A mesma decoração
Cena I
editarCarvalho, só
[Carvalho] (Está ainda deitado no sofá; dorme e sonha alto, muito agitado. O Mosquito está caído a seus pés.)
- Ai! o que é isto? O que é?
Não me agarrem!... Não me puxem!...
Que mais querem!... Desembuchem!...
Não creias nisso, Qué-qué!
(Levanta-se do sofá e desperta, atônito.)
Hein? Que foi?... Ah! era um sonho
Um sonho... não há que ver...
Já me lembro: estava a ler
o Mosquito... Foi medonho
o pesadelo! Primeiro,
sonhei que havia chegado
à fazenda, e visitado
senzala, alpendre, chiqueiro,
horta, engenho, etcet’ra e tal.
Depois fui ter coa patroa...
Os sonhos são coisa à toa,
pois que não é natural
que eu, se à fazenda chegasse,
do que à madama, primeiro
senzala, alpendre, chiqueiro,
horta e pomar visitasse.
No momento justamente
em que os meus lábios se uniram
aos lábios dela, surgiram,
donde não sei, de repente,
mulheres assim... assim...
(Gestos indicando que eram muitas.)
Altas, baixas, magras, cheias;
belas umas e outras feias,
que se acercaram de mim!
Contei dez... mais dez... mais dez!
Saía uma por uma
do teto... do chão... Em suma,
a alma caiu-me aos pés!
Pr’agravar o pesadelo,
dessa tropa feminina
vinha à frente Valentina,
em desalinho o cabelo,
e às outras dizia assim:
“ - Segurem-me esse tratante!
Não sabem que é meu amante
e que se afastou de mim?...”
E as outras me carregavam!
Davam-me beijos... abraços...
Disputavam-me nos braços;
aos trambolhões me levavam!
“- Levem-no; tenho o direito
de disputar o seu amor,
pois amo-o... amo-o!...” Senhor!
que pesadelo! No leito
a Qué-qué se revolvia...
Teve mais um faniquito!
Dava gritos! Cada grito
que um surdo despertaria!
Nisto acordei; já de pé,
protestos inda fazia,
e à pobre Qué-qué dizia:
“- Não creias nisso...”
(Batem à porta da esquerda, segundo plano.)
Quem é?
O Joalheiro (Fora.) - Um criado de Vossa Senhoria
Carvalho (Consigo.) - É O Sujeito das bichas. (Alto.) Pode entrar.
Cena II
editarCarvalho, O Joalheiro
O Joalheiro - Com licença, senhor. Muito bom dia.
Carvalho - Bom dia. Faz favor de se sentar.
(Senta-se e indica-lhe uma cadeira.)
O Joalheiro - Estou a gosto.
Carvalho - Sente-se.
O Joalheiro (Sentando-se.) - Obrigado.
Carvalho (À parte.) - Olho vivo! Tem cara de judeu..
As bichas, o senhor....
O Joalheiro (Erguendo-se.) - Um seu criado...
Carvalho - ... é que vem...
O Joalheiro - Sim, senhor...
Carvalho - ... mostrar?
O Joalheiro - Sou eu.
Carvalho - Queira sentar-se. Faz favor de dar-mas?
O Joalheiro (Tirando a caixa do bolso e abrindo-a. Senta-se)
- Aqui as tem. Perdão! (Limpa-as mais uma vez.)
Carvalho (À parte.) - Vejam com o tratante apronta as armas!
(O Joalheiro entrega-lhe a jóia, que ele examina com atenção.)
O Joalheiro - São bonitos, não acha?
Carvalho - Acho que são;
mas também acho exorbitante o preço.
O Joalheiro - Exor... Meu caro, por amor de Deus!
que preço lhe disseram?
Carvalho - Seis!
O Joalheiro - Não desço
um real. Veja bem!
Carvalho (À parte.) - Estes judeus!
O Joalheiro (Erguendo-se.)
- Que me conste, até hoje aqui não houve
dois brilhantes assim!
Donos deles fazer-me aos céus aprouve;
porém... pobre de mim!
Muitos há que desejam possuí-los;
mas seu valor não dão...
E na vidraça os míseros tranqüilos
por muito tempo permanecerão!
(Pausa durante a qual Carvalho continua a examinar os brilhantes, mas com indiferença.)
Estes brilhantes tinham mais preço
em dois grandes anéis;
mas não nos quero separar. O preço
sãos seis contos de réis.
Se não achar de todo nesta terra
quem os queira comprar,
vou vendê-los à c’roa de Inglaterra
que os não há de enjeitar.
