Sala de visitas em casa de Valentina. Duas portas de cada lado e duas janelas de sacada ao fundo. À esquerda do espectador, sofá; ao lado deste, poltrona. À direita, escrivaninha, com preparos para escrever. Cadeiras, consolos com porta-jóias, estatuetas, quinquilharias, etc. Nos intervalos das portas, gravuras ricamente emolduradas. Reposteiros de lã em todas as portas e cortinas de rendas às janelas. Piano. Tapete. Lustre de gás. É dia.
Cena I
editarValentina, Um Sujeito
(Valentina está sentada na poltrona, de penteador branco. O Sujeito de pé, pronto para sair, de chapéu na cabeça, tem uma das mãos entre as dela.)
Valentina - Adeus. De mim não se esqueça
Nem do número da porta.
O Sujeito - Não.
Valentina - Se, de saudades morta
Me não quer ver, apareça.
O Sujeito (Aborrecido.) - Adeus.
Valentina - Adeus. (Ele vai saindo.) Até quando?
O Sujeito (Parando.) - Prometo voltar bem cedo.
Valentina - Não minta.
O Sujeito - Não tenhas medo!
Pois eu vivo em ti pensando. (Sai.)
Cena II
editarValentina, só
[Valentina] - Pensando em mim!... Na verdade,
o tempo emprega bem mal,
(Abrindo o envelope que O Sujeito lhe tem deixado nas mãos.)
Sim senhor, foi liberal.
Quanta generosidade!...
(Erguendo-se, e como que dirigindo-se aO Sujeito que acaba de sair.)
Bem! cá fica arquivado
no livro dos preciosos... (Tirando três cédulas do envelope.)
Que três bilhetes formosos!
Fazem-lhe falta... Coitado...
Sei de dois credores seus
que a porta não lhe abandonam,
e sei também que tencionam
mandar citá-lo... (Outro tom.) Ora, adeus!
Deixemos estas lembranças...
Fechemos a porta à chave...
(Vai fechar a porta da esquerda, segundo plano, e voltando à cena, vai abrir uma das gavetas da secretária.)
E, nesta solidão suave,
vamos tratar de finanças.
Esta semana rendeu!
A receita, com certeza,
cento por cento a despesa
nestes dias excedeu.
(Senta-se à secretária, donde tira um monte de notas de banco, que põe-se a contar.)
Dez, vinte, trinta, quarenta,
cento e quarenta, duzentos,
trezentos, e quatrocentos,
quinhentos e cinqüenta,
seiscentos... - Que nota antiga!
Não estará recolhida? (Guarda pressurosa o dinheiro, por ouvir bater à porta.)
Quem está aí?
Gustavo (Fora.) - Sou eu, querida!
Valentina (Erguendo-se.) - Gustavo?
Gustavo (Fora.) - Sim, minha amiga.
(Valentina vai abrir a porta a Gustavo, que entra.)
Cena III
editarValentina, Gustavo
Valentina (Apertando-lhe a mão)
- Não te esperava já, palavra de honra!
Gustavo - Já?
Querias que eu ficasse eternamente lá?
Valentina - Deste-te bem?
Gustavo - Então? Não vês como estou nédio?
Para o blazé não há mais eficaz remédio
do que passar um mês de vida regular
onde os prazeres são difíceis de encontrar.
O físico e o moral a roça purifica:
tens precisão também da roça, minha rica.
(Repoltreando-se na poltrona.)
Dize-me cá: tem vindo o deputado?
Valentina (Encostando-se ao espaldar da poltrona.)- Tem.
Gustavo - O João Ramos?
Valentina - E o Pimenta?
Valentina - Também.
Gustavo - Que bons amigos tens! Sou eu que tos arranjo!
Em consideração deves tomar, meu anjo...
Valentina (Descendo à cena.)
- Pois queres mais dinheiro?! És exigente.
Gustavo - Sou;
mas vê lá também a roda que te dou!
Valentina (Sentando-se à direita.)
- Não trouxeste o melhor dos que aqui vêm agora.
Gustavo - Quem é? Não é segredo?
Valentina - Um tipo que me adora!
