Cinco anos mais tarde, D. Adozinda Ferreira cosia nessa mesma sala de jantar do hotel: Aos belos ares! um pouco mais estragado pelo tempo, de rebocos desprendidos, deixando ver as cicatrizes das paredes, mas sempre risonho, graças à luxuriosa vegetação que o engalanava entre a moldura dos morros verdes e do céu azul. Amendoeira em flor, os espinheiros como polvilhados de cheirosa neve, a sombria ameixeira, os densos jasmineiros estrelados de branco, fazendo vergar os suportes de estacas, os roseirais floridos, os manacás recendentes, as dálias, as begônias, as sanguíneas palmas de Santa Rita, as rosinhas brancas pendendo do decrépito alpendre, revestiam a velha casa de um régio prestígio. E aí costurava sempre D. Adozinda, agora mais acabada e de pince-nez acavalado no nariz mais grosso, os olhos vivos um pouco empapuçados, mas ainda ativa e robusta, de braços gordos sempre à mostra entre as mangas curtas da camisola solta.
A pensão decaíra bastante, com a partida do Coronel Juvenato, logo meses depois do casamento da Celina, obtida nas Câmaras a concessão de uma estrada de ferro no Ceará, que o tornara podre de rico. Falavam ainda que seria deputado. E a viúva o vira partir com explosões de uma tristeza ruidosa, que encobria um arrependimento sutil e calado dessa brusca união da filha com o Galvão, um pascácio, afinal! muito menos remediado do que o supunham todos e com o inconveniente, de resto, de viver agarrado às saias de uma mãe insuportável — união, em suma, que tinha arredado do hotel a pequena, claramente simpática ao coronel, e que talvez houvesse servido de obstáculo à sua prejudicial retirada. Prejudicial, sim, que homens como o Coronel Juvenato, de bolsa farta, não se encontram muitos nestes tempos de penúria disfarçada... E com ele se fora também o Gilberto, mais mofino, macambúzio, e, de repente, agora único herdeiro desse tio que dantes o sustentava no Rio, fulminado por uma embolia em Belo Horizonte... Ah! se as criaturas pudessem prever o futuro, quanta asneira de menos!... Felizmente que... Mas uns passos, que ressoaram familiarmente na direção da sala de jantar, interromperam por esse dia as considerações íntimas de D. Adozinda, que eram sempre essas, girando em torno de uma idéia única, guardada cautelosamente nos recessos obscuros da sua alma e só discutida no silêncio das absorções solitárias. E a viúva ergueu a vista por cima das lentes do pince-nez para ver quem chegava. Rangeu mais a areia do jardim, farfalharam saias e assomou Celina, afogueada pelo sol das três horas da tarde e seguida de uma criada carregando um menino de dois anos, atabafado em capas, que lhe adormecera pesadamente sobre o ombro.
D. Adozinda largou devagar a costura, dizendo com secura:
— Olá! que milagre é este? Vou ver o santo da folhinha...
E, sem se levantar, tirando o pince-nez, estendeu frouxamente a mão à filha, que explicou tomando o menino dos braços da ama-seca e acomodando-o no próprio regaço, o motivo da sua inopinada presença:
— Mamãe nem imagina! O Raul está com febre há quase uma semana e o médico exigiu que o fizéssemos mudar de ares, incontinenti. Então, eu vim correndo com ele para cá, enquanto o Alfredo ficou com a Lucília. Esta é a hora do acesso e olhe como ele está quente e arquejando, coitadinho!...
Mostrava, já sentada o rostozinho febril da criança, que arfava, sonolenta, de olhos semicerrados, muito lânguidos; mas a viúva insistiu, rancorosa:
— Só assim virias a minha casa sem sentinela à vista... Parece que isto aqui é um foco de emboscadas; mas sempre presto para alguma coisa, em casos de doença...
E casquinou uma risadinha irônica, azeda.
— Oh! Mamãe, não fale assim!... dizia Celina; que culpa eu tenho?... — E circunvagando o olhar:
— Mas onde está Julieta?
— Ora, na rua! respondeu asperamente D. Adozinda. Pois onde há ela de estar? Não pára mais aqui, vive em passeios com as filhas da D. Laurinha... É Rua do Ouvidor,é a Avenida,é toda a parte, menos a casa...
— E Olga?
