Na saleta de engomar, Noca, com o ferro na mão, sabia do que se passava em toda a casa. Nesse dia ela trouxera uma braçada de roupas para cima de uma cadeira junto da tábua. Lia e Rachel interromperam-na depressa.
— Noca, você corta um vestido para a minha boneca? pediu Lia.
— E outro para a minha, Noca?
— Vão-se embora. Hoje não tenho tempo para conversas.
— Um só, Noca, sim?
— Não faço nada! Amanhã seu pai está a5 gritando que não tem roupa!
Mas as meninas ficaram, trouxeram a rastos uma esteira, sentaram-se nela e a Noca não teve remédio senão cortar os vestidos das bonecas e ainda dar-lhes agulhas, linhas e retalhos. Distribuído o serviço, levantou-se. Nina passava a caminho da despensa e sorriu-lhe; mas a mulata mal correspondeu ao cumprimento, enjoada pela bondade daquela criatura.
A culpa era do sangue, da sua raça, que menos estima os superiores quanto mais estes a afagam. Por isso ela morria de amores por Mário, um rapazinho atrevido, de gênio autoritário e palavras duras.
Começava a alisar a primeira camisa do patrão, quando Dionísio se acercou da tábua.
— Agora é que você está chegando, Dionísio?!
— É. Fui levar um recado de seu Mário... A senhora já sabe que ele deixou a francesa? Esta agora é mais bonita; é uma carioca de se lhe tirar o chapéu
— Ora veja só como Dionísio está tolo... Ela apontou as crianças, que poderiam ir mexericar lá para dentro. E depois:
— É loura ou é morena?
— Morena, altinha, muito chic.
— Bem. Vá arrumar o quarto de Mário, ande.
Mal saiu o Dionísio entrou a criada Orminda, uma caboclinha de olhar sonso.
— Olhe aqui, d. Noca, o que eu achei embaixo do travesseiro de d. Nina.
— Que é? perguntou a mulata, sem levantar a vista do trabalho.
Um retrato.
Noca olhou; era um retrato de Mário. Guardou-o, sem dizer nada. Orminda continuou:
— Minha ama está escrevendo uma carta, lá no quarto...
— É para Sergipe.
A cabocla sorriu.
— O professor de música está ai...
— Já sei.... Vai pedir ao jardineiro um pouco de hortelã, anda, para eu botar de infusão.
Noca tinha ascendência sobre a criadagem, que a tratava por dona. Mesmo entre os brancos a palavra da sua experiência era ouvida com acatamento. Ela era a mulher desembaraçada, a doceira dos grandes dias de festa, a única das engomadeiras capaz de satisfazer as impertinências do dono da casa; ninguém sabia como a Noca preparar um remédio, um suadouro, nem dar um escalda-pés sinapisado, nem tão bem escolher o peixe, preparar um pudim ou vestir uma criança.
Alegre, forte, faladora e arrogante, com o gênio picado e a língua pronta para a réplica, não admitia admoestações nem conhecia economias. As suas roupas, muito asseadas, cheiravam bem; andava de cores claras e fitas alegres, pisando com todo o peso do seu corpo volumoso e encarando as criaturas de frente, num bom ar de sinceridade.
Exímia na tradução e interpretação dos sonhos, era de uma imaginação lentejolada de pequeninas idéias extravagantes e concepções originais. Para o mais insignificante fato, tinha uma explicação misteriosa, embrulhada em névoas e superstições curiosíssimas que saíam da sua boca como lemas fatais, de uma verdade indiscutível.
E aquela influência estendera-se pela família toda. Camila consultava-a; Nina contava-lhe os seus sonhos, pedindo-lhe explicações; Ruth ouvia-a com enorme interesse, de alma aberta para tudo que tivesse ares de fantasia; e a criadagem pedia conselhos, rezas, remédios, palpites de jogo e consolações de desgostos...
Noca acudia com prontidão a todos, gabando-se, sem hipocrisia, de gostar de ser útil e servir de muito a muita gente...
Ela andava agora desconfiada com a tristeza mal disfarçada de Mila. Desde aquele passeio ao Netuno deveria haver por ali grande novidade... O dr. Gervásio; entretanto, desfazia-se em cuidados... e o pobre do capitão Rino era recebido com certa secura, que o estúpido parecia não compreender!
A Nina, coitada, emagrecia como um arenque, e só Ruth passava sem ver nada, como se a música a levasse por outros caminhos... O patrão... esse também ruminava qualquer coisa...
Quem provocava confidências indiscretas da mulata era Nina, que, com o pretexto de passar uma gravata ou alisar uma fita, ia à saleta do engomado logo que dela via sair o Dionísio.
A mulata, percebia tudo e não tinha escrúpulos em repetir a verdade. Ora, aquilo talvez curasse a moça, pensava consigo. Se os amores não passassem, que seria da gente? O coração quer-se à larga. Sofrer por causa de um homem ? Não vê!
