, sentindo as faces abrasadas de vergonha, feliz no seu desespero, supondo-se ainda perseguida pelos braços do Mário, que se quedara estupefato no mesmo ponto.

Um trovão estalou, como se uma bomba tivesse rebentado em casa. Nina sentiu os joelhos vergarem-se-lhe, mas continuou no seu galope tonto até ao patamar. No corredor, em cima, receou ainda errar de porta.

Com as mãos estendidas apalpava a escuridão, ouvindo só o estrondo da chuva, compacta, sempre igual. Temia que o primo a perseguisse e não se atrevia a voltar a cabeça, para não esbarrar com ele, ali mesmo, junto aos seus calcanhares.

Os pés, habituados ao caminho, levaram-na direita ao fim; uma rajada assobiando pelas frinchas de uma porta, tê-la reconhecer o quarto, de que deixara aberta a janela, e ela entrou arrebatada, forçando a porta, que resistia. Fechou-se logo à chave, colou o ouvido à fechadura. Ninguém; suspirou de alívio, estava só.

Um relâmpago conduziu-a à janela, de que fechou os vidros, alagando-se toda. Despiu-se à pressa, às escuras, deixando cair toda a roupa molhada no chão.

E foi à luz branca de um outro relâmpago que ela se viu toda nua, muito pálida, no grande espelho do guarda-vestidos. Escondeu o rosto de repente, como se vira um fantasma, e saltou para a cama, enfiando a camisa de dormir, num movimento de louca, com medo da noite, com medo da sua própria imagem, que se lhe afigurava impressa para todo o sempre no vidro.

Era tal a sua confusão e a vibração dos seus nervos, que não sentiu alguém andar pelo corredor de vela acesa e passos compassados.

Mário adormecia feliz, na melhor paz da vida; Francisco Teodoro voltava para o sono interrompido, tendo intimamente perdoado a quem abrira a porta ao seu rapaz, por tão feia noite de trovoada, - e ainda Nina, na estreiteza da sua cama, com os olhos pasmados para o teto negro, sofria, sofria, sofria...

No outro dia, às oito horas da manhã, quando Francisco Teodoro entrou na sala de jantar para o almoço, comido sempre cedo e à parte da família, já lá encontrou a sobrinha, retocando os arranjos do copeiro para a sua mesa.

— Bons dias, Nina; você passou bem a noite? perguntou-lhe ele, fixando-lhe os olhos pisados.

— Eu passo sempre bem... respondeu ela corando.

Ele teve pena; e mais baixo, para que o criado não o ouvisse:

— Você fez mal em abrir a porta a meu filho; ele não lhe merece esses sacrifícios... e... e mesmo isso não lhe fica bem; a sua intenção foi boa; realmente a noite estava pavorosa... contudo espero ser esta a última vez que sou desobedecido.

Envergonhada, prevendo grandes males, em uma angústia em que se fundia um prazer, adivinhando os pensamentos do primo, maldizendo-o e adorando-o, sentindo-se dele para a vida e para a morte, quase que se arrependia de se não ter abandonado, soluçando por aqueles braços de que fugira...

Nina estava hirta, encostada ao espaldar de uma das cadeiras arrumadas junto à mesa. Um vento de desespero sacudiu-lhe as idéias, sem que ela atinasse com que palavra responder. Francisco Teodoro reclamou então dela, mesmo para a tirar do embaraço em que a via, que lhe partisse uma fatia do roast-beef frio e que lhe fosse depois buscar o Jornal, esquecido em cima, no quarto de toilette.

Aquela maneira polida e reservada não era a usada pelo negociante nos seus momentos de censura. Ao contrário, ele abusava dos termos violentos e atroava a casa com as suas mais altas vozes. E era uma dessas crises que a Nina esperava e que viu mudada num tom em que a admoestação era misericordiosa, e por isso mesmo mais comovedora.

Ela não respondeu, e apressou-se em servir o tio.