(Toma os brilhantes, coloca-os nas orelhas e passeia pela sala como uma senhora.)
Veja que belos são! De conta faça
que uma senhora sou:
Veja que alvura!... que ladrões sem jaça!
Carvalho - Por quatro contos dá-lo quer?
O Joalheiro - Não dou;
Carvalho - Então, amigo, não fazemos nada:
perde o seu tempo e perde o seu latim...
(À parte.) Se eu me livrar puder desta rascada,
hei de um terço rezar a São Joaquim,
meu glorioso patrono.
O Joalheiro (À parte, embrulhando a caixa.) - A sirigaita
disse-me que o velho dava-me os seis paus;
ela supõe que berimbau é gaita...
Não se lembra que os tempos vão tão maus...
Hei de sempre falar-lhe... talvez queira...
(Alto, guardando a jóia.)
Até mais ver, senhor.
Carvalho - Passasse bem!
O Joalheiro - A palavra já disse derradeira!
Não dá mais nada, não?
Carvalho - Nem mais um vintém.
(O Joalheiro cumprimenta e sai por onde entrou.)
Cena III
editarCarvalho, só
[Carvalho] - Seis contos! seis contos! Irribus!
É mesmo muito dinheiro!
Trabalho um semestre inteiro
para seis contos ganhar,
e devo sem mais preâmbulos
gastá-los com Valentina?
Sai muito cara a menina;
não devo continuar...
mas serei bastante enérgico
pra fugir desta voragem?
Bater a linda plumagem,
ir para junto dos meus?
Lembrar-me dos meus negócios?
dos meus compromissos tantos?
de Valentina aos encantos
dizer pra sempre adeus?...
Seis contos! São seis apólices
pra garantir o futuro:
de cinco por cento ao juro
hão de trezentos render!
No fim de quinze anos, chega-se,
com juros acumulados,
a ter dez contos guardados
para o que der e vier.
Seis contos! compra-se um prédio,
que se aluga a dez por cento!
E, afinal, num bom momento
dez contos por ele dão!
Cinco bons escravos mandam-se
vir do Norte de encomenda,
que, a trabalhar na fazenda,
vinte por cento darão!
Eu bem sei que a jóia, cáspite!
por seis contos não ‘stá cara;
é de uma beleza rara:
o homem no preço está.
Of’reci-lhe uma miséria,
e muito acertadamente;
por quatro contos somente
jóias dessas ninguém dá.
(Senta-se na poltrona junto da secretária e fica a meditar com a cabeça entre as mãos e os cotovelos fincados nas coxas. Aparecem à porta da esquerda, segundo plano, Valentina e O Joalheiro, que não são pressentidos por Joaquim Carvalho.)
Cena IV
editarCarvalho, Valentina, O Joalheiro
Valentina (A meia voz.) - Ele ali está!... Psiu... sentido!
Vá pra sala de jantar...
(Encaminha-o na ponta dos pés, para a porta da esquerda, primeiro plano.)
Queira um instantinho esperar,
enquanto a questão decido.
O Joalheiro (A meia voz.) - Senhora, se acha isso caro...
Não tento... Tentar não vim...
Valentina (No mesmo tom.) - Entre e espere. É já. (O Joalheiro desaparece.)
Enfim!
(Logo que O Joalheiro desaparece, Valentina machuca o chapéu e desmancha um pouco o penteado.)
É preciso este preparo...
(Desde à cena fingindo estar desesperada, e falando em voz muito alta.)
Desaforo! Não se atura
Tamanha pouca vergonha!
Carvalho (Arrancado de súbito de sua meditação.)
- Valha-me Deus! vem medonha.
Valentina (Passeando de um lado para o outro.)
- Fiz uma bela figura!
Cena V
editarCarvalho, Valentina
Carvalho (À parte.) - Ele já sabe de tudo...
Temo-la travada!
Valentina (Na mesma agitação, senta-se na poltrona e amarrota e rasga o lenço.)
- Inferno!
Carvalho (À parte.) - Está tão zangada,
que incontinente me mudo...
(Pega no chapéu e dispõe-se a sair sorrateiramente.)
Valentina (Levantando-se rapidamente.) - Faça favor!...
Carvalho - Valentina...
Valentina (Imperiosamente.) - Venha cá!
Carvalho (Aproximando-se timidamente.) - Cá estou
Valentina - Aqui!
Como o senhor nunca vi
homem tão tolo e sovina!
