Todas as tardes, ao fim do jantar dos hóspedes, o Alfredo Galvão chegava, magro, nem alto, nem baixo, com o seu pequeno bigode ralo numa face um pouco inexpressiva, embora simpática, mas como esbatida por hábitos de timidez, e em que só olhos brilhavam, grandes, castanhos, de uma doçura quase feminina. Tinha vinte e seis anos e já mostrava uns princípios de calvície desguarnecendo-lhe a testa abaulada e lisa.
Entrava, cumprimentando cortesmente todos os hóspedes, ia sentar-se atrás da cadeira da mãe, que comia lentamente o seu doce de ameixas pretas ou a sua fatia de goiabada, e logo a velha indagava, voltando-se meio, com a boca cheia:
— Jantaste bem, meu filho?
— Muito bem. Admiravelmente!
— A Joana serviu-te com cuidado?
— Nada me faltou.
— Ela tem limpado a casa? Deu alpiste ao canário? engomou? Teus colarinhos ficaram lustrosos?
— A Joana tem sido perfeita, minha mãe. A casa está como se a senhora a dirigisse...
Mas D. Adozinda gritava do seu lugar:
— Uma canequinha de café, doutor?...
Apesar de não ter direito ao título, o Galvão não desgostava do engano; e, corando um pouco, aceitava o café, que bebia devagar, com o olhar preso ao perfil de Celina, entrevisto mais longe, entre as cabeças dos outros hóspedes, e cujos cabelos muito negros e abundantes se destacavam num penteado harmonioso e complicado, em que se enrolavam fitas.
Encontravam-se depois à porta do jardim findo o jantar, e o Galvão sentia uma pena imensa de não poder acompanhá-la nos giros entre os maciços cheirosos, os roseirais floridos, colhendo jasmins, respirando ao seu lado a deliciosa fragrância das plantas regadas de fresco, todo o soberbo horizonte da cidade a se fundir lá em baixo com os matizes violáceos do crepúsculo.
Era uma tentação quase irresistível que lhe espicaçava a alma tímida — essa de ir no sulco de vestidinho claro de Celina, que ele via errar com mimosa falena sob a amendoeira, sob o grande pé do manacá em flor, sumindo-se entre as folhagens daqui, dali, reaparecendo, tornando a esconder se, no meio desses homens que fumavam e riam conversando com ela. E se a brasa de um charuto brilhava mais isolada na sombra crescente, junto à brancura dessas saias que a sua vista não perdia, era uma crispação em todo o seu ser que lançava para a frente, zeloso, febril, inquieto.
A voz de D. Margarida o chamava, porém de dentro da sala abrigada contra o sereno noturno, onde ela se instalava a um canto, bem agasalhada, olhando o vulto esguio do filho destacar-se à porta. E que podia ele fazer? Vinha visitar a mãe e não lhe ficava bem deixá-la só para ir passear no jardim, por mais vivos que fossem os seus desejo de liberdade.
Atirava fora, portanto, o cigarro, para vi. sentar-se junto à cadeira materna, nesse salãozinho trivial em que branquejava cruamente um enxame de panos de crochet lançados sobre a usura dos móveis; e um frouxo diálogo se travava entre a mãe pensativa, examinando furtivamente o filho, e o rapaz distraído, cujos dedos magros se esqueciam, nervosos, a alisar o estofo escuro das calças, numa impaciência.
Acendiam enfim o lustre e alguns hóspedes entravam para ler os jornais da tarde; as duas velhas do tempo da D. Eufrásia acomodavam-se muito direitinhas no sofá, sorrindo imbecilmente para todos; Silva, o Tomé e o Coronel Juvenato desapareciam; ouvia-se a voz forte de D. Adozinha dando ordens na sala de jantar, entre um tinir de louças e talheres, e, cerrada a escuridão crepuscular, voltavam do jardim as três meninas — Celina, já moça feita, Julieta, quase da mesma altura, porém menos graciosa, Olga, ainda criança, travessa, gárrula — e era como uma súbita claridade a derramar-se pela vetustez sombria desses móveis vulgares, dessa sala impessoal.
Com todo o perfume dos manacás e jasmins nas roupas e nos cabelos, Celina vinha oferecer alguma rosa polpuda e úmida do sereno a D. Margarida, que a aceitava com frieza; mas o olhar de Alfredo bebia avidamente a frescura da flor entre os dedinhos morenos e encontrava depois o raio luminoso das pupilas da moça, filtrando sonsamente por entre as pestanas baixas, o que lhe dava o choque de uma perturbação imensa, indizível. Ficava como tonto, fascinado, a dar estalinhos com as juntas dos dedos, sem saber mesmo o que fazia; e afinal pegava no chapéu, fugia, a despeito das insistências da mãe, que protestava, ofendida, contra a insólita retirada do rapaz.
