Esses dias da ausência de Celina pareceram lúgubres a Alfredo, conquanto a filhinha os amenizasse com as travessuras, as perrices, o grulhar cessante, mais vivo quando o pai voltava da repartição e se lhe entregava todo, na sua ternura dócil de ente fraco e submisso.

"Queres ir à janela? queres a tua boneca de cabelos loiros? Pede ao teu papai, meu amor , que ele te dará tudo o que desejares..."

E beijava-lhe a cabecita de cabelos negros, como a da mãe, e esquecia-se a mirar-lhe os olhos negros, um pouco oblíquos, já fugitivos, como também os da mãe.

D. Margarida, melancólica, dizia-lhe às vezes, vendo-o tão excessivo na sua afeição paterna, como na conjugal, tão feminino, tão molemente dengueiro:

— Filho, filho! olha que idolatrias não servem...

— Oh! minha mãe, deixe! é para que ela não sinta a falta de Celina...

— Falta, sentes tu, não ela, que as crianças, são por natureza ingratas. E que notícias tiveste hoje do Raul?...

— Melhores, felizmente... O acesso ainda ontem não veio e ele já pediu alimento. Eu pretendo amanhã, domingo, aparecer por lá com a Lucília e, se achar o menino em condições de descer, trago-os a todos...

— Deves esperar mais alguns dias, Alfredo, que essas febres intermitentes são rebeldes. Tem paciência...

Mas, ele não tinha justamente paciência para viver sem Celina; e mostrou-se nessa noite tão desconsolado e murcho, sentado à sala de jantar, alumiada por um único bico de gás ninando a filha que lhe adormecera nos braços, que D. Margarida não disfarçou mais certa tosse sintomática de mau humor e disse-lhe com uma rispidez ciosa que tantas tristezas até lhe eram ofensivas, a ela, como mãe, reduzida a um zero, que nem para encher o curto prazo do afastamento de Celina servia nessa casa, tantos anos habitada por eles dois sozinhos — e nada infelizes, então!

— Pois tenhas a certeza, meu filho, que o amor de uma esposa ainda se substitui, mas o amor da mãe, nunca!

Suspirando, Alfredo combatia essas desconfianças... Não era isso! não era isso! A mãe é que não gostava da Celina...

— Não gosto da Celina! Esta agora! — e a velha saltou na cadeira, com ira — Dize antes que ela é que nunca se afeiçoou à sogra, à minha carranca taciturna, que não sou afinal para alegrias, quando os meus todos me morreram. Tenho-lhe feito sempre bem, aturo sem comentários a sua indolência, os seus ares aborrecidos, como se tudo aqui lhe cheirasse mal — mas o que não posso, disso ela perca a esperança, é imitar as gargalhadas e os modos desenvoltos da tal D. Adozinda, em Santa-Teresa... Que eu não sou mulher de hotel!...

Alfredo fazia-se pálido e vermelho; duas vezes quis interromper a mãe e não ousou; curvando-se, enfim, sobre a filhinha, beijou-a muito nas facezitas quentes do sono e murmurou, erguendo-se, devagar com ela nos braços, como se carregasse um fardo precioso e delicado:

— E se eu lhe confessar, minha mãe, que é exatamente a idéia de minha mulher em contato sozinha com a desenvoltura de minha sogra e de minhas cunhadas, que me torna assim sombrio?

A velha esfregou lentamente as mãos e fez:

— Ah!...

Nunca supusera esse filho de vontade débil, tão escravo da esposa, capaz de raciocinar com este senso moral, tranqüilo e calmo. Veio-lhe um arrependimento de havê-lo tratado com uma autoridade hostil, tão áspera; e também, a olhá-lo assim de pé, a face como gasta, a fronte mais calva, sinais de usura orgânica nas pregas da boca pálida e doce, uma piedade varou-lhe a alma materna, enchendo-a toda de um generoso desejo de não amofiná-lo, de esforçar-se para que ele não sofresse e vivesse feliz com a sua Celina. Foi lançar-lhe os braços ao pescoço, envolvendo a ele e à neta no mesmo abraço comovido; e, baixinho, os seus lábios trêmulos balbuciaram, fingindo sorrir:

— Perdoa à tua velha mãe ciumenta, sim? E vai amanhã ver a Celina, vai... Dá-lhe muitas lembranças minhas...