Vá-se embora, se quiser,
nem mais um segundo tarde!
Mas saiba que é de um covarde
maltratar uma mulher!
Pois se é tão pobre o senhor,
que meia dúzia de contos
não tem na carteira prontos,
e deles possa dispor,
por que razão prometeu
dar-me uma jóia?...
Carvalho - Eu te digo...
Valentina (Passeando agitada.) - Supu-lo tão meu amigo...
Carvalho (Acompanhando-a.) - E eu não sou amigo teu?
Valentina - Encontrei ali na esquina
O Joalheiro! Se ouvisse
as coisas que ele me disse!
Carvalho (No mesmo.) - Mas ouve cá, Valentina...
Valentina - Julga o senhor por acaso
que eu não tenho quem me dê
seis... vinte contos?! não vê!
Sou eu que não faço caso
de muitos banqueiros que andam
a fazer-me roda!... Ontem
(deixá-los que desapontem:
não recebo o que me mandam!)
um lá da Rua Direita
que fez fortuna a galope,
mandou-me num envelope
um conto! Fiz-lhe a desfeita
de não querer: devolvi-lho!
Carvalho - Ele não te conhecia?
Valentina - Não senhor.
Carvalho - Foi covardia:
maltratou-te! Ai, que se o pilho!
Valentina - Covardia foi a sua!
Uma covardia enorme!
Carvalho - Mas ouve, afinal!
Valentina - Expor-me
ao ridículo na rua!
Escute, senhor... Seu nome?
Sempre me esquece!...
Carvalho - Carvalho
Pra evitar este trabalho,
aqui tem um cartão. (Dando-lhe.) Tome.
Valentina - Escute: se o senhor fosse
um pobretão, um mendigo;
se não trouxesse consigo
os contos de réis que trouxe,
o mesmo afeto lhe tinha,
a mesma atenção lhe dava,
o mesmo agrado mostrava,
o mesmo gosto mantinha!
Mas o senhor está bem...
Antes o não estivesse...
Carvalho (À parte.) - Esta agora! se eu soubesse
não tinha gasto vintém...
Valentina - Em minha casa que paga
julga o senhor, porventura,
a amizade santa e pura
desta infeliz que o afaga?
Pois saiba que o seu dinheiro,
se o gasta, não é comigo!
Carvalho - Pois eu não gasto contigo?
Valentina - Não, senhor. Ouça primeiro
e depois fale à vontade.
(Fazendo-o sentar-se à força na poltrona.)
Sente-se... Vamos! convenha...
Acha provável que tenha
mais doce comodidade
em qualquer outra poltrona?
Carvalho - Não acho, não, certamente
que este cômodo excelente
nenhuma outra proporciona.
Valentina - Bem! agora venha cá.
(Fá-lo erguer-se da poltrona e deitar-se no sofá.)
Deite-se... deite-se! Assim!
Carvalho (Deitado.) - Mas que queres tu de mim?
Valentina - Que tal acha este sofá?
Diga... Diga!
Carvalho - É uma obra prima!
É o melhor sofá do mundo!
A gente vai para o fundo
e depois volta pra cima!
Hoje - não te digo nada -
fiz uma bela soneca!
Valentina - Levante um pouco a careca,
e chegue mais a almofada.
Carvalho (Depois de obedecer.) - Estou no sétimo céu!
Valentina - Pois bem: venha ver o oitavo!
Erga-se! siga-me!
(Leva-o à porta da direita alta.)
Carvalho (Olhando para dentro.) - Bravo
Que belo sobrecéu!
que cortinado bonito!
Valentina - E a cama?
Carvalho - A cama conheço...
Valentina - Que tal?
Carvalho - Um traste de preço,
de um gosto muito esquisito
pouco mais alta que o chão...
Valentina - É moda agora...
Carvalho - Sei... sim...
A gente, se faz assim,
bate nas esteira coa mão
Minha cama na fazenda
é deste tamanho...
Valentina - É alta!
Carvalho - Ninguém para cima salta
sem que a dar um pulo aprenda!
Por causa disto a madama
viu-se muito embaraçada:
muito depois de casada,
não se deitava na cama,
sem subir por uma escada!
Hoje pula como um gato!
Valentina (Apontando sempre para o quarto.)
- Veja que lindo tapete!
que magnífica toalete!
que guarda-roupa!
Carvalho - É exato.
Valentina - Peanhas, estatuetas,
ondinas de biscuit!
(Percorrendo a cena e mostrando a sala, trazendo Carvalho pela mão.)
