As luas de mel têm muitas feições: umas são ardentes como se as aquecessem os rubros raios de um sol de verão; outras são regeladas, como se os primeiros beijos saturassem as bocas novamente unidas da frialdade de um desapontamento; algumas, finalmente, são mornas, sem destaque, sem fúrias amorosas nem tristezas desenganadas — trecho anormal, um tanto perturbador, mas que depressa desliza no hábito tranqüilo e agradável sem agitações nem arroubos exagerados.

A lua de mel de Alfredo Galvão e Celina Ferreira fora assim morna, despida das explosões de volúpia que determina a posse de uma mulher muito desejada. Fora uma lua morigerada, decente, digna mesmo de um desempregado público muito rotineiro e sossegado, a quem assustam as violências da paixão no casamento e que respeita o sono da sua mamãe no quarto ao lado da alcova conjugal.

Logo na noite das núpcias, ao chegar à casa das Marrecas com o marido e a sogra, Celina sentiu-se como envolvida num manto de fria decepção, encontrando o novo ninho às escuras, sem flores acolhedoras, a sala de visitas fechada, a Joana vindo abrir-lhes a cancela toda estremunhada de sono, esfregando os olhos, sem .uma palavra de parabéns e boas vindas.

— Aqui fica o seu aposento! — disse laconicamente D. Margarida, fitando no filho olhos dolorosos.

E ela se viu numa câmara desconhecida, a que já tinham trazido as suas roupas, os seus pequenos objetos pessoais de solteira, mas que lhe pareceu hostil pela falta de rosas, de claros laços de coisas vaporosas — essas nonadas festivas, alegrando o ambiente, que aguardam sempre as noivas, entre o cálido cheiro a novo dos móveis e as brancuras rendadas do grande leito emocional.

Alfredo tremia de desejo, enlaçando-lhe o corpinho airoso, que trocara os véus cândidos por um vestido de passeio; essa ternura, porém, era nervosa e desazada, dissimulando mal uma ternura inexperiente sob impetuosidades excessivas. Os abraços dele eram a cada passo interrompidos por um olhar de esguelha, assestado para certa porta fechada que aparecia perto do toucador, em frente à cama: e, nesses minutos, a paixão denunciada por tantos arroubos como que se encolhia medrosamente, fazia-se muda, para que a mãe, da outra banda, não lhe surpreendesse as veemências.

Então Celina, constrangida também, e observadora, porque a sua carne de anêmica não vibrava, deixando-lhe a calma no refolhamento, maldisse essa velha, cujo domínio não lhe entregava completamente o marido novo e amoroso, nem a essa hora misteriosa das iniciações. Ela, afinal, casara, por casar, para ser independente, aparecer às amigas no papel invejado de senhora casada e sentir um apoio nessa vida que lhe era incerta e não lhe sorria ao orgulho, entre as promiscuidades do hotel um pouco boêmio da mãe.

O Alfredo, de resto, não lhe desagradava com as suas maneiras atenciosas, as falas meigas, os grandes olhos pregados sempre com um fervor beático no seu rosto, como se lhe estudasse as feições. Em noiva, gostava mesmo do contato macio da sua mão fina de burocrata, apertando-lhe os dedos por baixo da mesa, ao jantar; e certa noite, quase lhe dera um delíquio no jardim, colhida de surpresa atrás das folhagens do pé de manacá, pelo braço convulso de Alfredo, que lhe imprimira um beijo nos lábios. Era até curioso: outros beijos tinha recebido furtivamente do seu namorado Gilberto, quando a mãe se ausentava da sala, e nenhum lhe causara a sensação desse roubado à sombra cheirosa dos manacás e entre rosas que se desfolhavam com um leve suspiro nos canteiros orvalhados de sereno.

Com certeza, sentira no Alfredo o próximo esposo, dono do seu corpo, e a emoção lhe quebrara as forças. Aliás fora isso obra de um segundo, faísca elétrica depressa extinta. E frívola, superficial, sem exaltações, educada na escola das vulgaridades gaiatas da mãe, com um temperamento de menina clorótica, mais corrompida no espírito aguçado pelo exemplo dos fatos presenciados do que na carne frígida e quase insexual Celina entrou nas realidades do casamento com uma curiosidade sem transportes, que lhe consentia a lucidez. Sucedeu mais que as carícias, agora legais, do Alfredo, já não lhe provocaram mais o intenso e imprevisto abalo daquele primeiro e único beijo, roubado no jardim, em Santa-Teresa. Seus sentidos de virgem permaneceram inertes e ela se abandonou à iniciação porque era preciso, mas pensando mais nessa sogra vizinha que lhe restringia a posse do marido, do que mesmo nos afagos que esse marido lhe prodigalizava num silêncio cauteloso. Ai! que a mamãe não devia ouvir o sussurro dos beijos.. .E Celina acabou por achá-lo grotesco nesses sustos menineiros que lhe suspendiam o gesto amoroso e terno, à meia luz da lamparina azul...