Um fazendeiro rico e velho que supõe
ser ele só que os pés em minha casa põe.
Gustavo (Com interesse.)
- E onde foste encontrar esse tesouro raro?
Valentina - No Prado Fluminense. Eu vi-o, deu-me o faro,
sorri-lhe, ele sorriu-me... Eu dei-lhe o meu cartão..
Veio. Adora-me e... crê que tenho coração.
Gustavo - Um fazendeiro é mina; e quanto mais se explora,
mais ouro dá!... Pois bem, caríssima senhora,
- não é por me gabar - acredito que o seu
é muito bom, mas tenho um ótimo!
Valentina - Tu?
Gustavo - Eu.
Valentina (Erguendo-se.) - Onde ele está?
Gustavo (Idem.) - Depois... depois nós falaremos...
Valentina - Mas que custa dizer?
Gustavo - Tempo de sobra temos.
Valentina - Mas dize-me...
Gustavo - Não posso agora; logo mais
voltarei.
Valentina -‘Stás com pressa?
Gustavo - Estou.
Valentina - Aonde vais?
Gustavo - Subi só por te ver. Espera-me um amigo
que convidado está para almoçar comigo.
Valentina - Bem; vai e volta.
Gustavo - Dá-me uns cinqüenta mil-réis.
Valentina (Vai à secretária e conta o dinheiro.)
- Com muito gosto. É já... Dois, quatro, cinco, seis...
Dez e dez vinte, e trinta... Ah! Cinqüenta... Pega!
(Dá o dinheiro a Gustavo que o guarda.)
Gustavo - Obrigado. Até logo! (Sai por onde entrou.)
Valentina - Adeus. (Só.) Supõe-me cega...
Com tal balela quis uns cobres me apanhar!
(Fechando a porta.) Enfim... Vamos a ver... Bem posso me enganar.
Cena IV
editarValentina , só
(Senta-se de novo à secretária, abre-a e recomeça a contar dinheiro.)
[Valentina] - Terminemos esta conta...
Três contos... quatro e quinhentos...
e seiscentos... setecentos...
Quase a cinco contos monta
desta semana a receita!
Vamos conferir... (Toma a pena.) O Ramos
deu-me na quarta... - Escrevamos -
oitocentos de uma feita...
(Escrevendo.) “Oitocentos”. (Pensa.) O Pimenta
aquele broche me deu
que há três dia me rendeu
trezentos e cinqüenta...
Entregou-me o deputado
todo o subsídio. Que bolo!...
É justo: um fútil, um tolo,
que só diz “muito apoiado”
e ganha um conto e quinhentos. (Escreve.)
Deu-me no dia seguinte
Mais quatro notas de vinte...
O Sá tem dado trezentos...
O fazendeiro... (Batem à porta.) Quem é?
Já lá vou!
(Guardando o dinheiro que estava espalhado.)
Deve estar certo...
Levo isto ao Banco, que é perto,
daqui a pouco. (Batem de novo.) Olé! Olé!
Com que pressa está!
O Joalheiro (Fora.) - Estou!
Não se acha em casa a senhora?
Valentina - Se quer, espere!
O Joalheiro (Fora.) - A demora
é pequenina.
Valentina - Lá vou.
(Vai abrir a porta: entra O Joalheiro com uma caixa de jóias na mão.)
Cena V
editarValentina, O Joalheiro
Valentina - Ah! é o senhor!
O Joalheiro (Abrindo a caixa, deixa ver um formoso par de bichas de brilhantes.)
- Ora veja!
Valentina - Vem aqui tentar-me, aposto!
O Joalheiro - Não tentei nunca, nem gosto
de tentar quem quer que seja.
(Entregando a jóia a Valentina que a examina.)
Venho mostrar-lhes uns brilhantes
como os Farâni não os tem;
Se os quer comprar, muito bem!
Se os não quer, passo adiante.
Não tento... não sei tentar...
Apenas lhos ofereço...
Nem sequer os encareço...
Isto é pegar, ou largar!
Veja bem que são granditos!
Sem jaça... veja... sem jaça...
Examine... veja... faça
O que quiser.
Valentina - São bonitos!