Veja: nada falta aqui!
Chinoiseries, bocetas,
e reposteiros de rendas!
Espelhos, lindas gravuras
em suntuosas molduras!
Carvalho - Sim, tens aqui muitas prendas.
Valentina (Descendo à cena.) - Muito dinheiro enterrado
está aqui!
Carvalho - Tens gosto. Toca!
Valentina (À Parte.) - Na Rua da Carioca
tem sido tudo comprado...
Carvalho - O que te digo é que há trastes
que com o dono parecem!
Teus olhos tudo merecem;
que importa que tudo gastes?
Valentina (Aproximando uma cadeira.)
- Meu caro, agora expliquemo-nos.
Os cobres que me tem dado
emprego... tenho empregado
em tudo isto...
Carvalho - Sei.
Valentina - Sentemo-nos.
Carvalho - Sim... tanto se paga em pé
como sentado. (Senta-se.)
Valentina - O senhor
não traz o meu puro amor
dentro do porte-monnaie
Paga poltrona macia,
leito fofo e perfumado,
suntuoso cortinado,
custosa tapeçaria.
Os carinhos de uma amante
com beijos se restituem:
eles nãos se retribuem
com sujo metal sonante.
Este rifão acertado
sempre na memória traga:
amor com amor se paga...
Carvalho - É muito velho o ditado
porém não menos o é
o que diziam meus tios...
Valentina - Qual é?
Carvalho - Dois sacos vazios
não se podem ter de pé.
E há mais outro...
Valentina - Ouça primeiro:
o senhor gosta do luxo;
pois bem: agüente o repuxo,
uma vez que tem dinheiro.
Eu, para estar de harmonia
com o luxo que vejo em roda
de mim, devo andar à moda,
ter preciosa pedraria.
Quer que lhe tenha paixão,
sem que lhe custe brilhantes?
Vivamos quais dois amantes
dos tempos que já lá vão.
Pr’algum romance ou comédia
terão assunto depois!
Carvalho! sejamos dois
amantes da Idade Média!
Lá, numa ilha deserta,
longe da vista mundana,
vivamos numa choupana
de verdes folhas coberta!
Deixa tudo quanto tens,
esposa, filha, fortuna!
Nada disso se coaduna
coa vida que viver vens.
Sim ou não? Responde, enfim! (Erguendo-se.)
Mas nos teus olhos eu leio
a hesitação, o receio...
É que só me amas assim!
Se por acaso me visses
magra, suja, maltrapilha...
Carvalho (Levantando-se.) - Onde, meu Deus?...
Valentina - Na tal ilha...
... duvido que tu sentisses
a caridade vulgar,
sequer, por esta a quem hoje
o dinheiro foge, foge,
porque quer decente andar.
Se me amas porque sou bela,
mais bela faze-me ainda:
verás como fico linda
com os tais brilhantes!
Carvalho (À parte.) - Cautela!
(Conduz Valentina para o sofá e sentam-se.)
Agora atenção me presta?
Pois não me interrompa, e ouça!
Arre! que nunca vi moça
mais exaltada que esta!
Eu quero dar-te as tais bichas:
tomo o céu por testemunha!
Mas tomas o pião à unha
e desejas que haja rixas
onde amor só deve haver!
- É um refinado tratante,
(acredita!) o meliante
que as tais bichas quer vender.
Conheço aquele menino!
e juro, por Quem nos ouve,
que até esta data, não houve
quem me enganasse... sou fino.
Valentina - Muito fino! És um portento!
Carvalho - As bichas são muito belas;
mas ele pede por elas
mais cinqüenta por cento
do que deve! O maganão
quer roubar duma assentada
dois contos! Que vá pra estrada,
de bacamarte na mão!
Já fiz ver ao tal sujeito:
por quatro coas bichas fico.
E não abro mais o bico
a semelhante respeito.
(Ergue-se e passeia pela sala, com as mãos nas costas. Pausa.)
Valentina (À parte.) - Que idéia! (Levanta-se. Alto.)
Bem pouco entendo
de jóias.
Carvalho - Entendo eu!
Por isso o preço ao judeu
fui logo, logo dizendo.
Valentina - Não sei se estás a iludir-me;
se as bichas valem somente
o preço que dás...
Carvalho - Ó gente!
Outro ouvires que o confirme!
(À parte.) Se ela indaga, estou perdido!
Valentina - Pode bem ser que não queiras
dar-me os seis contos e...
Carvalho - Asneiras!
Não quero é ser iludido!