— Ainda não voltou do Instituto de Música: Hoje é dia de aula... E o professor Carlos de Carvalho está contentíssimo com a voz dela: diz que é um contralto raro, admirável... também mandei agora afinar o piano para ela estudar. Está cantando uma ária que chamam do Profeta,em que há a história de uma mãe, imagina, com um filho — e Olga é a mãe! Que graça! Ah, mas a propósito — e a viúva fez uma pausa intencional — a Julieta te viu há dias na rua com Alfredo e contou... que estavas muito mal vestida. Que é isso?...
Celina encolheu os ombros, despeitada:
— Não é nada... Gentes! cada qual se veste como pode. Mamãe sabe que minha sogra, além da casa em que moramos, só tem o montepio que lhe deixou o marido. E Alfredo ganha pequeno ordenado. De mais, as crianças têm andado ultimamente sempre doentinhas...
— Pudera! aquele ar pestilento da rua das Marrecas!
— Fomos, portanto, obrigados a extraordinários de médicos e botica...
— Mas também teu marido não deve trazer-te vestida como uma criada, rompeu D. Adozinda. Ele te encontrou limpinha e à moda... Então é assim? É boa! Mas ai, misericórdia! que acordei o pequeno!
Ao rumor das vozes, o menino agitava-se, inquieto, abrindo os olhinhos vermelhos de febre, choramingando; e Celina curvou-se sobre ele, com um longo suspiro:
— Dorme, meu bem, dorme! mamãe está aqui...
E séria, uma sombra afinando-lhe a face morena, mais anêmica só os olhos grandes e negros fulgindo mais profundos nas órbitas um pouco cavadas pelo cansaço das noites de vigília com o filhinho, a moça deixou-se ficar um instante assim vergada sobre o corpinho febril, a embalá-lo, com o olhar errante sobre os cílios descidos. Quantas lembranças alegres presas a essa banal sala de jantar, cuja moldura de flores lhe corrigia a trivialidade! A roseira Marechal Niel ainda enfiava os galhos pela janela... O canário trinava sempre sobre o peitoril carcomido, e ao centro da vasta mesa recoberta de um pano às listas encarnadas e azuis, a mesma fruteira de vidro, de que emergia uma tulipa com rosas e folhagens, exibia laranjas e bananas, exatamente como dantes, quando ela era solteira e risonha... A mesma luz de um sol refulgente se alargava por todo o morro de Santa-Teresa e sentia-se a volúpia da vida no azul do ar, no aroma das flores, nos gorgeios do canário, apesar de recluso... Só ela vivia triste, abatida — e por que?
D. Adozinda, fitando-a com os olhos espertos ia seguindo o curso dessas idéias melancólicas, até que Celina deixou fugir alto o pensamento, numa involuntária distensão de nervos. Não, deveras, a vida não lhe corria leve nem jovial... Ah! não! Era uma monotonia, um isolamento! O Alfredo parecia uma máquina: levantava-se, deitava-se, comia, palitava os dentes, saía, voltava, com uma regularidade de pêndula. E nunca tinha dinheiro para um passeio, um teatro, uma coisa imprevista, nada! Os dias arrastavam--se, sempre iguais, pesados, lentos; e ainda por cima a sogra a mandar, a dirigir, a prender e ensinar, como senhora de tudo...
— Ah! mamãe, você se queixa... Se soubesse, entretanto, que saudades tenho daqui, da nossa antiga existência!... Se não venho mais vezes, é que não me deixam...
D. Adozinda soltou uma das suas gargalhadas sonoras:
— Creio bem! isto por cá sempre é outra coisa... Há rapazes, a gente conversa, ri, leva uma vida folgada... A quem o dizes?! Mas olha quem aí vem... Parece mesmo uma rosa de maio, Nossa Senhora!...
Era a Olga que chegava do Instituto com a sua pasta de músicas, uma transparência de entremeios de renda sobre o seio redondinho e petulante, os braços nus e roliços, como os da mãe, dentro das mangas curtas do vestido branco, e todo um viço veludoso de flor na canta azougada, de faces vermelhas. Ao ver a irmã com o filhinho, atirou-se, gritando:
— Oh! Celina com o Raul!... Que novidade! E foi ajoelhar-se diante da criança, que entreabriu as pálpebras pesadas para encarar essa visão de mocidade e frescura.
A Julieta não tardou, mais compassada, com uns vinte anos pouco graciosos, mas vestida pelo último figurino, um longo casaco justo sobre a saia serpentina, grande chapéu com cerejas, luvas, uma bolsinha de prata — e dando apertos de mão sacudidos.
Celina envolveu-a toda num olhar irritado e não demorou a sua queixa:
— Foste então dizer a mamãe que me tinhas visto passar na rua muito mal vestida?