Durante todo o percurso do elétrico, suspenso nos ares à passagem sobre os arcos do aqueduto, mas sem um olhar de curiosidade ou um arrepio de vertigem provocados pela perspectiva dessas luzes desenhando em baixo a sinuosidade das ruas, Alfredo encolhia-se, absorto, fumando nervosamente, a remoer esse sentimento de amor que lhe inspirara a Celina. Que esquisitice! Sempre fora um moço pacato, sem impulsos fortes, habituado a obedecer à mãe, aos costumes, da casa e aos deveres da repartição onde trabalhava, muito escravo da rotina e finalmente feliz nesse calmo torpor da sua vida. Eis contudo que essa moreninha pálida, um pouco zombeteira, o fora pouco a pouco interessando e em suma empolgando, mas todo, todo, corpo e alma, sem remédio, só com a arte de um sorriso sonso, que ele quisera a princípio decifrar e que o perdera, e esse olhar morno e dúbio, dardejado por entre a sombra de uns cílios espessos, cuja expressão o entontecia. Que significava esse olhar? Nem ele mesmo o sabia.
Era talvez uma provocação... Era com maior certeza uma ingenuidade... Ela, enfim, parecia tão pura e virginal ao lado dessa mãe suspeita, ainda moça e exuberante!... Oh! essa mãe, ainda por cima dona de um hotel de segunda ordem!... Como confessar à sua própria progenitora, tão distinta e austera, cheia de preconceitos, viúva de um homem de bem, que fora diretor de uma secretaria, que ele, Alfredo, seu último filho, alimentava o desejo ardente de casar-se com a filha de uma D. Adozinda Ferreira, a quem emprestavam amantes vários?!...
Sim, mas era a língua pérfida do mundo que o dizia, sem base, sem fundamento... Quem é que tinha inventado essa calúnia com um riso feroz de despeitado, quando ele contara que a mãe andava a convalescer em Santa-Teresa? Ora, o Custódio, um idiota! que afinal se queixara de não haver sido bem tratado pela viúva, quando seu hóspede uns tempos. Da Celina, porém, nem uma palavra! E porque não a aceitaria D. Margarida coma filha, ensinando-lhe as maneiras e os preceitos de uma família de outra classe, formando-a à sua própria imagem, corrigida aliás pela graça risonha da mocidade, que rejeita tristezas exageradas? Ele, em resumo, já estava na idade de manifestar livremente o seu desejo de constituir um ninho próprio — embora morando todos na mesma casa. Mas queria ter a sua mulherzinha, o seu quarto de casados, a ventura das noites amorosas, o encanto dessa convivência íntima, segura e doce, sempre e sempre, dia a dia, até a morte...
E, mais excitado por estas idéias, o Alfredo jogava longe o cigarro aceso, cujo fogo lampejava um segundo no espaço escuro, e movia-se, inquieto, no banco do elétrico, o olhar febril, batendo o pé, até que chegavam à estação da Carioca e ele descia com precipitação e corria a esconder-se na casa silenciosa, para melhor acariciar os seus projetos e as suas esperanças. Não, não lutaria mais: estava decidido!... Havia de casar com a Celina...
Mais de três semanas tinham assim passado e D. Margarida, que farejava instintivamente algum desgosto, insistia em se declarar já boa e forte para tornar à casa, embora a debilidade se lhe traísse ainda na palidez excessiva, quando Alfredo apareceu de repente no hotel, antes do jantar.
Era um claro dia primaveril com um céu todo azul, sem nuvens, cantos de cigarras, aromas de flores evolando-se do jardim; e D. Margarida lia um jornal em sua cadeira de balanço, junto, à janela aberta, no momento em que o filho entrou e veio, muito descorado, pedir-lhe a benção com a mão visivelmente a tremer.
Acostumada à regularidade da hora da visita diária, a velha logo se assustou. Que sucedera? Novidades em casa? Ele faltara à repartição? Seus olhos o mediam todo inquietos...
— Não, minha mãe, não, não!... E outra coisa... Saí mais cedo da secretaria, eis aí, e de propósito, para chegar aqui a esta hora, em que a senhora está sempre só no seu quarto. Eu queria...
E o Galvão parou, gaguejante, como a sentir um embrulho na língua, fitando D. Margarida com um sorriso que pretendia ser expressivo, eloqüente, persuasivo, terno, e era apenas alvar, verdadeiramente imbecil.
O peito da camisa arfava-lhe, como se ele abafasse.
— Senta-te, disse a viúva, com um fulgor de desconfiança nas pupilas penetrantes, e retoma f lego, que estás ofegando... Vieste então a correr?
— Vim... Subi quatro a quatro os degraus da escadaria...
— Mas por que tanta pressa?
— Porque... porque eu queira falar-lhe, minha mãe! Escute, não se zangue comigo, sim? Oh! não se zangue...
E, fechando a meio os olhos, curvado sobre os joelhos da velha, a prender maquinalmente entre dois dedos um pouco do estofo de lã preta da saia de D. Margarida, que se pôs a torcer e destorcer com um gesto nervoso, o Alfredo lançou a sua confissão como quem se atira a um abismo.
Era a coragem dos tímidos, que de súbito arriscam tudo numa impetuosa cartada. E a velha mãe recebeu a explosão sem interrompê-lo, mais lívida apenas, mais rígida, com um leve tremor na face, que se cavava. Ele, entretanto, dizia tudo: o seu amor, a princípio hesitante e gradualmente violento, as suas lutas íntimas, o medo de desagradar a uma mãe excelente, verdadeira santa, que o seu coração adorava, os seus escrúpulos de perturbar a paz feliz dessa existência a dois, numa casa sagrada pela memória dos entes perdidos. Mas...