Nina, com os olhos úmidos, as mãos curtas, de dedos ligeiramente achatados, espalmados na tábua ainda quente do ferro, escutava tudo muito caladinha e, quando a última palavra caía dos beiços grossos da Noca e que a mulata começava a assoprar as brasas, ela voltava para dentro, sentava-se a coser, achando-se mesquinha, feia e muito desgraçada. Todos os esforços que fazia por agradar eram inúteis; Mário nem parecia vê-la e mal parava em casa... A outra era bonita; morena e altinha. Era pouco o que sabia, mas o bastante para a fazer sofrer.
Enquanto, no bulício da casa, todos se agitavam no trabalho ativo, Camila conservava-se no seu quarto, muda, encolhida em uma poltrona, com as mãos inúteis, o olhar febril.
A visão daquela. mulher de luto, da manhã do Netuno, não a deixava nunca; sentia-lhe, como um castigo, a formosura, o perfume, e aquele ar discreto de honestidade e de elegância. O que a punha doente, e que a atormentava ainda mais era a obstinação de Gervásio em negar-lhe uma explicação qualquer. Que haveria entre ambos ?
No seu ciúme e ressentimento, Camila esquiva-se agora ao médico; era em vão que ele a chamava para as suas doces e cruéis entrevistas. Mas toda a sua força em resistir ia afrouxando, e ela sentia bem que, apesar de tudo, chegaria um dia em que os seus pés a levariam para ele.
Foi ainda naquele canto do quarto que Francisco Teodoro a encontrou, ao voltar da cidade.
— Estás doente ? Olha que eu trouxe um camarote para a Aída. O Negreiros disse-me que vai muito bem por esta companhia...
— Que entende o Negreiros de música
— Ele tem excelente ouvido. Acho bom desceres. O Gervásio está lá em baixo...
Mila desceu, e, ao sair para o terraço, parou entre portas, escutando o que dizia o dr. Gervásio. Ele estava sentado, de costas para ela. Em frente dele, em pé, Ruth ouvia-o atentamente, com a corda de pular enrolada no braço, e o rosto ainda vermelho pelo exercício interrompido.
— "Você disse que a irmã da Lage é uma moça bem educada, ,querendo dizer que ela é uma moça instruída. Há diferença: educação e instrução não se confundem. Repare: por que considera você essa moça como bem educada? Porque fala francês, inglês, toca e desenha; não é assim? Pois essas prendas, ainda que adquiridas com esforço, compram-se aos mestres; as outras dão-se ou nascem da boa convivência. Uma pessoa instruída não será de exterioridade agradável se não for educada. A instrução nem sempre transparece e nem sempre concorre para a felicidade. A educação prepara-nos para a tolerância e revela-se em tudo, na maneira por que fazemos um cumprimento, por que andamos na rua, por que nos ajoelhamos em uma igreja, por que comemos a uma mesa, por que falamos ou por que ouvimos falar, por que em discussões tonalizamos as nossas opiniões com as opiniões contrárias; por mil efeitos, enfim, que, sendo imperceptíveis, realçam o indivíduo, porque o polem e o tornam digno da boa sociedade. A instrução é a força com que aparelhamos o nosso espírito para a vida, lança e escudo para ataque e defesa; a educação é o perfume que os pais inteligentes derramam na alma dos filhos e que por tal jeito se infiltra neles, que nunca mais se evapora, seja qual for o ambiente em que vivam depois.
É bom não confundir as duas palavras, Ruth, porque essas confusões, à vista grossa dos indiferentes, não tem importância; mas alteram a verdade e não escapam aos ouvidos delicados."
— Não tornarei a trocar o sentido dessas duas palavras...
— O Lélio disse-me ontem que lhe tinha trazido uma valsa de Chopin. Ora, você pode tocar, mas não pode interpretar bem semelhante autor.
— Por que?
— Porque ainda não tem idade para compreendê-lo. Chopin é um músico perigoso, minha filha; é um torturador, um excitador de almas. Contente-se com os seus clássicos, mais sadios e mais frescos. A música como a leitura, deve ser ministrada com prudência. Falarei ao Lélio. Sua mãe já desceu?
— Está ai, atrás do senhor.
— Ah...
Mila socorreu-se da filha, para não ficar só com o médico que a via muito esquiva. A palidez e a tristeza adoçavam-lhe a fisionomia, dando-lhe um encanto novo. O Gervásio observava-a calado, indeciso, com medo de resolver de chofre a situação, com uma palavra só..,.
Todos os anos Francisco Teodoro celebrava os aniversários dele, da mulher e dos filhos com banquetes de três e quatro mesas, vinhos a rodo e danças até a madrugada.
Nesses dias o médico fazia apenas o seu cumprimento, oferecia as violetas e o brinde do estilo, e retirava-se cedo para a casa silenciosa, lá para os lados do Jardim Botânico, onde ia fazer as suas leituras, comodamente reclinado na sua cadeira de balanço dentro do robe de chambre que lhe agasalhava o corpo magro.
Camila conhecia suas antipatias por essas festas e não se lamentava por isso da ausência.