O Joalheiro - ‘Stou a vendê-los disposto:
se lhos vim mostrar agora,
é porque sei que a senhora
pode comprar, e tem gosto.
Não tento... tentar não vim...
Valentina (Fechando ao caixa.) - E baratinho mos vende?
O Joalheiro - Ora, a senhora compreende
que dois brilhantes assim...
de dez quilates!... É boa!
Valentina (Abrindo de novo a caixa.) - Dez quilates?
O Joalheiro - Está visto!
Valentina - Porém quanto valem?
O Joalheiro - Isto
não são brilhantes à toa!
Valentina - Bem vejo! Que tentação!
(Vai ao espelho e chega uma das bichas à orelha.)
O Joalheiro - Não são jóias de mascates,
brilhantes de dez quilates...
sem jaça... como estes são!...
Valentina - Mas o preço?
O Joalheiro - Ora, avalie...
A senhora os tem comprado...
Valentina (Descendo.) - Quatro contos!
O Joalheiro (Tomando a jóia.) - Obrigado!
Por favor não calunie
os meus brilhantes! (Mostrando-lhos.)Repare!
Cravados em dois anéis,
davam dez contos de réis!
Ambas as pedras compare:
são iguais... não vale a pena
separar...(Fecha a caixa.) Dou-lhe os marrecos...
Valentina - Por quanto?
O Joalheiro - Por seis contecos.
A diferença é pequena...
Valentina - Não tenho dinheiro agora;
leve os brilhantes. Adeus! (Vai sentar-se à direita.)
O Joalheiro - Ora por amor de Deus!
Que não mos pague a senhora,
mas algum...
Cena VI
editarValentina, O Joalheiro, Joaquim Carvalho
(Joaquim Carvalho entra pela esquerda, segundo plano, sem reparar nO Joalheiro que, de costas voltadas para ele, limpa as bichas com o lenço.)
Carvalho - Cá vou entrando.
(Tomando as mãos ambas de Valentina.)
Como estás?
Valentina - Bem, obrigada.
Mas de saudades ralada...
e você nem se lembrando
talvez que existo!
Carvalho (Protestando.) - Ó minha...
(Vendo O Joalheiro interrompe-se.)
Quem é aquele senhor?
Valentina - Um caixeiro.
Carvalho - Manda-o pôr
a panos.
Valentina - Uma continha
vem receber, e não há
com que pagar...
Carvalho - Não me espanta!
Gastas tanto, minha santa!
Queres dinheiro? (Tirando a carteira.) Aqui está.
Quanto lhe deves?
Valentina - Pouquito:
oitenta mil réis.
Carvalho - É pouco. (Dando-lhe uma nota de cem mil réis.)
Paga, e fica tu com o troco,
enquanto eu leio o Mosquito.
(Senta-se à direita e lê um periódico de caricaturas que vai buscar sobre a secretária. Valentina dirige-se aO Joalheiro.)
O Joalheiro (A meia voz.) -‘Stá terminado o negócio?
Valentina (Idem.) - Vá para casa, que em breve
alguém procurá-lo deve.
O Joalheiro - Se não estou eu, está meu sócio.
Se uma decisão dar pode...
Valentina - Irei eu mesma em pessoa
em meia hora!
O Joalheiro - Essa é boa!
Não quero que se incomode,
nem tenho mais pretendentes...
Valentina - Em meia hora lá estou.
O Joalheiro - Bem! bem! descansado vou.
Valentina - Até logo1 (O Joalheiro sai por onde entrou.)
Cena VII
editarValentina, Joaquim de Carvalho
Carvalho (Deixando periódico.) - Impertinentes
são estes credores!
Valentina - São
por isso é que me coíbo
de dever muito;
Carvalho - E o recibo?
Pediste-lho?
Valentina - E por que não?
(Aproximando-se de Carvalho e passando-lhe o braço em volta do pescoço.)
Por que não vieste esta noite?
Ai, que saudades eu tive!
Para a mísera que vive
de teu amor, fero açoite
é tua ausência! Sozinha
a noite inteira passei...
Lembrei-me tanto... Nem sei
mesmo por quê...
Carvalho - Coitadinha!
