Não pude ver o que se passou desde que entramos no gabinete do armênio até o fim da operação mágica; referirei porém o que o meu amigo Reis me contou com inteira verdade e profunda admiração.
Cumpre-me declarar que o meu amigo insiste em não acreditar na magia; confessando porem não poder explicar e menos negar os prodígios de que foi pela segunda vez testemunha.
O Reis jurou culto e fé às ciências físicas e fanático por elas não quer ver o maravilhoso e o sobrenatural que lhe está entrando pelos olhos, nem sentir o que está tocando os seus sentidos.
Todavia leal e nobre, o meu amigo referiu-me quanto viu e que vou repetir, e apelo para o seu testemunho que é insuspeito por ser testemunho de incrédulo.
O armênio que nos conduziu ao seu gabinete, trajava vestido de púrpura com tiara e braceletes de ouro; trazia no dedo competente anel de ouro com um rubim, e na cabeça barrete ainda de púrpura com o pentagrama bordado de prata.
A porta do gabinete magico abriu-se em par a um simples aceno da mão direita do armênio
O interior do gabinete estava resplendente de luz, e todo ornado das mesmas figuras e símbolos da cabala, que na primeira operação magica se observaram; as cores porém eram outras e diferentes; as paredes estavam pintadas de vermelho vivo, tendo em cor de ouro as vinte e duas chaves do Tarot, e os sinais dos sete planetas; o teto era azul como o céu no dia mais sereno, tendo no centro a figura do pentagrama fulgurando, como se fosse fogo, como se tivera tomado de empréstimo o brilho do sol mais ardente.
A mesa que servia de altar da magia mostrava-se coberta com um imenso pano branco, alvíssimo, tendo figuras cabalísticas sem numero bordadas em ouro. O chão era tapizado de peles de leão, que conservavam o aspecto exterior das cabeças dessas feras, e cujos olhos flamejavam abertos.
Os instrumentos da magia, os símbolos que enchiam o altar e o gabinete eram ainda os mesmos, a vara mágica porém tinha terminando-lhe a ponta um quase imperceptível triângulo de ouro.
Coroas de louro e de heliotrópio ornavam o altar, no qual a figura sinistra do diabo fora substituída por uma pomba, em cujo peito aberto entrava uma serpente que lhe mordia e devorava o coração.
Nós tínhamos penetrado no gabinete, e o mágico se sentara e se concentrara.
Um galo cantou seguidamente três vezes.
O armênio levantou-se e bradou: "Uriel! Zadklel! Gehudiel!... Oriphiel! . . . "
E na parede sobre o altar esses quatro nomes surgiram em caracteres de fogo, como as palavras proféticas no festim de Baltazar. O mágico tomou em suas mãos a lâmpada mágica que estava já ardente, e levou-a, dando três passos para o lado do Ocidente, e depois depositou-a outra vez no altar; mas no ângulo ocidental dele.
Em seguida firmou no meio do altar sem esforço nem artifício apreciável um finíssimo tubo de vidro azul de palmo e meio de altura e de diâmetro igual em toda sua extensão, tendo à meia polegada da extremidade inferior um orifício em que a custo entraria um fio de seda, e na extremidade superior um triângulo de ouro perfurado, e apenas perceptível.
Sobre esse triângulo o armênio colocou o vidro côncavo destinado à luneta: o equilíbrio, a firmeza do tubo de vidro sobre o altar, do vidro sobre o triângulo não tinha explicação aceitável; mas era real.
O galo cantou de novo três vezes.
O mágico estendeu o braço para tomar a vara mágica: mas ouvindo o piar de uma coruja, empunhou a espada e manejou-a no espaço, exclamando: "Zadklel! Zalriel! Oriphiel!" .
O piar da coruja cessou, o galo repetiu seu canto, e o armênio atirou longe de si a espada, do cuja ponta saiu uma flama que foi embeber-se no pentagrama que radiava no teto.
Tomando então a vara magica o armênio mergulhou o triângulo em que ela terminava a sua ponta na flama da lâmpada e dela tirou e levou um fio de fogo até o orifício do tubo de vidro azul.
O tubo acendeu-se, ou pareceu acender-se todo. O mágico lançou imediatamente sobre a flama da lâmpada cinamomo, incenso, açafrão, e sândalo rubro, e o fumo perfumado foi sair pela extremidade superior do tubo de vidro, envolvendo em ondas aromáticas o vidro côncavo que descansava sobre o triângulo de ouro.
Pela terceira vez o galo cantou três vezes, e não se ouviu piar de coruja.
O armênio radiante e ufanoso levantou o braço e firmou a vara mágica uma polegada acima do vidro côncavo, e do triângulo do vidro azul em fogo.