Três dias depois, o recém-casado voltou à secretaria e a vida conjugal se estabeleceu ao lado de D. Margarida numa uniformidade tranqüila, mas exasperante para Celina, que esperava outra coisa. Incapaz da mínima maldade, porém velha, triste e ralada intimamente de ciúmes, a mãe de Alfredo não cogitava muito nos dezoito anos da nora, a quem não perdoava no fundo ter-lhe arrancado a parte mais viva do amor do filho. Demais, com toda a sinceridade dos seus austeros princípios, estava convencida de haver salvo da perdição futura essa menina, que o seu sacrifício trouxera para casa, como filha, partilhando uma existência digna, em vez de viver nas liberdades grosseiras de uma pensão cheia de rapazes. E não percebia, apesar da sua inteligência, tal o antagonismo entre as duas naturezas, que, ao fim de alguns meses apenas de casamento, de hábitos monótonos e tristonhos, era para essa pensão um pouco livre e ruidosa, para as gargalhadas sonoras de D. Adozinda, para a graça do Silva narigudo ao jantar, para as travessuras das irmãs e a claridade do jardim estrelado de dálias vermelhas que se volvia a cada instante o pensamento saudoso de Celina, debatendo-se desorientada, entre a regra e a virtude. Santo Deus! Como ela se aborrecia nessa casa entaipada da rua das Marrecas, cheia de ordem, sempre a ouvir o toque irritante das cometas do quartel dos Barbonos! Não chegava ainda a arrepender-se de ter casado, sentindo a ternura viva do Alfredo; mas como as horas lhe pareciam lentas! Como bocejava, displicente, amarela, cosendo ao pé da sogra, que lhe narrava as perfeições morais do defunto marido, diretor de uma repartição!

Vieram depois as realidades, a gravidez, o nascimento da filha, desgostos com o afastamento significativo de D. Adozinda: e Celina descobriu que a sua nova família dispunha de recursos muito mais escassos do que ela pensara. No seu parto, viu o Alfredo atrapalhado, pedindo dinheiro à mãe; e isso o diminuiu perante o seu espírito, acostumado ao respeito de D. Adozinda pelas farturas da abastança. Para que então se sacrificara, casando? Nasceu o segundo filho, Raul, e as despesas avultaram, de modo que D. Margarida apertou ainda mais os gastos da casa, severamente econômica. Ela, então, com dois filhos, os vestidos já usados e o Alfredo muito dengueiro, mas sem lhe facultar os gozos da vida, começou a sentir-se profundamente infeliz, só lhe apetecendo palrar um pouco em casa da mãe, revolvendo-se naquela atmosfera mais prazenteira. Como, porém, o marido sempre a acompanhasse, transformando essas horas de expansão com a sua presença em visitas cerimoniosas, Celina acabou por não desejar mais ir a Santa-Teresa, abandonando-se à uniformidade do seu viver. E os dias e os meses correram para muito vagarosos, muito áridos, até que a febre do pequenito abriu de repente uma réstia de luz no seu tédio, permitindo-lhe passar uns dias sozinha com a mãe e as irmãs — a alma dilatada às familiaridades e até discussões desse lar movimentado, onde crescera e tão mal se educara.

Nessa noite da sua chegada a Santa-Teresa, após um jantar muito alegre, em que a garrulice de Julieta e Olga fizera coro com as risadas estrondosas da mãe, enquanto os olhinhos piscos do Coronel Juvenato, mais mole e mais obeso, não cessavam de observar a palidez cansada de Celina através do copo de vinho bebido devagar — nessa noite, adormecido o Raul, cujo acesso febril cedera, a moça ouviu ao lado um pigarro grosso e compreendeu que tinha por vizinho de quarto o Coronel. Sorriu sutilmente e foi entreabrir a veneziana da janela dando para o jardim, de onde subiu um aroma penetrante de jasmins e manacás, muito familiar ao seu olfato e lembrando-lhe velhas cenas, velhas coisas, o Gilberto, um sem número de sonhos e esperanças de solteira.

Então, muito nervosa, de narinas aflantes, aspirando todo esse perfume perturbador das flores, Celina pôs-se a pensar que era preciso ter muito juízo, resistir a todas as instigações da coquetterie porque o Alfredo e D. Margarida poderiam vir a saber...

Mas a sua vida corria tão vazia! As irmãs eram sem dúvida muito mais felizes do que ela, livres, risonhas, animadas, fazendo o que bem queriam...

Que diria o Gilberto, quando a visse? Achá-la-ia mais bonita ou mais feia?... . Ora, que lhe importava a opinião do Gilberto!... . Mas um aroma mais vivo de rosas, penetrou-a toda de uma languidez — e a boca já se lhe descerrava para um involuntário suspiro, quando a janela ao lado se abriu de manso e a voz arrastada do Coronel ciciou:

— Está sonhando aí sozinha?

— Boa noite! respondeu bruscamente Celina e bateu com a veneziana, correu o trinco, bem alto.