Valentina (Sentando-se num tamborete, aos pés do Carvalho.)
- Porém. vamos lá saber:
e tu?... tu como passaste?
Carvalho - Assim...
Valentina - De mim te lembraste?
Carvalho - De ti me posso esquecer?
E tu?
Valentina - Muito despeitada...
Carvalho - Por que, meu bem?
Valentina - Faze idéia:
desejar uma tetéia
e não poder... Que maçada!
Carvalho - Não poder o quê?
Valentina - Comprá-la.
Carvalho - Por que comprá-la não podes?
Valentina - Pois pensa que a dão de godes?
Carvalho - Se é muito cara, deixá-la!
Valentina - É difícil esquecer!
Carvalho - Dificuldades não vejo...
Valentina (Erguendo-se.) - Sufocar o meu desejo!
Matá-lo logo ao nascer!
Esquecer! Fora um suplício!
Pois desejar hei de em vão! (Batendo o pé.)
Oh! não! não!... Mil vezes não!...
Carvalho (Erguendo-se.) - Mas eu não digo...
Valentina (Evitando-o.) - Outro ofício!
Carvalho - Menina, não te exacerbes!
Se queres a tal tetéia,
não me faças cara feia,
que dentro em pouco a recebes!
(Tomando o chapéu que deixou na cadeira perto da secretária.)
Dize-me o que é que num salto,
vou buscá-la. Dize! o que é?...
Valentina (À parte.) - Parece estar de maré...
Preparemos este assalto!...
Carvalho - Algum chapéu enfeitado
pras corridas de amanhã?
Algum vestido de lã?
Valentina (Com desprezo.) - Lã.
Carvalho - Ou seda.
Valentina - ‘Stá enganado.
É um capricho.
Carvalho (Deixando o chapéu.) - Ah! caprichas?
Valentina - Procure.
Carvalho - É coisa que enfeita?
Valentina - É uma cosa que se deita
nas orelhas!
Carvalho - Umas bichas?
Valentina - Tem talento: adivinhou!
(Senta-se no sofá.)
Carvalho - Nas orelhas... Pois quem julga
não sejam bichas? (À parte.) Coa pulga
atrás das minhas estou.
De que são as bichas?
Valentina - Ora!
Carvalho (À parte.) - Estes caprichos aleijam...
Valentina (Erguendo-se.) - Pois há bichas que não sejam
de brilhantes?
Carvalho - Sim, senhora:
há bichas de coralina;
há de esmeralda, safira,
de pingos d’água...
Valentina - Mentira!
Carvalho - Não me desmintas, menina!
Aos teus desejos conforme
‘stou, mesmo quando caprichas;
mas entre tetéias e bichas
há uma diferença enorme!
Valentina - Em quê?
Carvalho - No preço: a tetéia
é sempre coisa miúda,
e as bichas, Deus nos acuda!
Valentina - Nem tanto assim!
Carvalho - Faço idéia
que essas, que desejas tanto,
custam dois contos!
Valentina (Irônica.) -Ou três!
Sem os brilhantes talvez...
Carvalho (Benzendo-se.) - Padre, Filho e Esp’rito Santo!
Valentina - Valem dez contos de réis;
o dono, que é meu amigo,
além de freguês antigo,
deixa-as...
Carvalho - Por quanto?
Valentina - Por seis.
Carvalho - Seis contos!
Valentina - Então não valho
seis contos, meu... Que chalaça!
Não me lembra a tua graça!
Carvalho (Sombrio.) - Joaquim dos Santos Carvalho.
Valentina - Meu Quincas, meu Carvalhinho,
meu primeiro amor!
Carvalho (À parte.) - Tramóias.
Valentina - Uma mulher que quer jóias
é o mesmo que o nenezinho
que quer balas!
Carvalho (À parte.) - Não sou zebra,
que, se quer balas alguém,
compra-as a três por vintém;
e recebe uma de quebra. (Alto.)
Menina, deixa os brilhantes
para essas escandalosas
que contam dúzias e grosas
de indiferentes amantes.
Tu, meu bem, que não és destas,
que só me tens, que não vives
para prazer dos ouvires,
compra umas bichas modestas...