— Mas, atalhou D. Margarida, com uma secura irônica, a filha de D. Adozinda Ferreira venceu tudo isso... É uma extraordinária criatura!... Que repentino poder!...
— Oh! minha mãe! por que fala assim de uma pobre menina, que não é responsável pelo meio em que o acaso a fez nascer?
E Alfredo concentrou-se, meio ressentido. Houve um silêncio. O perfume das rosas entrou mais intenso pela janela toda aberta à maravilhosa tarde, e os olhos da velha se arrasaram repentinamente d'água, como contemplando a dolorosa visão dos cinco filhos mortos, que ela ainda chorava. Só lhe ficara esse caçula, seu último amor, sua única razão de existir — e também esse pensava em a deixar, não obstante vivo... Ah! que crueldade reserva a sorte às velhas mães viúvas, que não têm mais ninguém para as amar!...
Animado, porém, pela sensibilidade traída dessas lágrimas, cuja causa adivinhava, Alfredo ousou lançar-se nos braços maternos que, se o não estreitaram, também não o repeliram. O rapaz murmurava, de olhos igualmente úmidos:
— Nós moraremos sempre juntos, minha mãe, e você ganhará uma filha, em vez de perder seu filho! Ela é tão nova ainda, que o seu exemplo há de corrigi-la de quaisquer defeitos adquiridos na companhia da D. Adozinda, que evitaremos aos poucos, com tato. Diga: não é verdade que consente em fazer o seu Alfredo feliz? Bem sabe que, sem a sua licença, eu jamais me casarei...
Mais branda, a viúva continuou, entretanto, a insistir em considerações poderosas. Ele só conhecia superficialmente a Celina: que certeza podia ter de encontrar a harmonia e a felicidade numa união contraída em meio tão diferente do seu pela educação e os hábitos, e ignorando afinal a verdadeira natureza dessa menina refolhada, bonitinha, mas enigmática?
Alfredo sorriu, já esperançado, porque a mãe consentia em discutir:
— E que certeza, disse, posso também ter de ser infeliz, minha mãe, para reprimir o meu amor? Tudo na vida é um acaso. Contentemo-nos com as probabilidades — e estas são a meu favor. Adoro essa criança e julgo-a pura, boa, inocente. Que provas há em contrário?
A velha ainda refletiu longo tempo, aos suspiros aflitos, enquanto o rapaz esperava, ansioso.
Que fazer? pensava a mãe : o filho já tinha mais de 26 anos e era capaz de desobedecer-lhe, se ela negasse terminantemente o seu consentimento... Mas também, aceitar essa nora que feria todos os seus orgulhos?! Ceder! Transigir?... Santo Deus! maldita fosse a hora em que subira a semelhante hotel... Antes a tivessem deixado morrer! E a entrevista eternizava-se sem solução, quando retiniu a sineta do jantar...
Uma voz alegre e juvenil gritou do corredor por D. Margarida e o Alfredo ergueu-se, de chofre, muito branco e trêmulo, como arrastado para a porta, pousando em D. Margarida um olhar implorativo, que pouco a pouco se fazia rancoroso. Então a velha não lutou mais; sentiu que a paixão nesse momento lhe arrebataria o filho se ela lhe servisse de inabalável estorvo; e triste, abatida, um véu de pranto a obscurecer-lhe a vista, estendeu a Alfredo a mão enrugada e balbuciou a custo, quase baixinho:
— Podes pedir a Celina... Consinto...
E o jantar foi triunfal. Consultada alguns minutos antes, a exuberante dona do hotel respondeu imediatamente sim! entre gargalhadas sonoras, mandado logo colher flores para guarnecer a mesa dos noivos. Quem tal diria, hein?... Não havia como as sonsas para levarem com jeito e segredo os seus namoros. Essa Celina!... Um pouco corada, de olhos baixos, a mocinha abandonava a ponta dos dedos ao noivo, que usava já dos seus direitos para apertá-los constantemente com um fervor convulso de neófito. E só três figuras destoavam entre as fisionomias imbecilmente satisfeitas dos convivas desse jantar de núpcias improvisado, em que abriram duas garrafas de detestável champagne, para regar os doces: a de D. Margarida, severa e contristada, a de Gilberto, pálido como um morto, e a do Coronel Juvenato, que a cada instante envolvia a recente noiva num olhar furtivo de lubricidade desapontada, furiosa. E recusou o champagne, com as banhas da face trêmulas, declarando que tinha de ouvir missa na manhã seguinte e não queria indispor o estômago com essa beberagem falsificada.
— Primeiro a religião! bradou, irado, envesgando a vista para a atitude arrulhante dos noivos.
— Decerto, coronel! apoiou com força D. Adozinda; antes de tudo a religião e conservar a saúde para bem servir a Deus. Vamos beber à saúde do coronel... Viva!...
— A sua, coronel!...
Todos beberam.