A outra encrespou-se:
— Pois então, se é a verdade? Palavra que até senti vergonha... Senti, Celina! Estavas com um vestido indecente de velho... Nem sei onde arranjaste aquela antiguidade! Onde a descobriste, anda lá, dize...
Celina ergueu-se com o menino nos braços, acalentando-o, para que ele não chorasse, mas furiosa, a dardejar à irmã olhares enviezados de raiva:
— Nem todas as mulheres, gaguejou, buscando ferir, nem todas têm quem lhes forneça toilettes como essa tua, que nunca te vi... Curvou-se um tanto, fingindo uma reverência irônica: — Meus parabéns!...
Sem se zangar, porém, antes baixando um olhar de triunfo sobre o vestido que lhe valia piadas tão ácidas, Julieta respondeu, a rir-se:
— Podes tê-los iguais, minha cara, se quiseres...
Voltou-se depois para D. Adozinda, que guardava as costuras para ir preparar o quarto do doentinho:
— Mamãe já lhe deu a grande notícia?...
Sorrindo maliciosamente, a viúva murmurou que não, porque as boas novas se guardam sempre para o fim... Pois não era mesmo?...
E Celina, enleada, pôs-se a interrogar a fisionomia das três, que faziam sinais de inteligência, fitando-a.
— Mas que notícia é, gentes? Desembuchem... Digam de uma vez...
Olga entrou a pular pela sala:
— Adivinhe! Adivinhe!...
— Ora que maçada! não adivinho!... Não posso...
— É uma chegada! adiantou Julieta.
— É um redivivo! ajuntou Olga.
Celina alargou o olhar curioso:
— Uma chegada?... mas quem chegou!... Não atino, palavra!
Então D. Adozinda caminhou para ela com o cesto das costuras na mão, balouçando os seus quadris fartos e pesados de mulher madura. Brilhavam-lhe os olhos.
— Não procures mais, menina, eu te digo... São dois amigos velhos que voltam. Um já está aqui e jantará hoje conosco: é o Coronel Juvenato, tu te lembras dele? abarrotado agora de dinheiro, mas que não esqueceu o velho hotel de Santa-Teresa, ao tomar ao Rio. Ah! não se encontram, deveras, muitos amigos dedicados como este!...
— E o segundo, mamãe?...
A voz de Celina tremia um pouco.
— O segundo?...
E a viúva, Julieta e Olga desataram numa risada zombeteira, examinando Celina, que esperava com certa apreensão.
— É... é... Ora, vê lá se adivinhas o nome... rematou enfim D. Adozinda, derreada de tanto rir.
Mas Celina, irritada com todos esses mistérios, deu de ombros, impaciente, e Olga então explicou:
— É o Gilberto, cabeça dura! o Gilberto, que chega de Minas amanhã, pelo noturno; mas um outro Gilberto, enriquecido pela morte do tio solteirão e que vem divertir-se e gozar à Capital...
Celina corara, apertando o filho contra o seio; e, de súbito, volvendo o olhar para o chapéu e os agasalhos esparsos sobre a mesa, declarou numa imensa perturbação:
— Vou-me embora, então! Não posso ficar...Vou, vou já... Faustina, toma o menino!...
— Estás doida! gritou D. Adozinda, furiosa, prendendo-a pelo vestido, enquanto as irmãs protestavam. Mas é toleima! Quem mais se lembra do passado?... Já se viu coisa igual?!
E acumulava razões para impedir essa retirada, com uma voz ansiosa que se fazia persuasiva. Ela era agora uma senhora casada e, mesmo no caso de acudir ao Gilberto a veleidade de algum namoro, certamente que o rapaz escolheria uma das duas irmãs solteiras.
— Eu! bradou Olga, esboçando um passo de valsa.
— Eu! contestou Julieta, mais séria.
E Celina desferiu sobre ambas um raio enigmático da sua pupila negra, de repente faiscante.
— És uma egoísta, decidiu a mãe; e teu filho? Sacrificas então a criança doente às tuas imaginações? Deixa lá, filha: águas passadas não movem moinhos. O Gilberto, rico e feliz, nem pensa mais em ti, podes acreditar...
Celina teve um risinho abstrato, de olhos desviados; os lábios se lhe moveram, como se falasse baixinho; e enfim, com um brusco gesto de desafio, resumiu:
— Pois seja! Fico... Mamãe me diga qual é o meu quarto, que estou cansada e preciso deitar o Raul...