Valentina (Desdenhosa.) - Modestas...
Carvalho - Iguais a umas
que comprei para a Qué-qué...
Valentina (Arrebatadamente.) - Oh! essa Qué-qué, quem é?
Quero saber!
Carvalho - Não presumas
que seja alguma cocote:
é minha mulher.
Valentina - Se acaso
me mentes, vai tudo ao raso!
Carvalho - Eu, nem mesmo em rapazote
Nunca menti.
Valentina (Acariciando-o.) - Ó meu Quincas!
(Desatando a chorar.) Mas ah! que não me conheço!
Imploro... peço... Pareço
uma mendiga!
Carvalho (Tomando-a nos braços com interesse.) - Tu brincas!
Valentina - E quem me avilta? É este homem
que tanto amor me inspirou!
Que mais me resta? Que sou?
Minhas ilusões se somem,
e para sempre! Não voltam!
Cruéis desenganos surgem!
Contra mim os céus de insurgem
e os infernos se revoltam!
Amor! qual amor! É peta!
(Soluçando.) E eu, desgraçada! que adore... (Senta-se no sofá.)
Carvalho (Aproximando-se dela com mimo e bonomia paterna.)
- ‘Stás tal e qual a Ristóri
na Maria Antomieta
Valentina (A fingir um ataque de nervos.) - Ah! Ah!..
Carvalho - Meu Deus! o que é isto?!
Valentina (A espernear.) - Socorro!...
Carvalho (Percorrendo a cena.) - Jesus!
Valentina - Socorro!
Eu morro!
Carvalho (Atarantado.) - Qual morres!
Valentina - Morro!
Quem me acode?
Carvalho - Jesus Cristo!...
Que devo fazer? Eu vou...
Queres médico?
Valentina - Decerto.
Carvalho - Há doutor por aqui perto?
Corro a chamá-lo!
(Na ocasião em que toma o chapéu, Valentina ergue-se.)
Valentina - Passou.
Carvalho (Deixando o chapéu.) - Pois os médicos da corte
são bens bons; basta fazer
tenção de os chamar, pra ver
o doente livre da morte!
Valentina (Depois de alguns momentos, angustiada.)
- A provação foi atroz...
Foi cruel o sofrimento...
Porém, desde este momento
não há mais ente nós.
(Sai pela direita, segundo plano.)
Cena VIII
editarCarvalho, só
[Carvalho] (Depois de alguma pausa.)
- Se eu não fosse um covarde,
que bela ocasião para me por a andar...
(Pegando o chapéu,) Ainda não é tarde!
Nem um momento mais eu devo aqui ficar!
(Dispõe-se a sair, e para, olhando para a porta por onde entrou Valentina.)
Encerrou-se na alcova!
‘Stá soluçando a triste... o seu amor maldiz...
Oh! que eloqüente prova
de que ela me estremece e de que sou feliz!
(Colocando o chapéu sobre uma cadeira e o sobretudo nas costas da poltrona. Resoluto.)
Não! não sairei! Fico!...
Mas a colheita?... a safra? os filhos e a mulher?
Eu sou bastante rico
e posso demorar-me o tempo que quiser!
Fui sempre ótimo pai, fui ótimo marido:
é muito que um momento eu me esqueça de mim?
Hei de voltar melhor assim fortalecido...
Oh! maldito o momento em que a cidade vim!
(Pausa.) E se eu pilhado for coa boca na botija?
Não me posso entender!
Não sei para que lado os passos meu dirija!...
sou preso por ter cão e preso por não ter!
(Dirigindo-se à porta por onde saiu Valentina.)
Ela está mal comigo... as pazes fazer vamos...
Prometo dar-lhe a jóia; e, quando a vir, direi
que é muito cara... e tal... Depois nós combinamos!
E uma jóia barata então lhe comprarei...
(Ajoelha-se à porta.) Vamos lá... vamos lá... Meu anjo... Valentina...
dentre os soluços teus soluça o meu perdão
Não zangues-te, meu bem; não chores mais, menina...
Abre-me a porta, já... Vem cá, meu coração!