A imensa casa era então pequena para o número de amigos. Nos jardins iluminados a barões e a copinhos, nas salas, nos corredores, nos terraços, no bufet, nos quartos, em toda a parte havia povo, rumor de vozes e cheiro abafado de plantas pisadas, flores amornadas por luzes, essências diversas reunidas ao odor dos molhos e das carnes servidas no banquete. As camas sumiam-se ao peso de capas, mantilhas, chapéus e sobretudos. Os convidados varavam todos os aposentos, como quem anda por sua casa. Nina, as criadas e Noca atiravam para dentro de um quarto, o único fechado, tudo o que não devia estar embaraçando o caminho: tapetes retirados à pressa para as danças; mesas de centro, almofadões do sofá, que tomavam espaço, floreiras, etc. As crianças corriam pela casa, espalhando passas e migalhas de doces; e um pianista pago dedilhava no piano as polcas e as valsas do seu repertório.
A essas festas iam sempre os colegas e os conhecidos de Francisco Teodoro, o pessoal da sua casa de comércio, gente da vizinhança, alguns doutores, um senador do império, a quem era dirigida a melhor das atenções, e amigas de Camila, do tempo do colégio, mulheres de posição e bem apresentáveis, que só com as ricas ela topara depois, na balbúrdia da vida.
Nos intervalos da dança havia sempre quem tocasse dificuldades ao piano, ou cantasse algum romance italiano.
Francisco Teodoro, jubiloso e amável, instava para que comessem, para que bebessem. Não se esquecia de ninguém, punha mancheias de balas nos regaços das crianças, ordenava que se abrisse champagne, conduzia as senhoras idosas ao bufet recomendando à Noca que distribuísse pela criadagem vinhos e doces.
Eram festas pantagruélicas, em que o riso se comunicava mais pelo barulho que pela intenção.
Camila dançava, roçando os seus maravilhosos braços nus pelas mangas dos comendadores ou dos empregados do marido.
A mesa os brindes sucediam-se atropeladamente. Para o fim, havia sempre uma voz alta, pausada, que se erguia a vitoria do trabalho honrado e puro, e essa voz lembrava os maus dias de Francisco Teodoro, a sua pobreza, a, sua energia e o seu triunfo.
O dono da casa respondia com palavras trêmulas e olhos umedecidos. Tilintavam as taças e a música vibrava com força na sala. Voltavam para as danças. Como Ruth não dançasse, o pai chamava-a de minha estudiosa gabando-a aos convidados, que olhavam um pouco espantados para ela. Ruth esquivava-se àquela curiosidade e fugia para fora. Iam encontrá-la depois no balanço, sozinha, voando à claridade das estrelas...
Só no dia seguinte ao do festim é que o dr. Gervásio ia ao palacete Teodoro saborear o peru quebrado do almoço e os fios de ovos, na quietação cansada da família.
Então eram por toda a parte vestígios da barafunda. Nina contava os talheres, que espalhados entre a louçaria e os cristais punham onda de luz pálida na mesa do jantar; Noca varria as salas, criados lavavam os mármores da escada e do vestíbulo e o jardineiro guardava os copinhos e as lanternas disseminadas pelo jardim.
Era uma dessas festas que Francisco Teodoro desejava agora oferecer aos seus amigos. Desceu a consultar a mulher e o médico. Encontrou-os ainda no terraço, ao lado de Ruth, que as mãos da mãe prendiam nervosamente.
Mila acolheu a idéia com frieza; o marido insistiu:
— Você está mole, anda diferente. Reaja, tome remédios. Que diabo! eu tenho obrigação de obsequiar os homens. Eles vêm aí em nome da colônia. Não quero fazer figura triste.
— Alguma manifestação ? perguntou Gervásio.
— Sim. Uma tolice. Idéias do Braga, do Lemos e de outros. Avisou-me hoje disso o Negreiros. Foram até ao ministro e não sei mais o quê! Enfim, já disse, o que eu não quero é fazer figura triste. O engraçado é que minha mulher falava em dar um grande baile, e agora, que se apresenta a ocasião, faz cara feia!
Dr. Gervásio acudiu. Achava magnífica a idéia e procuraria auxiliá-la na execução. De si para si pensava que esse pretexto traria Milú ao movimento da sua vida habitual; arrancá-la-ia daquela obstinação de pensamento, daquela apatia física que o atormentava.
Pela primeira vez o viram interessado por uma festa. Francisco Teodoro pediu-lhe que a dirigisse. Desse dia em diante o médico punha e dispunha do palacete, como senhor absoluto. Determinava como as coisas se fizessem. A ceia seria no terraço, ao fundo, sob um toldo de seda, entre bosquetes de avencas e camélias brancas; desenhava ornamentos, encomendava flores, substituía estofos, harmonizava cores, dava estilo e graça ao que só tinha peso e luxo; idealizava a matéria, arrancava uma alma delicada àquelas salas carregadas e mudas.
Mila assistia a tudo silenciosa, abatida pelas suas suspeitas; mas, pouco a pouco, Gervásio convencia-a de que a sua ciumada era lima doidice. Não tivera ele também ciúmes do capitão Rino ? E ai estava: já nem pensava nisso!
Como o coração de Mila não comportasse rigores, afeito à felicidade, ela foi esquecendo.