Um minuto depois uma faisca cor de sangue negro saiu do fogo do vidro azul e pregou-se no triângulo da vara mágica; mas o armênio sacudiu três vezes a vara, dizendo: gnomo! para os vulcões!
E a faisca apagou-se.
Dois minutos depois outra faisca amarela desmaiada, rompendo do vidro azul foi tocar no triângulo de ouro da vara mágica; mas o armênio bradou: ondina! para o seio das fontes e para o fundo dos mares!
E a faisca logo se apagou, como a primeira.
Três minutos depois terceira faisca, e essa cor de sangue negro surgiu do mesmo ponto e pareceu querer embeber-se na áurea extremidade da vara mágica; o armênio porém bradou: salamandra! para o fogo do inferno!
E a faisca se apagou e o solo e a casa estremeceram debaixo de nossos pés.
E no fim de quatro minutos ainda uma faisca brilhante se desprendeu do vidro azul, e começou a embeber-se no ângulo em que terminava em ponta o triângulo da vara mágica.
— Quaternário! exclamou o armênio; absorve-te, e depois liquefaz-te, silfo, e liquefeito, te exagera no bem!
E a faisca pouco a pouco se foi embebendo na fina ponta da vara mágica, que ainda ficou imóvel e firme sobre o vidro côncavo...
Passou um minuto, e caiu da ponta da vara mágica uma gota d'água semelhante a uma lágrima no vidro côncavo, que a observou.
E a pomba que tinha o peito aberto exalou um gemido.
Passaram dois minutos, e caiu da ponta da vara mágica outra gota dágua, outra lágrima, que também se embebeu no vidro côncavo, e a pomba cujo peito estava aberto, e o coração era mordido pela serpente gemeu duas vezes.
Passaram três minutos e terceira gota d'água, terceira lágrima caiu da ponta da vara mágica, e foi embeber-se no vidro côncavo, e a pomba que mostrava o peito aberto e a serpente a morder-lhe e a devorar-lhe o coração, gemeu três vezes.
— Ternário! exclamou o armênio e abaixou a vara mágica.
O gabinete que parecera arder em incêndio de repente passou a mostrar-se em suave luz de crepúsculo da tarde.
O armênio retirou da extremidade do vidro azul, cujo fogo se apagara, o vidro côncavo, lavou-o com água perfumada que derramou da taça mágica, enxugou-o com o pano que forrava o altar, armou-o em um finíssimo aro de prata, imprimiu neste o selo cabalístico, e enlaçou no anel da luneta um fio de cabelo loiro, que engrossou subitamente, tomando a forma e proporções de um trancelim de ouro.
Logo depois o armênio pronunciou uma palavra cabalística, cujo sentido só ele compreendeu, e por breves momentos a luz se apagou e reinou a escuridão.
Ouvimos um grito: — retorno!...
O grito pareceu-nos vir de fora e de longe, e logo duas janelas se abriram no gabinete, e o raiar suave da aurora, e o despontar do dia deu-nos a claridade duvidosa e romanesca que precede ao esplendor do sol.
O gabinete mágico desaparecera por encanto: achamo-nos o Reis e eu diante do armênio em um quarto modesto, de paredes brancas e nuas, contando apenas em seu interior uma rude mesa, uma cadeira, e um leito humilde.
— Sou o pobre que dá tesouros, disse o armênio.
E entregando-me a luneta, continuou:
— Dou-te pela segunda vez uma luneta mágica: veras por ela quanto desejares ver; veras muito; mas poderás ver demais. Criança! dou-te um presente, que te pode ser funesto; ouve-me com atenção: não fixes esta luneta em objeto algum, e sobretudo em homem algum, em mulher alguma por mais de três minutos; três é o numero simbólico e para ti será, como na outra, o numero simples, o da visão da superfície, e das aparências: não a fixes por mais de três minutos sobre o mesmo objeto; porque além de três minutos, hás de ter a visão do bem, que o meu poder de mágico não te pode impedir, pois a visão do bem será a vingança do silfo que escravizei para teu serviço.
— Eu te obedecerei! respondi.
— Hoje mesmo me desobedecerás, tornou o armênio com voz lúgubre.
— Não! Juro que não!
— Vê-lo-ás, tornou ele, e prosseguiu: terás a visão do bem e hás de ser por ela infeliz; veras demais no presente, e poderias ler no futuro, fixando-a por mais de treze minutos sobre o mesmo
objeto; eu tenho porem piedade de ti, e te proíbo ainda a vidência do futuro: Cashiel! Schaltiel! Aphiel! Zarabiel! eu impeço a vidência do futuro a este mancebo, e esta luneta quebrar-se-á em suas mãos antes do décimo quarto minuto de fixidade.
E mal acabou de falar, o armênio deitou-se no seu leito, fechou os olhos, e imediatamente dormiu.