Cena IX
editarCarvalho e Valentina
(Valentina está pronta para sair. Tem os olhos vermelhos. Dirige-se à secretária e guarda em uma bolsa que traz na mão as notas de banco, que tira da gaveta sem que Carvalho veja.)
Carvalho - Menina, dos calcanhares
olha que não me levanto
nem mesmo a cacete, enquanto
teu perdão me não lançares!
(Valentina acaba de guardar o dinheiro e desce à cena, fingindo que chora, mas rindo-se à socapa. À parte.)
Coitadinha! que lamúria!
Valentina - Sei que não tenho o direito
de exigir nenhum respeito,
de perdoar uma injúria...
Vocês têm razão: enxerguem
na mulher que cai somente
a meretriz impudente,
que nem as lágrimas erguem.
Tem graça o perdão! De rastros,
sou eu que devo alcançá-lo!
(Ajoelha-se também. Ficam ajoelhados defronte um do outro.)
Sou perdida e quis amá-lo!
Sou lama: quis ir aos astros!
Carvalho - Um astro és! És minha lua,
és minha lua querida!
Valentina - Sua sombra, refletida
num charco imundo da rua,
serei...
(Ergue-se e vai sentar-se na poltrona.)
Meu pobre passado!
Tu onde estás? onde fostes?
- Dá licença que me encoste
ao seu capote? - Obrigado.
Eu tive a flor dos maridos...
Que quer? Não havia meio
de amá-lo! Um dia deixei-o.
deu um tiro nos ouvidos!
Como mariposa inquieta,
pousei aqui e ali...
Amar jamais consegui...
mas encontrei-te... poeta!...
(Vai arrebatadamente colocar-se outra vez de joelhos, defronte de Carvalho.)
Carvalho (Admirado.) - Poeta!...
Valentina - Poeta, repito!
A ti não parecia;
mas tinhas tanta poesia!...
Escuta: não és bonito...
já não és novo, sequer...
És calvo, tens nariz grande;
mas nisso mesmo se expande
meu coração de mulher.
Não sou vulgar... amo o horrível,
e és horrivelmente belo!
Ao teu carão amarelo
meu coração foi sensível...
Um instante me pareceu
- mas, ai de mim, me enganara -
que tu, com tão feia cara,
deverias ser só meu!
(Erguendo-se.) Sim, o velho mundo espante-se
e belas razões deduza:
seis contos você recusa
a tanto afeto! - Levante-se!
Carvalho (Erguendo-se.) - És um anjo!
Valentina - E você é...
Carvalho - Teu escravo!
Valentina - É um verdugo!
Entretanto, Victor Hugo
disse: Oh! n’insullez jamais...
Carvalho - Então? Estou perdoado?
Valentina - Estás, que tudo se esquece.
(Vendo que Carvalho limpa os olhos.)
Choraste?
Carvalho - Se te parece!
Falas como um advogado!
Onde é que as bichas se vendem?
Vou buscá-las.
Valentina (Mudando inteiramente de tom.) - Meu amigo,
o ouvires vem ter contigo
e dois cá se entendem.
Carvalho - Quem o manda?
Valentina - Eu.
Carvalho - Deveras?
Valentina - Eu fiquei de lá ir. (À parte.) Como
tenho de ir ao banco, tomo
um carro e vou lá. (Alto.) Esperas?
Carvalho - Espero.
Valentina (Beijando-o.) - Adeus.
Carvalho - Sedutora!
(Saída falsa de Valentina, pela esquerda, segundo plano.)
Se eu não puder arredar-me,
conto que hei de desforrar-me
pela colheita vindoura.
(Senta-se no sofá.)
Valentina (Voltando.) - Outra bicota. (Beija-o.) Mais duas!
A chama do amor me abrasa!
Ainda não saí de casa,
já tenho saudades tuas!
(Vai saindo e para.) Não queres ler um pouquinho?
Carvalho - Quero, sim.
Valentina - Olha, aqui tens...
(Dá-lhe o Mosquito e dirige-se para a porta da esquerda, segundo plano.)
Carvalho (Deitando-se.) - Enquanto tu vai e vens,
eu fico lendo o Mosquito.
[Cai o pano]