Faze-me mais um discurso!
vem-me com outras cantigas!...
mas olha que não me obrigas
a fazer figura de urso!
Valentina - Não queres gastar, mau, feio!
Tens um meio extraordinário
para provar-me o contrário.
Carvalho - Vamos lá ver esse meio.
Valentina - Vou falar já com o ouvires,
se o valor a jóia tem
que dás, ele cede...
Carvalho - Bem!
Valentina - Mas, para que não te prives
do gosto de me of’recer
os seis contos por inteiro...
Carvalho (À parte.) - Aí! que aí volta o pampeiro!
(Alto.) Mais eu não posso entender...
Valentina (Afagando-o.) - Não te contrario: assim
bem mostro que te idolatro:
se a jóia compras por quatro
dar-me-ás os dois para mim.
Carvalho (À parte.) - Ai, ela agora filou-me!
Valentina (Largando-o.) - Hesitas? Eu logo vi!
Carvalho (Titubeando.) - É que... tu sabes... mas... se...
(À parte.) ‘Stou arranjado! apanhou-me!
Valentina - Senhor, supus...
Carvalho - Não te excites;
eu vou buscar o dinheiro...
manda chamar O Joalheiro. (Tomando o chapéu.)
Mas ouve, e não te arrebites:
se ele der por quatro, é tua
e tens mais dois. Se não der
por isso, não hás de ter
nem jóia nem... (Sinal de dinheiro.)
Valentina - Anda! Rua!
(Carvalho sai.)
Cena VI
editarValentina, depois O Joalheiro
Valentina (Dirigindo-se à porta por onde saiu Carvalho.)
- Tu queres fazer-te de esperto...
Oh! mais esperta sou eu!
O Joalheiro (Pondo a cabeça fora da porta.)
- Entrar já posso?
Valentina - Decerto.
O Joalheiro (Descendo à cena.) - Tolo! chamar-me de judeu
e tratante! Eu tudo ouvi
por trás daquela cortina!
Valentina -Viu que o maldito sovina
diz que não valem...
O Joalheiro - Vi... vi....
Quem lhe dera que valesse
tanto quanto os meus brilhantes!
Mas olhem que estes amantes...
Valentina - Todos eles são como esse!
Já homens eu não descubro.
Ora, imagine que há meses,
e isso se dá muitas vezes,
em que as despesas não cubro!
O Joalheiro - Também me queixo um bocado,
pois o negócio vai mal,
tudo o que vendo é fiado
e não recebo um real!
Mas vamos; em que ficamos?
Olhe: tentá-la não quero...
Valentina - Uma idéia tenho; espero
que há de aprová-la.
O Joalheiro - Vejamos...
Valentina - Disse ele que, se comprar
por quatro contos a jóia,
dá-me dois contos, e foi à
casa o dinheiro buscar.
O Joalheiro - Sei tudo e não peço bis,
graças àquela cortina.
Saiba, Dona Valentina,
que é uma primorosa atriz!
Sei o que quer: que lhe entregue
a jóia por quatro agora,
para receber da senhora
os outros dois: pois sossegue:
estou por tudo, na ‘sp’rança
de que os seis contos receba.
Valentina - Mas ele que não conceba
a menor desconfiança!
O Joalheiro - E os dois contos? Onde estão?
Valentina - Dar-lho-ei quando os tiver.
O Joalheiro - Como assim?
Valentina - Quando mos der
o fazendeiro.
O Joalheiro - Isso não!
Valentina - Dúvida de mim?
O Joalheiro - De tudo!
Ai, minha rica senhora,
não me dizia inda agora
que este tempo anda bicudo?
Desculpe... que quer? Sou franco...
Valentina - ‘Stá bem. ‘Stá bem! Não insisto:
é justo. (Tirando papéis do bolso.)
Sabe o que é isto?
O Joalheiro - Olé! São cheques do banco!
Valentina - Que horas tem?
O Joalheiro (Vendo o relógio.) - É meia hora.
Valentina - Pois vou buscar o dinheiro.
Quando vier o fazendeiro...
O Joalheiro - Vá descansada a senhora:
julguei que só mo daria
quando lho desse O Sujeito.
Há de encontrar tudo feito,
quando voltar coa quantia.
Valentina (Pondo o chapéu.)
- Posso fazer um bom gancho...
O Joalheiro - Quatro contos arrecada;
mas se está contrariada,
todo o negócio desmancho:
não tento...
Valentina - Espere-o. Adeus (Sai.)
O Joalheiro - Vá descansada.