Ele, com efeito foi, levando pela mão a Lucília, vestida pela avó com a sua toilette branca dos domingos, uma faixa cor-de-rosa em torno da cintura e os pezinhos calçados de sapatos brancos. Sob o chapéu de folhos de renda cabelinhos negros destacavam, brilhando ao sol; e a pequenita caminhava com uma faceirice já de mulher, mirando muito a sua pulseirinha de coral com fecho de ouro.

— Que bonitinha! diziam as mulheres do povo, na rua. E Alfredo ria-se, com orgulho, todo o peito dilatado de prazer.

O rosto, porém se lhe anuviou logo ao chegar ao primeiro lance do jardim da sogra, encontrando a mulher em tête-à-tête com um rapaz, junto ao gradil, e conversando animadamente com ele, a mordicar pétalas de uma rosa que tinha ao seio. Não reconheceu a princípio o rapaz, mas Celina, que se fizera escarlate ao avistar o marido, o apresentou depressa, atabalhoadamente, com uma febrilidade disfarçada sob os beijos muito cantados que entrou a pespegar na filhinha.

— Então o Alfredo não se lembrava mais? Era o Gilberto — hoje Dr. Gilberto Lemos, não esquecessem!...Advogado em Belo Horizonte e vindo a passeio ao Rio... .A sua voz assumira uma ênfase cômica.

— Dr. Gilberto, eis o Alfredo, meu marido!...

Os dois homens cumprimentaram-se reservadamente e Alfredo quis ver sem demora o filho, que andava pela horta com a Faustina. Nem mais parecia o mesmo! o que a criança lucrara com esses ares puros! até já lhe viera uma corzinha às faces, ia dizendo Celina, acompanhando o marido e achando-o macambúzio. Era um domingo quente, de sol; os insetos zumbiam sobre as flores de um colorido intenso, begônias cor de sangue, fúcsias de púrpura, pendentes dos galhos como rubis pesados, palmas de Santa Rita direitas e rúbidas, grandes rosas folhudas e vermelhas, toda a gama ardente do encarnado entre a alvinitência radiosa dos jasmins e dos lírios: e manchas de luz dançavam sobre o vestido claro de Celina, no percurso sob a transparência das folhagens das aléias, cuja areia rebrilhava como ouro.

— Acho-te triste! resumiu Celina, um pouco inquieta.

— Saudades! respondeu Alfredo, laconicamente.

Mas tiveram de parar, porque ali vinha o grupo todo da família em exclamações ruidosas: D. Adozinda com um peignoir roxo-claro, que adejava como um pavilhão ao vento; as meninas muito faceiras em vestidos vaporosos e a criada dos Galvões com o pequeno Raul ao colo.

— Olá! seja bem vindo! gritava a viúva ao genro, sempre retraído... Quis então fazer uma surpresa, hein?... Pensou que as cartas mentiam e o menino ainda estava doente, como veio... Pois olhe a transformação! Nem febre, nem impertinências... Está outro, está forte!...

Alfredo, que beijava o filhinho, encantado, bebendo-lhe o sorriso meigo, esquecera um pouco a impressão da chegada; mas, ao corresponder a um cumprimento da Olga, viu Celina ao lado de Julieta, que lhe ciciava um segredo — e então, virado para a sogra, com Raul nos braços, não hesitou mais:

— As melhoras são tantas, que nem se discutem, disse com firmeza; o meu filho está bom, pode se afirmar... E eu fico muito grato aos ares da sua casa, D. Adozinda. O resto, agora, é uma questão de cuidados. Passearei mais com ele...

A viúva fez um gesto de espanto e contrariedade:

— Mas não vai levá-lo tão cedo?...

Alfredo sorriu:

— Hoje mesmo... Vim justamente buscar o pessoal...

— Oh! não é possível! Seria uma imprudência!

O rancho todo apertava-se agora contra o Alfredo, mais magro e insignificante entre a exuberância plástica da sogra e os modos decididos de Julieta e Olga, que olhavam com ironia para esse cunhado sem brilho e sem fortuna, que se dava ao luxo de querer seqüestrar a esposa; e os protestos insistentes choviam sobre ele como granizos sobre um débil arbusto que verga mas não quebra.

Não, era impossível! tinham mesmo de descer com o menino... A mãe sentia já a solidão da casa da rua das Marrecas, muito triste, sem Celina e o pequeno — e, de resto, não havia mais razão para esse apartamento anormal dele e da mulher. A Faustina que fosse arrumar as roupas, a fim de partirem antes do cair da tarde, mais frio...

No entanto Celina, de olhar desviado, tinha uma contração raivosa no rosto moreno e não se pôde conter: protestou também contra tamanha pressa.