Cena VII
editarO Joalheiro, só
[O Joalheiro] - É barato;
mas o lucro imediato
é bem bom, graças a deus!
Daqui a dez dias talvez
a jóia não seja dela:
por cinco me há de vendê-la;
por sete a vendo outra vez.
(Desembrulha a caixa da jóia, que tira da algibeira, abre-a, e contempla-a com ar compassivo.)
Alvos brilhantes, peregrina jóia,
vou brevemente me ausentar de vós!
De vendedor não julgueis ser tramóia
este elogio que vos teço a sós!
Ninguém nos ouve nem nos vê; portanto
não é suspeito o cândido louvor.
Sinto nos olhos da saudade o pranto,
sinto no peito a languidez do amor!
Durante o tempo em que tu foste minha,
prenda formosa, prenda sem rival,
todos os dias à minh’alma vinha
lástima prévia... Adivinhava o mal!
Adivinhava enfeitarias breve
o corpo impuro que te apeteceu;
foi rara jóia de valor que teve
melhor destino que o destino teu.
Ai, se eu te visse envelhecida, gasta...
toda arranhada... não fazia mal...
Mas nas orelhas de uma esposa casta...
prenda formosa, prenda sem rival!
Cena VIII
editarO Joalheiro, Carvalho
Carvalho (Entrando.) - Ora viva! (À parte.) Ele por cá!
É mau sinal... (Vendo a jóia.)
E os brilhantes...
O Joalheiro - ‘Stava aqui há alguns instantes
a sua espera.
Carvalho - Onde está
Valentina?
O Joalheiro - Saiu; tinha
algumas voltas que dar.
Carvalho - E o senhor vem cá buscar
o quê?
O Joalheiro - Eu lhe digo... eu vinha...
Carvalho - Para que voltou aqui?
O Joalheiro - Saiba Vossa Senhoria...
Carvalho - Uma ridicularia
pela jóia ofereci.
Não quer decerto vendê-la
por quatro contos...
O Joalheiro - A instâncias
das minhas circunstâncias,
sou obrigado a cedê-la. (Dando-lhe a jóia.)
Aqui tem. Tudo isto é seu.
De não vendê-la com medo
a qualquer outro, é que a cedo
pelo que me ofereceu.
Carvalho (Sem aceitar a jóia.)
- O quê? Pois por quatro contos
quer ma ceder?... Vale seis!
O Joalheiro - De quatro contos de réis
nós precisamos de pronto.
Se inda agora não cedi,
foi porque tinha contado
com eles por outro lado..
É sua jóia: ei-la aqui! (Entrega-lha.)
É pechincha! Mas... que quer?
Tenho uma letra a vencer-se... (Vendo o relógio.)
E não me dá que converse
vinte minutos sequer.
Carvalho - Se Valentina tivesse
dinheiro acaso, diria
que entre o senhor e ela havia
combinação.
O Joalheiro (A meia voz.) - Mas, se houvesse,
eu, muito em particular,
Tudo diria.
Carvalho - Acredito
(À parte.) Outro remédio - bonito -
não tenho senão pagar!
O Joalheiro - Veja que esplêndidos são!
Veja que são opulentos!
Carvalho (deita a caixa da jóia sobre o sofá, tira do bolso a carteira e dá notas do banco aO Joalheiro.)
- Oito notas de quinhentos!
O Joalheiro (Depois de conferir e guardar o dinheiro.)
- Da nossa casa o cartão
aqui tem.
Carvalho - Faça favor...
Traz estampilha?
O Joalheiro - Sim, trago...
Carvalho (Apontando para a secretária.)
- Diga-me ali que está pago.
O Joalheiro - Pois não; é pouco trabalho.
(Senta-se à secretária, toma papel e pena.)
Seu nome? - Que bom papel!
Carvalho - O Tenente-coronel
Joaquim dos Santos Carvalho.
(O Joalheiro escreve. Á porta da esquerda, segundo plano, aparece João de Sousa.)
Cena IX
editarO Joalheiro, escrevendo, Carvalho, O Joalheiro, João de Sousa
Carvalho (Admirado, vendo Sousa.) - Ó compadre João de Sousa!
Sousa (Também admirado.) - Ó compadre!
(Correm um para o outro e abraçam-se com efusão.)
O Joalheiro (Parando de escrever, consigo.) - Me enternecem!
(Aproximando-se dos dois, que novamente se abraçam em silêncio.)
- Uma vez que se conhecem,
mandem vir alguma coisa.
[Cai o pano]