Estavam ali tão bem e o Raul se fortalecia tanto! Na sua voz vibrou uma estridência de contrariedade mal sopitada, que as irmãs gozavam, rindo entre si — principalmente a Olga, cuja insistência fora mais frouxa do que a da mãe, muito irritada contra a teimosia do genro. Alfredo, porém, não cedeu, dirigindo ele mesmo os preparativos que Celina fazia a contragosto, baralhando roupas com uma fúria concentrada nos gestos sacudidos, bruscos; e quando lhe escapou, a ela, esta frase rancorosa: "Lá vamos outra vez para a tapera!..." a resposta do marido foi muito triste e doce, mas terminante:

— É o teu lugar!...

Desceram sem se falar, Celina trombuda, ele solícito nos pequenos cuidados, às quatro horas da tarde, sob a poeira luminosa desse lindo domingo de sol refulgente: e toda a família Ferreira e alguns hóspedes ficaram a acenar de cima do jardim com os lenços, até o elétrico desaparecer na curva da estrada.

Então D. Adozinda voltou-se para Gilberto, que lhe ficara ao pé, e rompeu, com os olhos fuzilantes de cólera:

— Que me diz a isso? Lá se foi a pobre menina para o sepulcro, a aturar a coruja da sogra e o moleirão do marido, e o cheiro a refogado da cozinha entaipada, e as tristezas de cada dia!... Jesus! a gente comete mesmo cada asneira na vida!...

Deu uma rabanada com o amplo roupão engomado e lá partiu pelo jardim, como um furacão fazendo tremer as plantas inocentes desfolhando com um piparote uma bela rosa, toda ufana, que se balouçava à ponta de um galho de roseira atravancando o caminho — e enfim penetrou na casa, gloriosa, apesar de velha, sob as trepadeiras que revestiam opulentamente de uma verdura triunfal os seus muros carcomidos.

Gilberto, agora já homem, tendo deitado corpo, só conservando do antigo estudante pobre e o fino os grandes olhos negros de árabe, em que se acendia uma autoridade nova, ficara silencioso, contemplando a maravilhosa paisagem do morro inundado de sol: e não viu aproximar-se Olga redondinha e vermelha, que lhe murmurou com uma impudência maliciosa:

— Muito tristezinho, hein?...Compreende-se.. .On revient toujours à ses premie're amours... Mas não haverá alguém que possa consolá-lo?... Olhava-o bem nos olhos, provocantemente, bamboleando os lindos quadris salientes. E ele, com uma rápida tremura nas asas do nariz, fazendo-se corado, envolveu-a toda numa chama de desejo e respondeu baixinho:

— Se há!... Quer experimentar?...

Ela não recusou, nem consentiu; cerrou a meio as pálpebras, sorrindo, e fugiu pelas aléias luminosas, cantando alto um trecho de ópera com o seu contralto magnífico, enquanto o sol a perseguia com umas borboletas de ouro que se lhe iam pousando nos vestidos, nos cabelos, mais vivas, mais apagadas, à proporção que ela entrava em zonas de luz ou em zonas de sombra.

Lá dentro do hotel, o Coronel Juvenato chamara com um discreto "psiu!" D. Adozinda, da porta do seu quarto, prudentemente aberta só a meio. E ela veio logo, com uma humildade nova na face, qual majestade decaída, que se sente sem mais forças nem prestígio para a conquista do áureo país da riqueza e fartura.

— Então a senhora deixou a Celina partir? disse-lhe o Coronel em tom zangado, assoprando as banhas amarelas da papeira.

Ela encolheu os ombros, dominando o despeito:

— Que podia eu fazer, Coronel?

— A senhora devia ter insistido mais com o lorpa do seu genro.

— Insisti... Fiz tudo...

O Coronel bufou duas vezes, alargando o colarinho, os olhinhos piscos mais biliosos; replicou, depois, espetando o dedo para a viúva:

— Olhe...

Mas deteve-se, como arrependido do que ia dizer e rugindo entre dentes: "Nada! nada!" virou as costas e bateu a porta sem cerimônia, encolerizado.

D. Adozinda foi voltando lentamente pelo corredor, a assoar-se com estrondo e mágoa, parafusando na sua vida e nos caprichos alheios. De repente, como se resumisse tudo quanto lhe ia na alma em uma exclamação veemente berrou, de punho cerrado, ameaçando o espaço:

— Diabos!...

E correu a fechar-se arrebatadamente no próprio quarto — leoa exasperada que já não achava presa para os apetites ainda vivazes...